Ruas Mortas
- Álvaro Figueiró
- 5 de jun. de 2023
- 5 min de leitura

Noite, rua, lampião, botica,
Luz inútil, luz poluída.
Vive ainda mais um bom tico.
Para sempre assim. Sem saída.
Morrerás – mas volta ao começo,
Repete todo o ramerrão:
Noite, canal por entre o gelo,
Botica, rua, lampião.
Aleksandr Blok
Altas horas náufrago no Centro, após bebedeiras, comilanças, vênus plutônicas e até venéreas, concertos atrasildos, vistorias aos confins fluminenses ou meros contratempos, gosto de seguir pelas ruas mortas. Em se tratando de qualquer cidade brasileira com mais de quinze habitantes (sacristão e boticário inclusos), claro, não se deve dar sopa, muito menos leite e peixe prà gatunagem. A qualquer esquina e também entre elas, podemos nos deparar com o colega assaltante exercendo seu ofício como, aliás, lhe faculta o Direito, além dos seqüestradores, assassinos, ébrios habituais, loucos, estupradores, bolinadores, sádicos de toda a espécie, ex-namoradas, cracudos, nóias, sem contar aqueles dois flagelos da sociedade brasileira que são o lobisomem e a mula-sem-cabeça – todos, insisto, facultados pelo Direito.
A paisagem do Centro, inócua ou, ao menos, cartografada à luz do dia para quem não for menino-da-bolha, nas desoras despiroca na tensão, no medo e mesmo no horror. Entre meus pesadelos rotineiros, está percorrer as vielas centrais num pretume antropopitéquico: os postes não têm luz, os prédios não têm luz, semáforo não existe, não passa um farol de carro, não passa um farol de ônibus, o fogo será domado daqui a um bilhão de noites – só persiste no céu a ferrugem de poluição luminosa, nebulosas nébulas de mercúrio e sódio (o céu nos meus sonhos tem esse matiz). Por toda a parte, paira ameaça menos criminal que diabólica, similar à sugestão de presença maligna que invade o quarto durante um episódio de paralisia do sono (você já teve?).
O sonho é o melhor e mais barato simulador já inventado. Faço nos pesadelos o que faria na vida real. Já segui a sabedoria onírica. Naquele descampado perto do antigo JB, após levar a donzela alheia ao ponto busaico, tive todinha para mim a zona portuária e suas trevas. Ali, altos muros por todo lado, calçadas estreitas, você estava tão vulnerável que um pudim armado duma bananada te intimidaria. Não tive dúvidas. Até hoje me orgulho da solução, parelha ao domínio do fogo (a ocorrer ali a um bilhão de noites). Solução: sair correndo. Que bandido profissa se rebaixaria ao atletismo bandoleiro? De quando em quando, olhava pra trás pra ver se vinha ônibus. Fazia sinal para qualquer coisa que me tirasse dali. E assim aconteceu, sem orifícios adicionais.
A bem da verdade, o assaltante é um trabalhador como outro qualquer. Além de carteiras, bate ponto. Cumpre horário. Às três e blau da matina, chapado de chopadas, cansei de esperar ônibus no Mergulhão. Aí sim foi que conheci as delícias do meu primeiro assalto (como assaltado), mas isso num horário-família, onze da noite, em tempo de o bandido poder ver o Jabor no Jornal da Globo.
É uma pena que o experimento urbano bruzundanga seja essa catástrofe social e, pior ainda, estético-sensorial. Entre tantos prazeres que dependem só de nós numa cidade, está justamente bundear em paz pelas ruas mortas. A prática ensina os caminhos onde as chances de se perder mais de dois litros de sangue são pequenas. A Avenida Chile, sobretudo nos seus freqüentes blecautes públicos, é um bóxer: grande, ameaçadora e bobona. Nos arredores do Campo de Santana, onde tampouco o fogo foi domado, a única ameaça teria de vir do Predador e suas rũidades infravermelhas. As ruas da Saara são bastante seguras. Todo o bulício do dia desaparece e cedo. Não é preciso sequer esperar pela madrugada. É bom lugar para começar a usar as rodinhas.
O grande charme da madrugada é, como todos os charmes, sua exclusividade. Momentos exclusivos em ruas também exclusivas.[1] Todo mundo quer ser cliente Gold Premium Alpha³ Plus ★★★★★★ Exclusive. Melhor que presidir banco internacional é estatelar no meio duma avenida e não ver carro nenhum. Advertência: nunca presidi banco internacional. Em todo o caso, a onipotência está presente, a sensação de que o mundo existe não só para nossa fruição, mas por causa de nós, como o deus berkeleyano. Enquanto a cidade ronca em cosplei mortuário, o notívago é quem justifica as manchas de óleo psicotizando a viagem do asfalto; o sereno pinicando a luz dos postes; o vento vindo lá donde ele faz a curva; os cacos como jóias submarinas; as calçadas geológicas; a neblina súbita e fugaz; os toletes e as badalhocas de trinta espécies diversas à espera dum pisão; os palimpsestos dos anúncios de carne de rã sobrepostos aos de travecos pirocudos sobrepostos aos de frete do Sr. João sobrepostos aos de carne de rã; a música dos galhos; um casal se pegando num desvão indiferente ao chorume – e até as pessoas que dormem, em camas ou sob viadutos. E a excitação é bem distinta daquela das calçadas bêbadas – sempre mais heróicas, dramáticas, piegas. Não há cores disco-voadorianas, nem megatons frustrados, nem beija-flores nos pés. Sóbrio, anda-se a passos mais lentos e atentos. A emoção dominante é uma vaga expectativa, aquilo que, afinal, nos leva a tolerar o tóxico oxigênio: algum encontro, não aqui e agora nem mesmo com alguém (aquiagoralguém, talvez só o colega assaltante voltando do batente), mas com possibilidades, enredos, aventuras, dramas a acontecer nalgum momento nalgum lugar, sozinho ou acompanhado.
Fabular é desfocar. Quem devaneia encarando uma foto? O olho se inspira, mas quem cria são as paredes, o chão, o horizonte, o teto, a pálpebra. Ruas mortas inspiram outros lugares, que podem ser Tenochtitlán, Tóquio, ou a própria Rua da Alfândega à luz do dia. De esguelha, os sobrados viram iglus; os oitis, cactos; o sereno, neve; a rua, corredeira; os bueiros, grutas. Encostado a uma parede, o branquelo espichado chapeludo vira malandro da Lapa 1936 ou compadrito de La Boca 1923 pungueando o juvenil Borges (na sotana, edição orelhuda de Vies Imaginaires de Schwob, ah-ha!). O cérebro é um simulador duca. Essa época do ano – fim de outono, começo de inverno – é a melhor para vagar pelas ruas mortas. Por quê? Uma ótima resposta é “não sei”; outra, menos boa, é “a brisa fresca, até gélida, tem um quê de companhia sutil”. A segunda resposta é mais blablablá que a primeira; no vestibular, marcaria a opção “não sei”.
Lembro doutras cidades que percorri de madrugada sozinho (às vezes embora acompanhado...), sempre com esse alegre desconforto de me ver ali e também noutro lugar, noutros lugares: Berlim, Viena, Buenos Aires, Veneza, São Paulo, Petrópolis, Niterói... Até o 2º Distrito de Paulo de Frontin conta no rol esnobe (se Niterói conta...). E lembro outras que percorri em sonhos, sempre as mesmas e que, de certa forma, existem pela reiteração. Mas, sobretudo, acordado ou dormindo, percorro o Centro do Rio.
★★★★★★
Nesta crônica, absolutamente irregular como meu atual estado mental e minha declaração de imposto de renda, citei em epígrafe a segunda seção do poema de Blok, Danças da Morte (Пляска Смерти), que dá um tom frígio a um texto até lídio. Creio que Blok não tenha sido traduzido em português. A tradução na epígrafe é minha:
Noite, rua, lampião, botica,
Luz inútil, luz poluída.
Vive ainda mais um bom tico.
Para sempre assim. Sem saída.
Morrerás – mas volta ao começo,
Repete todo o ramerrão:
Noite, canal por entre o gelo,
Botica, rua, lampião.
Uma tradução, mais ou menos literal, seria:
Noite, rua, lampião, farmácia,
Luz estúpida e turva.
Floresce tu ainda um quarto de século.
Tudo será sempre assim. Sem saída.
Morrerás – começarás do começo
E tudo se repetirá como outrora:
Noite, tremulina no canal gelado,
Farmácia, rua, lampião.
Prova-se o estrago que a tradução literal faz. Todo livro de poesia traduzido deveria conter uma paráfrase, uma tradução literal, um breve comentário formal e mesmo o original, que é:
Ночь, улица, фонарь, аптека,
Бессмысленный и тусклый свет.
Живи еще хоть четверть века —
Всё будет так. Исхода нет.
Умрешь — начнешь опять сначала,
И повторится всё, как встарь:
Ночь, ледяная рябь канала,
Аптека, улица, фонарь.
[1] Quem quiser remixar essa coloratura, faça um escretche: que as ruas são compartilhadas também pelos ratos e pelas baratas.
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