A Garra
- Álvaro Figueiró
- 10 de mar.
- 7 min de leitura

Enfim descobriram que o brasileiro, além de boçal e impulsivo, não sabe lidar com dinheiro. Só assim se explica o pânico moral contra as lotecas onlaines. Como liberal, não me resta aqui e sempre senão repetir truísmos. Tudo pode viciar e ser destrutivo – sobretudo o belo e o bom: álcool, drogas, doces, pitsas de padaria, pornografia, masturbação, sexo, putanheiragem, cirurgias plásticas, redes-sociais, videogueime, jogatina, maltratar outrem, plástico-bolha. Às vezes, o vício surge das coisas nocivas e, como a pré-escola resumiria, são essas que fazem mais mal: exemplo maior, amor. ¿Quantas pessoas não afundaram na depressão, engoliram formicida, armaram forca, encharcaram-se de querosene, ligaram o gás, por causa do amor? Algumas até se casam. Pior. Ninguém sabe donde e quando o vício vem. O mais regrado cidadão está sujeito a súbitas paixões destrutivas. E o desregrado está sujeito a bagunçar a coleção. Em nossa vida, o vício aparece do nada, como um convite de casamento na caixa do correio.
Meu pai sofreu um episódio compulsivo em 1998. Ele era um homem de hábitos severos. Era não; é, porque, pelo menos, no Natal ainda estava vivo, não muito. Em 1998, não bebia nem fumava fazia mais de dez anos, desde que meu avô foi diagnosticado com enfisema. Não freqüentava igreja e desprezava o culto e a hierarquia apesar de ter sido coroinha, pois a relação com Deus é, segundo ele, direta. Até entrado nos quarenta, trabalhava de domingo a domingo, sem férias, exceto por dois ou três dias após o Carnaval, quando dormia no bar para não perder o movimento. Não olhava nem comentava o mulherio, não passava a perna nos fornecedores e nos bebuns, enxotava acossadores de flíper, não tentava cativar, não fazia média, não se importava com o que os outros pensavam, não estimava ninguém além de mero conhecido, não usava cordão, não usava anel, não usava relógio, não queria ostentar nada exceto trivelas fortes, não odiava ninguém, não adorava ninguém exceto talvez o Rivelino, tratava todo mundo igual, isto é, mal. Spoudaios do Skylab. Só às vezes tinha de dar cadeirada em prol da paz pública. Contudo, nesses nessas Highlands morais, havia sementinhas de compulsão para além de pão, mingau e pudim. O primeiro sintoma foi o futebol.
Por anos e anos, desdo primeiro número em 1970, toda semana ele comprava a Placar. Num dos surtos paraenóicos do meu avô, que ameaçou tacar fogo na coleção, ele, bom pirata, cavou um buraco noturno no fundo do sítio, empilhou os exemplares num saco e enterrou o tesouro. Quando começou a namorar minha mãe, um dos programas que fortemente favorecia era cinema, porque assim podia assistir ao Canal 100. O caso, porém, que me mais aturdiu, testemunhei, foi um feito de memória. Dum jeito meio jeca e burro, ele parece ter a hipermnésia que pipoca aqui e ali na sua família – veio da minha avó, acho. Mas hipermnésia só no que interessa, a saber, futebol e preço para ele; datas e plantas para ela.
Churrascos e peladas lá na roça em Seropédica eram freqüentadas por um colega gaúcho. Foi na Copa de 1998, Brasil e Chile, tava cheio dos Ferreiras/Figueirós mais uma gente ignota lá no quintal dos fundos, à beira do coqueiral, o que levara a me embichar no mato da sala, lendo as baboseiras executivas que meu tio trazia da pinguela Rio–Porto Alegre e que, mesmo comunista, ainda me pareciam boas como Exame, introversão reforçada pela presença duma garota bonita, mais ou menos da minha idade, treze, branquinha de cabelão castanho quase preto que um zé-mané, nem Ferreira nem Figueiró, que a trouxe ficava buzinando “o antissocial” para “ir conversar” com ela, no que era reforçado por outros zé-manés, nem Ferreiras nem Figueirós, terminando de aniquilar assim, por esse enrustido e patético voierismo da meia-idade, qualquer chance de interação transmilissegunda pela puberdade tímida. Minha tia-avó consorte Nina trouxe o mais gostoso pavê que comi até hoje. O pé-de-jabuticaba, junto ao muro de chapisco, estava carregado. Pra não deixar os bichos aguando, davam ossinhos (estes são os anos 90), pro Brown (ou seria Braun?), vaimarâner, e pro Bobe, a despeito do nome fila. Meu pai e o tal gaúcho churrascofreqüentativo discutem, como era de se esperar num jogo de Copa do Mundo, futebol. O gaúcho anedota o jogador fulano no escrete do Grêmio de 1981. Meu pai interrompe:
– Não. Esse foi o time de 1980. O de 1981 era, vou te dizer, ... – e escalou o time, começando no goleiro Indicador, seguindo pelo beque Pai-de-Todos e terminando no camisa-onze Fura-Bolo.
Após uma perplexidade, o gaúcho falou olhando para mim:
– Mas esse cara é gremista!
Então foi nesse mesmíssimo ano de 1998 que se deu a compulsão, os parágrafos acima servindo para me livrar duma compulsão rememorativa da garota bonita. 1998 já estavam racionando pasto para as vacas-magras que, nos anos seguintes, viriam a alimentar de osso e couro o tipo de classe média de que fazíamos parte. No Skylab o movimento caía. A estudantada preferia ir beber nos camelôs e barracas. Diversificação, reestruturação e informatização são as alavancagens, ao menos segundo a Exame. Já que o Ryu e o Scorpion não chamam mais tanto a atenção nesta modernidade bugue do milênio, meu pai trouxe tecnologias de última geração para o entretenimento seropedicense: uma máquina de agarrar bicho de pelúcia. Sim, eu sei. É um toque david-lynchiano uma máquina de agarrar bicho de pelúcia num cospe-grosso. Mas o Skylab nunca foi um cospe-grosso; era um cospe-fino. E a máquina de agarrar bicho de pelúcia impôs-se, logo de cara, incontornável até os últimos estágios do coma alcoólico, sob a mira do castelo vermelho que era a caixa-registradora. A garra eletromecânica libertária.
[Máquina de agarrar bicho de pelúcia, máquina de pegar de bicho de pelúcia, máquina de pegar pelúcia, maquineta de pelúcia. Como os novilatinos, o português é trombolhudo, mas, anglófilo, estou aqui pra vos ajudar, vamos no duplo-pulo: pega-urso, cata-fofo, pega-ursim, cata-fofura, garra-gamadinho, garra-garrdim, agarradeira.]
Como os flíperes, meu pai não era dono da máquina; antes, alugava a preço fixo e pró-rata. Quando o flíper pifava, o locador é que se virava no conserto. Na máquina, quem tinha de repor o estoque de fofice era o locador. Se meu pai, com uma ficha, agarrasse um Taz bonitão e grandão, noves-fora, o lucro era todo seu. Quem conhece o alfabeto pelo menos até L já viu o que aconteceu. Para aqueles que vão começar a se aventurar pela parte mais difícil, a crônica segue.
Conta o Sr. Machado que, de tanto olhar para a máquina, começou a perceber as circunstâncias favoráveis para o perfeito agarramento peluçal. Havia sim uma configuração ideal de formas, posições e profundidade para a garra ser dirigida para a presa, prendê-la e levá-la a tempo para o duto de recompensa. Ademais, insistia, a máquina só agarrava firme após certa quantidade de jogadas. Me lembro de zoar essa idéia dum táimer carcereiro. Mas, pelo visto, era verdade.[1] Pai 5 × 7.141 Filho. Se ele de fato pegava os bichos pela conjunção entre espera e técnica, um caçador da fauna kawaii, como pretendia, ou se, pelo contrário, andava dilapidando a fortuna da casa 66 para bancar, com ficha, seu vício cinegético, eu não sei, pois, nessa época, pouco ia ao Skylab, livre enfim dos grilhões do trabalho escravo infantil. Duas coisas eu sabia: cada noite, um homem barbadaço mor cara de brabo voltava com um novo bicho de pelúcia e, cada mês, ficávamos mais pobres.
Até eu que tenho vezo colecionista/acumulador, comecei a ficar bolado. Tinha um horripilante Cérebro e um simpático Pinky. Uns vinham com ventosa para prender no vidro, outros te pediam abraço. Uns eram moles, outros eram duros. Uns eram cheios de bolinhas de isopor, outros, de algodão. Tinha o Sonic e o Tales. Tinha o Mickey e a Minnie. Tinha o Piu-piu e o Frajola. Tinha os famosos e os anônimos. Os grandes e os pequenos. Os belos e os feios. Os crespos e os lisos. Os sofisticados e os vagabundos. Os originais e os falsis. Os vestidos e os nus. Os crus e os cozidos. Os alergênicos e os neutros (os antialérgicos acho que não tinha). Os ursídeos, os saurópodes, os coacervados, os coleópteros, a extinta megafauna paleártica, os incertae sedis. Sol, lua, estrelas. Disney, Warner, Maurício de Sousa, quadrinho, videogueime. Cadê tu, Lineu?!
E acabou de chegar um dragão com cara de quem fez besteira.
A Wunderkammer ficava no quarto que dividia com meu irmão. Não tinha muita coisa: a) duas camas; b) um armário de mogno vindo de Seropédica; c) uma prateleira de mogno com alguns livros e muitos brinquedos do Kinder Ovo; d) uma fotografona do meu irmão escandinavizando na frente do jardim junto a uma palmeira-areca cercada; e) o desenho que ele copiou do Eric Carr, baterista do Kiss, batucando nas nuvens (o satânico gatchenho!); f) no vidro da veneziana, adesivos de dinossauros, animais silvestres, telescópio Hubble e, memento mori, dois coelhinhos dentro dum círculo azul, felizes de estarem no consultório da Tia Cristina, dentista; e g) o Museu de História Natural da Pelúcia.
E, à noite, chegou um Taz repetido.
Dado o contexto 1998 13 anos, multiplicando o número de cachorros-quentes, dava para manter mole umas vinte paqueras – inclusive, quem sabe?, a branquinha de cabelão castanho quase preto. Mas nessa época quem tava coladinho eram os astecas, o Hale-Bopp, os buracos-negros, o Niemeyer, os piratas, o Sherlock Holmes, os pescadores de pérolas das arábias anglo-persas...
Ao menos serviam de espumex contra o nomadismo esquizofrênico da minha tia.
Para se deitar, era preciso acotovelar a peluçama. A maior parte não resistia, exceto os briguentos, arame e pau à flor da pele. Câimbras rasgavam a panturrilha; batia uma punheta analgésico-ansiolítica; dormia; acordava imóvel, sugado pela cama, enquanto devagarinho um demônio rondava o quarto.
E olha uma joaninha roxa e azul.
Chegou a um ponto que uma das camas do quarto que dividia com meu irmão ficou indormível de tanto bicho. Depois foi a outra. Enfim, a pelúcia invadiu a cama dos pais. Fomos expulsos para o sofá e para o sinteco. Às vezes, umas pulgas pulavam, que se tinham instalado entre as juntas, podres. Meu pai me sondou, já que “só tirava notão”, por que não pedia desconto na escola? Minha despenteadura explodiu em caspa. Um dia abri o berreiro em plena sala de aula. A ansiedade que já era angústia começou mudar a rota rumo à Terra Treva Nova – onde neva, noite, sempre, rupes nigra.
Um dia minha mãe meteu tudo num saco, outro saco, outro ainda, talvez mais um e deu pra darem prum orfanato. Ainda assim, sobraram alguns. Pelo menos, retomamos a cama.
Depois foram embora as pulgas. E depois, a tia esquizofrênica. Mas isto ficou.
Depois dos 12, só tive dois anos felizes.
E hoje vejo que estava distraído.
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