Cadeirada de Chope
- Álvaro Figueiró
- 18 de set. de 2024
- 4 min de leitura

Como meu pai teimou em ter bar persiste mistério. Feirante, vendia mudo, pois era vil berrar mercadoria, quanto mais graçolas. Até hoje odeia furdúncio de feira. Falta profissionalismo.
– O que vende é preço baixo.
Ele já ousou dizer que gosta de lidar com gente. A fala futrica com os fatos – exceto, se por lidar com gente, entenda
brigar com quem bate no balcão,
xingar quem pede fiado,
enxotar acossadores de flíper,
chiar de arruaça,
torcer braço de gatuno de baleiro,
dar gravata em baderneiro,
negar venda a quem lhe ofende
entre outros afetos. ♥♥♥
Em criança, achava meu pai psicopata. Na verdade, é tranqüilão, cuca-fresca. Ambiente de bar é que, vez ou outra, pela paz pede punhos e palavrões, mais ou menos a cada quinze, dez minutos.
O Skylab era gerido a partir da premissa de que a coisa menos importante no bar era a freguesia. Música tocava a que meu pai queria ouvir e foda-se: Kraftwerk, Jean-Michel Jarre, Pink Floyd, Rick Wakeman, repertório que aturdia a pinguçada reles, mas atraía o etilismo universitário.
Em gradual refinamento da sua missão cósmica como dono de bar, meu pai parou de beber e fumar. Da mesma forma que o BAR pairava acima da freguesia, o DONO DO BAR orbitava acima do Skylab. Ainda assim, nos primeiros dias de abstinência, sempre tinha um mala a oferecer cigarro.
– Não, valeu. Parei de fumar.
– Ah, fala sério. Pega aí um.
– Já falei que não tou mais fumando.
– Como é que não tá mais fumando?
– Não quero, porra.
– Pára de onda, Machado, e pega unzinho.
– Não, ô caralho. Tá surdo?
– Toma um cigarro aí.
– Então me dá essa merda aqui!
O maço de cigarros é arrancado da mão do sujeito
– Tu tá maluco?! Tá maluco?! Tu tá maluco?!
e estraçalhado a dentadas.
Os clientes cativos do Skylab, estabelecimento familiar, sempre receberam tratamento vipe. Esse mesmo que teve o maço dilacerado por excesso de solicitude tabagista levou vassourada no quengo. E quem sentou o pau fui eu, criancinha – não falei que era estabelecimento familiar? Resposta da gerência à reclamação pelo serviço:
– Bem feito. Tá aporrinhando o moleque.
Como se pode ver, senão convidando alguém prà casa do caralho ou recomendando outrem a ir tomar no olho do cu, meu pai não é das pessoas mais comunicativas. O bar talvez servisse para exercer, de forma mais densa e lucrativa, a misantropia e a justiça social. Deve ser isso o gosto em lidar com gente.
Justiça social sim. Neste mundo triste e caótico, o dono do bar tem de promover ALEGRIA E ORDEM, manguaça e compostura, otium cum dignitate. Mas sempre há quem se valha do porre prà práxis da escrotidão. Daí punhos e palavrões.
Havia então – conto de ouvir, era no Tempo do Ronca... – esse presidente do DCE da Rural, na melhor tradição da escolha democrática das nossas lideranças, um seboso. Já chopechapado, o chefe chapuleta pros chapas:
– Vou quebrar essa tulipa!
O eleitorado da liderança estudantil, o futuro do Brasil, gargalha e aplaude o gesto ludita.
Um gnomo víquim pára à porta.
– Vou quebrar essa tua tulipa, Barbudo!
Para contextualizar a cena dramática, aqui é importante recordar a importância do ☛ VIDRO na cultura material da protossemicivilização brasileira da década de 1980, sobretudo o copo de vidro. Conquanto até hoje lalados de bares e restaurantes por sociopatas disfarçados de cleptomaníacos disfarçados de colecionadores, o copo de vidro perdeu muito do seu encanto graças ao advento da ☛ REVOLUÇÃO NEOLÍTICA em 1994, que, entre outras coisas, popularizou os dentes entre o brasileiro médio. No Tempo do Ronca, reciclado de potes de geléia e requeijão para o quebradiço dia-a-dia, o copo de vidro atingia, nos seus espécimes mais elaborados, como o Pepsi Star 85 ou o dos Thundercats, valor de culto pelas propriedades estéticas, para além, claro, das inerentes qualidades mágicas – a transparência à luz e a retenção dos líquidos. Poucas tragédias se equiparavam a um copo quebrado. Existia até um móvel cujo propósito era proteger com vidro o vidro: a cristaleira. Uma tulipa de chope, sem se situar nesses páramos mágicos, não deixava de integrar o sacrácrio dum bar que se prezasse pela sostificação, um bar onde a clientela, em vez de esfaqueada no bucho por um pé-de-cana qualquer, podia degustar vassourada nos cornos preparada pelo próprio filho do proprietário do estabelecimento. Portanto, percebendo o risco de perder parte da mana, fora grana, com a destruição gratuita da tulipa, meu pai não titubeou ante a gravidade da situação e mobilizou todo seu talento retórico neste grande duelo dialético que ainda é estudado pela profundidade psicológica:
– Vou quebrar essa tua tulipa, Barbudo!
– Vai lá, seu babacão! Quebra essa porra!
– Vou quebrar!
– Quebra aí!
– Vou!
– Então quebra!
– Tá duvidando?
– Quebra!
– Duvida?
– Pára de onda, viadinho, e quebra logo, caralho!
– Ah é?! É? Então, ó, ó! Ó!

Fogo contra fogo, Barbudo Machado pega outra tulipa, alonga o braço, pega impulso e arremessa contra a liderança estudantil que trabalha por uma sociedade mais fraterna e com menos tulipas. O alvo era a fuça, de preferência o nervo e o quiasmo óticos, mas a liderança se esquiva e a tulipa explode no braço.
A essa altura, a freguesia, parte da qual fatiada pelos cacos e misturada às porções de salaminho, constata que o nível de violência tenderia a superar as alegres vassouradas infantis, feridas meramente concussivas sem, no mais, eversão de sangue.[1]
– Seu filho da puta!
A liderança vem vindo. Barbudo Machado dá um passinho pro lado, outro pra trás. Não fala nada. Malemolência pé-duro. Ou doradurência.
– Vou te arrebentar, seu filho da puta!
A liderança vem vindo. Vem, vem, vem vindo, vem toda lideronça.
No faite-limite, Barbudo Machado sinsalabinza uma cadeira, parabola arco interbalístico e desce megatônico. O impacto promete produzir a primeira fusão nuclear a partir de átomos de madeira e cabelo. A liderança, para se proteger da demoção a cadáver, só tem tempo e reflexo de cruzar os braços. Os braços seguem o destino das duas tulipas.
E, pelos dias seguintes, na melhor tradição democrática latino-americana, todos os universitários festejaram Barbudo Machado, quem quebrou os dois braços da detestada liderança sebosa que eles mesmos tinham eleito.
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