O Tempero da Baía: giallo alla baiana
- Álvaro Figueiró
- 18 de jun. de 2023
- 4 min de leitura
Atualizado: 2 de nov. de 2023

Outubro de 2019, noite, Aeroporto Internacional Governador Coroné Babalorixá Antônio Carlos “Papa Doc” Magalhães. Estava em Salvador para uma putaria mais vil que o turismo sexual: o turismo acadêmico. E quem ia bater bolsinha vendendo seu corpitcho (cérebro é corpo) era eu mesmo.
Em vez de táxi ou gambiarras modais, o muquirana aqui preferiu o busão de quatro merréis, com resquício de trocador no fundão. Me arrependi do miserê. Os passageiros estavam tensos. Olhavam para trás, esquadrinhavam quem subia. E eu era o passageiro cor-de-rosa, cara de trouxa, mala com etiqueta aérea e chapéu-panamá – só faltavam a meia laranja e a teleobjetiva fotográfica. Quando entraram dois caloteiros com pinta malandrinha, encafuando-se nos bancos atrás, juntei per com deu e deduzi ser assalto a ônibus outra das magias da Baía. Apesar disso, saltei em Ondina não só ileso como, até mais importante, inassaltado.
Escapei do assalto; não escapei do dendê. E olha que bem me advertiram – meu orientador de doutorado (porque orientação é para a vida):
– Na Baía põem dendê em tudo! Cuidado!
E o dendê, vocês sabem, provoca caganeira em tudo – menos nos baianos. Bastam duas colheres de dendê para liquefazer a Pedra da Gávea. Meio litro de dendê torna o Caribe marrom. O mar deu descarga na Atlântida quando deixaram cair nela uma garrafa de dendê. O dendê derramado sobre bosta faz a bosta sofrer de caganeira. Eu não tinha como sobreviver com caganeira a quatro dias de palestras súper sérias sobre a influência heráldica dos penicos da Borgonha na literatura cortês catalã. Vegetariano, confiei que minhas frescurites alimentares me tornariam ipsofacto menos vulnerável. Bani tudo que remetesse, embora remotamente, à culinária baiana – até porque não tenho a menor idéia se vatapá ou caruru é bicho ou planta ou os dois misturados. Nenhuma baiana do acarajé veria a cor do meu dinheiro, o que, aliás, ninguém costuma ver mesmo. Todo poder ao Carrefour. Foda-se o pitoresquismo.
Caguei saúde até o terceiro dia. De tarde, coordenei uma mesa sobre campesinato, posição conquistada única e exclusivamente pela minha competência e autoridade de sujeito careca e pançudo. De noite, após tchibuns na piscina do aparte-hotel, acompanhei a molecada cabeluda e magra a um bar no Rio Vermelho, o bairro pseudoboêmio. Fiquei nem duas horas, tomei só um chope, mordisquei umas batatas-fritas. Nenhum contato com a culinária baiana até aqui (essa fugaz imersão batatal no potinho de pimenta não conta).
Na volta ao aparte-hotel já me senti enjoado. De madrugada, acordei estrangulado. Aos repuxões e repelões, reemergiu a batata-frita, liquefeita. Sem fôlego de tanto vomitar, o destino bateu noutra porta. Pum-pum-pum, PUM! Da pia pro vaso, a diarréia veio em cor inédita, um pavoroso amarelo-mostarda. E foram baldes e baldes de amarelo-mostarda. Não parava de jorrar amarelo-mostarda. Foi a única vez na vida que tive medo duma cor – The Color Out of Bahia.
A agenda do dia seguinte foi dormir amarelo, vomitar amarelo e cagar amarelo. E não precisava ser nenhum sinestésico para perceber que o amarelo fedia feito um cemitério de urubus. Num caso acho que vomitei menos pelo banheiro empesteado (qual o equivalente da reverberação pro olfato?) que pela simples lembrança do amarelo. É um mistério profundo saber donde saiu tanto amarelo. Naquele dia eu era a fonte e origem de todo amarelo no Universo. Meu propósito cósmico era absorver todas as formas de radiação para rebatê-las em amarelo. Compraram Gatorade e limões para me ajudar a repor o amarelo que perdia a montante e a jusante, um Amazonas e um Nilo privados, ambos afluentes do Rio Amarelo.
Nunca tive reboceteios estomacais tão selvagens, nem no Peru ou na Bolívia ou em Campo Grande (em criança, brincávamos de pular valão, veja só). Meu orientador até pensou em me levar ao hospital (porque orientação é para a vida). A última vez que estive em hospital, registre-se, foi quando nasci. Nos momentos de lucidez, revisava minha vida e tentava entender onde havia errado. Minh’alma decolou do corpo e flutuou pelo espaço-tempo voltando às aléias e às escadas de Versalhes de 1714. Sim, porque eu ia ter uma morte digna do século XVIII, eu ia morrer de caganeira. Mocidade perdida, estudos fúteis, declinações latinas na cadência de dormentes, Tchekhov no Campo de Santana, auroras solitárias, amores mudos, e eu vou morrer de caganeira aos 34 anos. Vita brevis, diarrhoea longa. Ao lado do colchão, contos polinésios de Stevenson. Pensava no meu espólio literário: “Stevenson morreu de tuberculose em Samoa. Mas eu vou morrer de caganeira em Salvador.” Donde vêm o Mal e a Dor no Mundo? Vêm do Dendê. Mas como o Dendê deixa a essência platônica? O dendê fenomenal estava onde? No ar? Na água da piscina? No bebedouro? No pastel de queijo? No potinho de pimenta? Mas por que só eu fui escolhido para esse martírio amarelo? Geral abusou do potinho de pimenta. Rio Vermelho-pimenta, afluente do Rio Amarelo-piriri. O brasão no penico é jalne em campo de nogueira. O que é que a baiana tem? Tem caca de ouro? Tem! Tem batata-frita? Tem! Tem pirirão de dendê? Tem! Ó Pai, por que me abandonaste? Tenho sede – e vontade de cagar. Tem! Donde? Dendê? Tem! (Dendê ablativo de 3ª ou 5ª.) Tem! Meu dendê, meu dengo. Tem! Dotô Dodô tá dodói de dendê. Tem! La France, l’armée, tête de dendée, Marianne.
Isso era sexta. No sábado, permanecia ainda naquele quadro clínico diagnosticado como todo fodido, mas, ao menos, já capaz de me mover para outro fim além de vomitar amarelo e cagar amarelo. Minha adolescência ferroviária me preparou para o estoicismo – Supervia, meus campinhos de Eton. Decidi me arrastar até o Farol da Barra. O enjoo persistia. Andava num passo nonagenário, sempre temeroso dum tenesmo mais convicto, iô-iô esfinctérico. Isso foi a menor das provações. A grande provação foi o cheiro de dendê. Tudo fedia a dendê. O vento fedia a dendê, o asfalto fedia a dendê, as pessoas fediam a dendê, o mar, a areia, os prédios, as amendoeiras-da-índia, os escapamentos automotivos, minha roupa, o meio-fio, as nuvens, a luz. Num dos extremos da praia, paramos numa sorveteria. Todo engulhos, nada pedi. Ainda bem, porque até o sorvete fedia a dendê. E, quando sorvete fede, a vida não merece mais ser vivida.
Mas sobrevivi. E sem cagar nas calças nem golfar nas calçadas.
Pelos dias seguintes, já de volta ao Rio, continuei na caganeira, mas em cores bem mais joviais que o amarelo-mostarda. Quando o último vestígio da crise baiana era um forte ressaibo de sabão na boca, eu me sentia leve e feliz como se tivesse dado o meu primeiro beijo.
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