Máquina de Lavar em Casa Faz Falta
- Álvaro Figueiró
- 24 de ago. de 2023
- 6 min de leitura
Atualizado: 2 de nov. de 2023

Alemão leva Natal muito a sério – tanto que exterminaram quem não comemorava.
No Instituto Goethe carioca, em 2009, decidiram celebrar a data com festa de fim de ano. Além de boca-livre e birinaites, sorteariam viagem para a Alemanha e semestre grátis no curso. Não podia deixar de comparecer. Como o estudo do alemão provoca danos neurológicos graves, inclusive no controle do músculo deltóide, eu me embananei com o cartaz. Pensei que, para concorrer aos prêmios, era preciso submeter-se a algum mico: cantar, declamar poesia, pular corda, falar em prol das baleias, marchar sobre Paris. Recauchutei esquete que escrevi com um amigo quando produzíamos vídeos nos tempos pré-YouTube (eu disse YouTube!).
“Em apertada síntese” como fala o juridiquês, um gerente de banco é interrompido no seu blablablá de Respons(h)abilidadeSocial® por Maria e José. A Sagrada Família viu o comercial natalino na tevê e quer empréstimo. O gerente recusa (“Aposto que o filho não foi planejado, né?”), afinal carpinteiro, dona-de-casa e refugiado, palestino pior ainda, não gozam de muito crédito bancário. Qual o patrimônio do casal? Pouca merda, uma manjedoura em Belém. Maria lembra que o menino é o filho de Deus e o favorito. O gerente amolece. Aceita de fiador os Reis Magos, mas só aquele que traz ouro.
Não muito engraçado, ainda mais “em apertada síntese” e auf Deutsch, porém suficiente para me inscrever no sorteio (não precisava, já vimos).
Nessa época, ainda morava na Trincheira em Botafogo. Filho modelar, só voltava para o Solar Ancestral em Campo Grande para: a) ouvir música num aparelho decente; b) pegar e devolver livros da minha própria biblioteca; c) lavar roupa. No dia da festa, cheguei ao Goethe com a mochila empanturrada de duas semanas de roupa suja. Vou apresentar a esquete, beber dois, três copinhos no máximo e pegar o frescão prà lavanderia doméstica. Eis o plano genial, porque, vocês sabem, modéstia à parte, eu sou genial.
Mas o gênio aqui segue seus planos geniais?
Como interpretaria o gerente, vim mauricinho. Me reuni com grande elenco da esquete e catamos uma sala vazia para um último ensaio enquanto eu bebericava o meu método Stanislavski. Deixei a mochila rechonchuda na sala, trancei uma gravata verde-trocador-de-ônibus, tomei outro gole de Stanislavski e, pela trocentésima octagésima nona vez, voluntariamente fui me expor ao ridículo e, pior, de graça e casa cheia.
A cenografia já começou a sabotar, porque, mal ofereci “Nehmen Sie Platz, bitte!” (“Por favor, se sentem!”), constatei:
– Aber wir haben keinen... Stuhl! (“Mas não temos nenhuma... cadeira!”)
O tropeço ocorreu na terceira fala. Felizmente o method acting batido com cachaça e morango segurou a perfórmance, porque a atuação natural e convincente, ensinou-nos Tarcísio Meira, consiste em falar alto, fatiando as sílabas, franzindo putaço as sobrancelhas – e eu já sou meio assim, além de galã. O povo riu aqui e ali. Finda a canastrice, pude beber sem justificativa técnica. Não fui sorteado. Paguei mico à toa, de graça e para casa cheia.
Encontrei a irmã dum amigo, bonita, inteligente e tchã. Ficamos papeando. Aos meus dezesseis anos, tinha mor tesão nela, mas na época ela era absolutamente inalcançável, mulher madura, bem resolvida, com a vida feita, carreira a todo vapor, no salto-alto dos seus dezoito anos. A conversa estava mais extravagante que de costume. Para piorar outro amigo se intrometia em bicicletas retóricas, tentando fazer gol-contra num placar feliz com o empate. Esse amigo era ruivo e tinha teor alcoólico de 14%.
Ouvi alguém na vizinhança falando asneira. Entrei rasgando:
– É rosa, rosae; rosae, rosarum; rosam, rosas; rosae, rosis; rosa, rosis. Isso se tu seguir nominativo, genitivo, acusativo, dativo e ablativo, que é a melhor ordem.
– E o vocativo?
– Foda-se o vocativo.
Isso sim é que é professor de latim.
Repeti a botinada para a segunda declinação, que também tinha sido estropiada.
Você nunca sabe quando o latim vai te servir.
Cadê
a irmã do amigo?
Latim serve para você achar a ordem da frase e perder a irmã do amigo.
Se não me reconheceram como boas-falas nem galã nem ator nem dramaturgo nem felizardo nem latinista, nada disso se comparou com o desprezo pelo meu heroísmo tectônico. Fortalecido pelo mesmo nutriente que susteve a industrialização soviética – vodca –, não fosse meu esforço stakhanovista em escorar com as costas uma parede, o prédio inteiro viria abaixo. Durante vastos minutos, salvei vidas até estabilizar o Centro Empresarial Passeio. Ninguém me agradeceu.
Percebendo-me naquele estado de consciência análogo ao dos loucos e talvez ao dos gatos, teletransportando-me dum ponto a outro do Instituto, decidi vazar.
Opa! Uísque! Minha segunda bebida preferida depois dum uísque!
Ballantine’s, amicus humani generis. Nominativo de primeira declinação etcétera etcétera.
Onze da noite. Tarde demais para Campo Grande. Vou amanhã.
Fui catar a mochila, tão empanzinada quanto meu bucho com batidavinhotintovodcauísquetudográtis.
A mochila estava aberta. Peguei pelo lado errado. Arreganhou-se toda. Big Bang II. Na enxurrada cósmica, vieram
um devedê do Radiohead
o fichário que me deram de brinde
um livro de fábulas de Hauff
uma pasta amarela
sacos plásticos
papéis de rascunho com citações, anotações e desenhos
restos de embalagem de pasta de dente
os primeiros átomos de hidrogênio do novo Universo.
Podia ter sido pior: já esqueci banana (só percebi quando se fundiu com um sabonete também esquecido; o produto olfativo e tátil não foi bacana embora original). Tentava recolher o conteúdo vomitado pela mochila fabricada em legítimo couro de Popples, mas as coisas tinham sido encantadas em sapos e saltavam da mão. Agarrando e soltando o caos batráquio, conseguia, agachado, conversar com dois rapazes numa meia-língua sem consoantes.
– Tu gosta de Radiohead?
– Im, áuo! Ũio om. Em aão óaa? E u?
Já dentro do elevador, me chamam. É aquele porteiro com quem troco uns leros. Sempre de terno, lembra um Schönberg matuto. Ele acena para que não desça. Desço assim mesmo. Hoje não quero papo – até porque perdi as consoantes. Auf wiederfodaße.
Acho que foi isso, né?
Trincheira, cama todo sono oco.
De manhã estremunhando, assisti à reprise da véspera em edição de filme policial: a cadeira inexistente, a bela irmã do amigo, a mochila arreganhada, a bela cor do morango pisado na cachaça, o elevador, o meneio da irmã do amigo, issoaquiéseu, a bela cor do maracujá pisado na cachaça, a risada da platéia, a risada da irmã do amigo, “isso aqui é seu?”, o Schönberg de Majé, o elevador, uma mancha preta, a besta estropiando as declinações latinas, a feia cor da gravata verde, uísque, o sumiço da irmão do amigo, o elevador, o metal polido do elevador, uma mancha preta, o Schönberg de Majé, “Isso aqui é seu?”. Aí a moviola travou: elevador e porteiro, porteiro e elevador, orietrop e rodavele.
– Isso aqui é seu?
Porteiro e elevador, elevador e porteiro. Schönberg de Majé.
– Isso aqui é seu?
Meu rosto contorce-se em careta e, indignado, balanço a cabeça como quem gritasse “Eu lá sou homem de largar...”.
Largar o quê? Por que isso comigo, moviola? Eu gosto de coisas bonitas. É o metal polido?
Elevador, porteiro Schönberg de Majé. Metal polido. Mancha preta.
– Isso aqui é seu?
Mochila arreganhada. Mochila Big Bang. Mochila legítimo couro de Popples.
– Isso aqui é seu? – perguntou o Schönberg de Majé enquanto desfraldava, com a pompa de bandeira monumental, um baita cuecão preto.
Meu rosto contorceu-se em careta e, indignado, balancei a cabeça como quem gritasse “Eu lá sou homem de largar cueca solta por aí!”
Eu sonhei isso.
Claro.
Não aconteceu.
Olhei pro lado da cama. A mochila me olhou de volta. Estava sonsamente magrela e até dando risinhos. Nela faltavam muitas cuecas. Muitas mesmo. Então aconteceu à vera. Meu consolo inicial foi supor que jamais poderiam ligar o cu coas cuecas. Qualquer sujeito normal poderia ter esquecido uma revoada de cuecas fora um cardume de meias no curso de alemão. Ou de inglês, ou francês, não importa. Logo, porém, percebi que também entre o vestuário enjeitado estava a gravata verde, por assim dizer a marca de batom nas cuecas. Só me restaram duas esperanças: que até o próximo semestre, auf wiederfodaße, o vexame tivesse sido esquecido, afinal acontece todo dia tanta desgraça neste planeta; e que nenhuma das cuecas tivesse freada-de-bicicleta. Este último, talvez, fosse o ponto mais sensível. Até na lama se luta pela dignidade.
No semestre seguinte, repito de professora, Sabine, uma simpática coroa renana. A história das cuecas náufragas tinha se difundido entre o teuto-magistério. As cuecas eram do Álvaro, do aluno que interpretava o gerente, o de óculos, costeleta e topete, o de GRAVATA VERDE, esse mesmo que ganhou bolsa prà Alemanha no ano retrasado, como alguém que ganha bolsa pode perder cueca em plena festa de Natal?
– Álvaro, você nem sabe o que fizemos com as tuas cuecas...
Sinto as bochechas quentes, ou seja, estou da cor dum camarão albino que esqueceu o protetor solar. Meus olhos brocam uma cova no chão.
– Bem, espero que vocês não tenham é precisado lavar nenhuma delas.
Mestre Wilde suspirou, Tio Shaw deu moca, Dr. Millôr saiu da sala. Resposta água-de-salsicha total. Anos e anos de literatura pra isso.
Foda-se. A cuecada tá feita.
Até na lama se luta pela dignidade. Dessa história toda, consola-me, pelo menos, que, nos meus porres, até a mochila vomita, mas nunca eu.
Continuo sem máquina de lavar em casa, agora Antro. Pelo menos, apreendi a lição. Não misturo mais bebida e roupa suja. Nem banana e sabonete.
Auf wiederfodaße.
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