Linhas Perversas – Um Romance Assanhado de Beardsley
- Álvaro Figueiró
- 31 de mai. de 2022
- 9 min de leitura

Em tempos de XVideos no celular, teu banheiro retrofitado na mais enlouquecida terma caligulesca, é de se perguntar qual afrodisíaco pode ainda evolar das páginas dum livro erótico. Um pancadão recente invade meu Covil, esguichado desdalgum ponto-gê urbano – digamos, maternidade ou hospital ou funerária – e a resposta se aclara: a metáfora, a anfibolia, o duplo-sentido, finuras desaparecidas como as caixinhas-de-música, as frutas de cera e o surfe ferroviário. A função da literatura saliente é, concluo, não titilar nenhuma zona erógena abaixo das sobrancelhas.
Às vezes nem escritor talentoso sucede. Ao poeta romântico Alfred de Musset, um dos forjadores do romantismo esplenético (os emos oitocentistas), atribuiu-se o romance Gamiani, ou Deux Nuits d’Excès, publicado anonimamente em 1833. É uma grande estudantina, Noite na Taverna ilustrada por Carlos Zéfiro, sem a menor preocupação com a vera putaria coetânea. São curras monacais, descabaçamentos por orangotangos, freiras tríbades, trepadas com enforcado (no convento, claro), brinquedos eróticos da grife Inspetor Bugiganga como consolos-de-viúva com leite quente disparado por mola, fraldiqueiros cunilingüistas (clássico), missa ultrabranca onde se esparge sêmen (“blanche communion”) e erotofonofilia (a preferida dos maníacos). Nada disso tem mais graça. Obscenidades parietais conseguem ser muitíssimo mais criativas, instigantes e sacanas, artísticas portanto. Numa hamburgueria portenha, li a seguinte pichação, bem perversa, acima dum número de telefone: “Procuro un novio. Soy menor de edad.” No banheiro da faculdade de engenharia no Fundão, equacionava-se que “A diferença entre cagar e dar o cu é meramente vetorial”. Atrás duma cadeira no Cefet, em liquidepêiper, a campanha profilática: “Virgindade dá câncer. Vacine-se aqui.” Uma enorme seta conduzia ao posto de saúde.
Algumas linhas que ainda causam cosquinhas no cocuruto foram escritas por Aubrey Beardsley (1872-1898) no romance inacabado Under the Hill. De rarefeita produção literária, Beardsley é conhecido como ilustrador e com toda a razão, pois está à altura de Dürer, Piranesi, Hokusai, Escher. Nas suas gravuras mais emblemáticas, estrutura o espaço em contrastes brutais, o preto e o branco, a reta e a curva, a superfície chapada e o arabesco pontilhista. E os personagens que habitam essa geometria, a um só tempo angular e sinuosa, transpiram, sobretudo as mulheres, nos lábios, nos olhares e nos dedos, malignidade. Até a assinatura de Beardsley lembra alguma cena-do-crime fresca, três gotas de tinta pingando entre três retas caligráficas. Algo das gravuras japonesas, do gosto pelo bidimensional do arnuvô, das pinturas e dos cartazes de Toulouse-Lautrec, da cerâmica grega pode ser aduzido, mas a arte de Beardsley é absolutamente original.[1]
Beardsley integrou o movimento decadentista que primeiro causou curiosidade e depois nojo nos últimos dias da Inglaterra vitoriana. Avançando a estética reformista do Arts and Crafts por um lado, os decadentes, subverteram, por outro, os ideais de pureza e sinceridade propugnados por William Morris e seus luditas pré-rafaelitas. Valorizava-se o artifício, o faz-de-conta, o exclusivo, o paradoxo e o super-requintado, com a assunção, ora implícita, ora explícita, de que o bom-tom das classes médias era igualmente artificial, faz-de-conta, exclusivo, paradoxal e super-requintado. Tamanho impacto dos artistas contraculturais levou a década de 1890 a se conhecer, na anglosfera, como yellow decade, referência ao principal veículo de difusão da nova estética, a revista The Yellow Book (situação parelha ao arnuvô alemão e russo que se batizou a partir das revistas Jugend e Mir Iskusstva). Beardsley foi o principal ilustrador do Yellow Book e Wilde, o garoto-propaganda do decadentismo britânico, creditava a si próprio como descobridor e mentor do jovem artista.[2] Sem dúvida, a projeção de Beardsley muito deveu às ilustrações para Salomé, a peça decadente por excelência, e, entre seus ditos, encontram-se alguns epigramas bem wildeanos: “I caught cold – by going out without the tassel on my walking stick.” Contudo, quer na escrita, quer no desenho, percebe-se que Beadsley se inclinava para expressão sexual mais escancarada e mesmo fescenina. É significativo que o dramaturgo irlandês objetasse às gravuras para Salomé, que teriam esvaziado a peça do seu conteúdo místico. As ilustrações de Beardsley para Lisístrata, de Aristófanes, são francamente pornográficas. E nada que Wilde escreveu é tão saidinho quanto:
There was a young lady of Lima
Whose life was as fast as a steamer.
She played dirty tricks
With a large crucifix
Till the spunk trickled right down her femur.
Under the Hill foi a tentativa literária de maior fôlego por Beardsley. Ainda assim, mal cobre cinqüenta páginas. Under the Hill não tem a menor preocupação com a vera putaria finissecular. É uma fantasia pornográfica sobre as idas e vindas do cavaleiro Tannhäuser no, ou antes, sob o Monte de Vênus. O mote vem duma trova popular alemã, porém a baliza mais importante é a versão que Wagner fez numa de suas primeiras óperas. Por levar ao absurdo a mais absurda das expressões artísticas, Wagner, o George Lucas do século XIX, era idolatrado entre os decadentistas (Beardsley tem uma gravura intitulada The Wagnerites onde o público, em vez de Tristão e Isolda, parece assistir ao enforcamento duma figura inócua e antipática, p. ex., um bandeirinha).[3] Beardsley, que escrevia o romance aos golinhos em salões de cassinos e hotéis franceses enquanto expectorava tuberculose, significativamente não chegou ao ponto onde Tannhäuser se enoja dos excessos fornicativos e vai, em vão, pedir perdão ao papa.
Em Under the Hill, Tannhäuser é um dândi flanando numa Vila Mimosa monegasca, um Des Esseintes venéreo, e a prosa propõe-se a infundir experiências estéticas sofisticadamente decadentes. Não há enredo. Enredo é exposição, tensão e resolução. Beardsley queria hiper-estetizar, tal qual Huysmans em À Rebours, onde tampouco há enredo. Essa proposta antinarrativa escapou à crítica de começos do século XX quando o romance, expurgado, foi publicado, passada já a onda decadentista. Os capítulos são, pois, meras cenas que apresentam os prazeres da cama, mesa e banho, do palco, parques e pavilhões, dos períneos e priapos na corte de Vênus. Experimentamos requintes como punheta em unicórnio, balé com pastorinhos e pastorinhas árcades corrompidos por grã-finagem, coitos com garrafa de champanhe, mas também coprofilia e outras delícias. Só faltou a fantasia do Wando – transar em banheira com gelatina. Mesmo a rotina cotidiana, embora aristocrática, toma proporções fabulosas. A toalete matinal da deusa dispõe de nada menos que treze serviçais, fora pombas sarradoras e anões brigões. No melhor espírito baixo-império (séculos IV-V e XXI), a aparência teatraliza-se e os gêneros são mais uma peça do guarda-roupa: “Some of the women had put on delightful little moustaches dyed in purples and bright greens, twisted and waxed with absolute skill; and some wore great white beards, after the manner of Saint Wilgeforte” (cap. III).[4] A atenção ao vestuário, meticulosa, clama pela maior quantidade possível de peças e acessórios – não à toa predomina a moda rococó, período supremo da roupa como carro alegórico abre-alas. De fato, a ambiência setecentista perpassa Under the Hill e é mais perceptível ainda nas gravuras que ilustram o livro, confirmando, incidentalmente, a influência rococó no arnuvô (Beardsley ilustrou, carregando no estilo de época, o poema de Pope, O Rapto da Madeixa). Entretanto, o romance não está ancorado num período preciso. Tannhäuser, ele próprio personagem wagneriano por assim dizer, lê a partitura d’O Ouro do Reno, de Wagner. Na célebre gravura da toalete de Salomé, há os mesmos paradoxos temporais. O cômodo e o vestido da protagonista, personagem bíblica, sugerem ambiência finissecular e podemos ler títulos de livros oitocentistas como Nana e Manon Lescault enquanto o cabelereiro, mascarado e rendilhado, pertence a um palco de commedia dell’arte. No romance, são constantes referências a pintores, atores, poetas, libertinos, músicos, gastrônomos das mais diversas eras. E a gramática tem algo de arcaizante com contrações ‘twas ou ‘tis.
A prosa de Under the Hill alterna do ensaboadamente sugestivo ao escrachadamente pornográfico. É sobretudo por essa alternância que sentimos cosquinhas acima das sobrancelhas. Poucas linhas separam “there were buttons so beautiful that the button-holes might have no pleasure till they closed upon them” de “As the tray was being carried away, the capricious Florizel snatched as usual a slipper from it, and fitted the foot over his penis, and made the necessary movements” (cap. II). Nunca há palavras chulas, ao menos em inglês – o leitor precisa recordar do seu Catulo para decodificar o verbo irrumate.[5] A boca-suja fica por conta do francês: frôler, fouteur, fesses, couillons, tétons du dérrière. Até nomes próprios como Pénillière, Mirliton e Minette camuflam pornofonias – respectivamente, Pentelho, Chuchu (vagina) e Minete (palavra, aliás, que não só entrou no português, como também, vejo agora, no russo, no armênio, no holandês entre outros, testemunha do soft power no hardcore que as putas francesas detinham). Menos que tentativa de driblar a censura – o romance não foi publicado em vida do autor –, o uso do francês deve ser um recurso para adensar a atmosfera elitista, às vezes vulgar mas nunca demótica. Em francês, afinal, foi escrita Salomé. Beardsley até sugere uma chave de investigação lexical ao se referir ao Dictionnaire Érotique Moderne de Alfred Delvau. Outros nomes próprios se remetem a personagens ficcionais como Sarrassine e La Zambinella, ambos saídos dum romance de Balzac que trata de hemafroditismo e castração; a personagens históricos, sobretudo greco-romanos; e a puras invenções como a aia Priapusa (obviamente variante de Priapo). A riqueza de referências saidinhas, algumas delas bastante obscuras e agravadas pelo fato de o texto nunca ter tido uma edição crítica, faz com o leitor desconfie que qualquer coisa esconda safadeza. Vejamos uma curta passagem, sem a pretensão de exaurir os significados:
Thorilliere’s declining strength, Astarte’s affection for Roseola, Felix’s impossible member, Cathelin’s passion for Sulpilia’s poodle, Sola’s passion for herself, the nasty bite that Marisca gave Chloe, the épilatière of Pulex, Cyril’s diseases, Butor’s illness, Maryx’s tiny cemetery, Lesbia’s profound fourth letter, and a thousand amatory follies of the day were discussed. (cap. IV)
Thorillière foi um ator francês do século XVII. Por que ele está ficando brocha, não sei. Astarte era uma deidade assíria que se interpretou como propiciadora da fertilidade e sua favorita Roseola talvez signifique Rosinha, isto é, a perseguida das multidões. Felix é feliz por dotadão. Sola reflete seu vezo masturbatório. Marisca, em italiano, é um hemorróida cicatrizada. Chloe é epiteto grego, “verdejante”, para Deméter, outra deusa da fertilidade. Pulex, em latim, é pulga e épilatière não encontro em dicionário nenhum, mas parece significar “depilatório”. Qual a conexão sacana de depilatório com pulga, não sei. E por aí vai. Oscila-se do claro ao obscuro, provavelmente passando pelo sem sentido.
Como nalgumas peças de Pinter onde se sente a ameaça sem que a entendamos direito, em Under the Hill atrás de cada frase, de cada referência, de cada galicismo parece espreitar uma safadeza cabeluda. Fica renovada aquela sensação de leso da patota que experimentávamos aos oito anos de idade ao ouvir piada de sacanagem e não pescar o sentido. O que seria afinal siririca?! No primeiro capítulo de Under the Hill, Tannhäuser chega aos portões do Monte de Vênus, recamado de ervas exóticas, pálidas colunas, lindas mariposas – metáforas banais, no contexto, para pentelhos, pernas e vulva. Mas quando o herói almofadinha penetrou no monte, “A wild rose had caught upon the trimmings of his ruff” e ele hesitou espanejar a “offending flower”, que temos aí? É super-refinamento, a flor como entidade agressiva? Ou flor é mênstruo e o rufo são os pentelhos masculinos? Nesse mesmo primeiro capítulo, fala-se das “astonishing illustrations to Jones’s Nursery Numbers”. É obra libertina? Ou só mesmo um livro infantil com gravuras bonitas? Ou ainda Beardsley inventou o título para nos deixar em suspenso? Num banquete, servem-se “artichauts à la Grecque”, que é mesmo um prato de aspargo. Mas há duplo-sentido? Outra iguaria é “charlotte de pommes à la Lucy Waters”, a qual, pelo que verifiquei no cardápio da Lanchonete Baiano da Lapa, não existe. Talvez a leitura correta seja Lucy Walter, amante de Carlos II da Inglaterra, e pommes equivaleria a “seios” (apesar dos retratos mostrarem-na com peito epurizado). Como Beardsley esboçou o romance episodicamente, é capaz de muitas referências não significarem lhufas, meros rípios na prosa poética, o que não anula o efeito sugestivo por toda a parte.
Quando Ballard escreveu Crash, o escandaloso romance pretendia expor que todos os objetos e todo o corpo são zonas erógenas. Em Beardsley, essa idéia é avançada, p. ex., quando arrola o fã-clube de Vênus: “Every scrap of her body was adored. Never, for Savaral, could her ear yield sufficient wax! Never, for Pradon, could she spit prodigally enough! And Saphius found a month an interminable time.” (cap. IX) Contudo, num nível talvez menos consciente, a incompletude da história e o caráter ora alusivo, ora explícito, em Under the Hill erotiza a prosa inteira. É como naquela postagem internética que constatou as propriedades pornogênicas da pura combinação de verbo e objeto direto em português: “limpar o oboé” ou “escovar o elefante” clamam por uma piscadinha sacana. Todas as palavras são eróticas.
Bem, voltemos ao XVideos, canal erotofonofilia.
[1] Um dos melhores continuadores do estilo de Beardsley, fundindo as tendências nipo-helênicas com as rococós, encontra-se no irlandês Henry Clarke, que ilustrou os contos de Poe. Em particular, a gravura de Tannhäuser em Under the Hill prenuncia o estilo de Clarke.
[2] ELLMANN, Richard. Oscar Wilde. Londres: Hamish Hamilton, 1987, pp. 290, 403.
[3] Cf. ROSENTHAL, Donald. “Aubrey Beardsley’s Drawings of Tristan und Isolde”, Wagneriana: a publication of the Boston Wagner Society, pp. 4-14.
[4] Vilgeforte é uma santa, barbada, do catolicismo popular.
[5] A resistência contra palavrões na página impressa durante o século XIX e começos do XX é um dos fenômenos lingüísticos mais intrigantes. Os russos, p. ex., que xingam pra caralho, só começaram a registrar em dicionários o mat, o calão que todo mundo sabe, em fins do século XX. Não à toa, Ângelo Segrillo, historiador brasileiro especializado em Rússia, publicou até um glossário coloquial para cobrir a lacuna na década de 1990. Tem coisa pior do que te puteaream a mãe e você não entender o xingamento?
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