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Inteligências Artística e Artificial (reflexões de burrice adquirida)

  • Foto do escritor: Álvaro Figueiró
    Álvaro Figueiró
  • 12 de jul.
  • 9 min de leitura
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 ChatGPT, me dê um bom título.

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Nada revela mais burrice do que quando as gentes se metem a falar sobre inteligência. Para provar o ponto, vim escrever este texto sobre inteligência e no plural. Em todo o caso, minha burrice é de se esparramar por parágrafos e ainda sobrar pra passar no pão. É burrice sostificada. A galera burra à vera, a profissa, a com registro da Ordem, restringe-se “ao retuíte, ao meme, ao bordão e à citação” como repetia o Prof. Voxpopuli (apud Glommer). É burrice bronca. Uns anos atrás, uns revolts se revoltavam voltaicos que a inteligência artificial, em vez de lavar prato ou arrumar a casa, estava escrevendo poesia e pintando. Bem recente, respingou nas telas choramingos e chororôs contra Wes Andersons e Ghiblis saiberfalsis. Agora agorinha, polemicaram de destrinchar acaso o Velvet Sundown, mesmo com tal nome, seria carne-e-osso ou cripto-e-silício – pornô, cúquies e easy listening! 🗨 Pérfidos cérebros eletrônicos imitões! Artista é tudo vagabundo mermo! 💬 🗨 Querem fazer côuver do Jota Quest, mas não querem lavar a louça!

O povo está baratinado tanto sobre o propósito da inteligência quanto sobre o caráter da arte.

O nosso cérebro evoluiu mesmo, na moral, é pra carregar tora, fugir de pedrada, empurrar do perau o pai, assar o mamute no ponto. Pintura, poesia, geometria, música, filosofia, isso tudo é derivativo e, como tal, firula. (Continuo achando que a principal razão pro aumento cerebral foi a seleção em prol do controle fino das mãos, afinal o Homo sapiens é o único animal que caga e fica com o rego sujo.) Na escala cósmica (fato ou potência), é quase certo, a inteligência humana deve representar a micharia mínima para criar cultura – isso se não somos tão lesos a ponto de não reconhecermos certos bichos como também dotados de cultura, nenhum devaneio visto o tempão que o Homem demorou para reconhecer a humanidade nos outros (isso vale também para os queridinhos povos originários, que, cada qual a seu gosto, também se acham o último filé de foca do iglu).

Quer ver como somos burros pacas? Digo em uma só palavra: Conjectura de Goldbach. Há quase 289 + 11 = 300 anos tá rolando esse perrengue de provar que todo número par inteiro maior que 2 pode ser obtido pela soma de dois números primos (p. ex., 22 = 17 + 5 pra tu aí que tem menos de 8 = 5 + 3 anos). ¡¡¡Porra!!! ¡¡¡♯*¥%$*!!! ¡¡¡!!! Esse a) é um problema que as crianças de oito anos entendem e b) é, no pêlo, + soma e  ÷ divisão. Nem demonstrar uma idéia menos saidinha a gente consegue. Taí o Russell e o Whitehead que se estreparam em três volumes para provar que 1 + 1 = 2. E NÃO CONSEGUIRAM! Isso sim, se estiver sendo transmitido, é um 7 a 1 galático.

Na verdade, o que nos faz humanos é, menos que compor samba, lavar prato. O samba é mais algoritimizável que o enxágue do copo ensaboado, que tem trocentas ao cubo mais variáveis, se feito da forma orgânica, não mecânica, como um humano faz. O samba é tal célula rítmica, tal progressão harmônica, tal linha melódica, tal instrumentação. As variáveis, na música, são tão simples que geral ignorantão da teoria reconhece flauflau vários gêneros.

Há três motivos para a superintelectualização da arte em detrimento da lavagem de pratos. Primeiro, o desconhecimento do público sobre os procedimentos composicionais, formulaicos, algorítimicos – no popular, receita-de-bolo. Segundo, o lero-lero de muitos artistas sobre o próprio metiê – até a pintura abstrata se viu enredada em mistificação narrativa, afinal, ¿quem come mais gente? ¿artista ou engenheiro? O Romantismo turvou o artesanato presente na criação. ¿Quem come mais gente? Cavaquinista de roda de choro ou relojoeiro? Terceiro, last but last, na média a arte paga, marginalmente, mais que a lavagem de pratos.

Curiosamente justo o período anterior ao Romantismo vivera uma voga de música aleatória. Apesar de precursores, o primeiro método para tirar som de dado data de 1757, Der allezeit fertige Polonoisen- und Menuettencomponist de Johann Philipp Kirnberger. Daria para traduzir como “O Compositor de Polonaises e Minuetos Pau-pra-toda-a-obra”. Não se pense que Kirnberger era reles músico cachaceiro, ou antes, genebreiro. Era teórico que até propôs alternativas de temperamento, o que explica, em parte, seu frissom combinatório. Mas prefiro exemplificar o método com obra um pouco posterior, 1781, onde o código-fonte está menos bugado.[1] Sua tradução poderia ser “Tabela da qual se Podem Tirar no Dado Inúmeros Minuetos e Trios para Teclado”. O lance é simples. Até tu vai entender.

 

1. Vamos compor um minueto! Ípi! Uhu!

Vosmicê precisa de:

a) dois dados* donzelos de tavolagem;

b) papel-de-holanda;

c) uma pena de ganso;

d) tinta ferro-gálica (a melhor é a que mistura bile de texugo e bexiga de enguia);

e) pinta artificial ou varíola natural;

f) pó-de-arroz;

g) fita de seda ou, ao menos, cetim;

h) sapato de fivela;

i) velas de sebo (pode ser o da própria genitália).

* Os dados são de seis lados, porque o RPG ainda não tinha sido inventando como tampouco havia o menor incentivo para esse jogo se difundir pela Europa Iluminista, tendo o século XVIII, HP 3/71, mal vencido Mordhur, LV 91, DEF 177, o demônio elemental guardião dos mil calabouços, num triplo lance cagado no dado de 20 lados, doravante icosaedro.

AGORA É SÉRIO! PRESTA ATENÇÃO!

2. O minueto tem duas partes, cada qual com 8 compassos.

3. Há uma partitura onde estão impressos e numerados 176 fragmentos musicais, cada qual durando um compasso. São 176 fragmentos, porque Vossa Musicância há de jogar dois dados por 16 vezes (11 × 8 × 2 = 176).

4. Para a primeira parte do minueto, há uma tabela que cruza os 8 compassos a se compor com os números obtidos pelo lance dos dois dados. Outra tabela serve à segunda parte. O número na tabela corresponde ao fragmento na partitura já composta.

Verbi gratia: Para o primeiro compasso, Minha Randomideza tirou 7 nos dados e tabela lhe mostra o fragmento № 104. Anote, vi prego, este número. Para o segundo compasso, Sua Regularíssima Hexaedra tirou 12 (a Divindade protege os seus) e tabela lhe mostra o fragmento № 130. Anote, s’il vous plaît, meine Damen und Herren, este número. Tá.

5. Abra a partitura com os fragmentos já compostos e os vá copiando conforme a seqüência gerada pela tabela.

6. Depois é só estrondar na espineta que as popozudas vem que vem que vem tudo quica quicando.

 

O propósito dessa primeira formação do Velvet Sundown era alongar a naite e curtição do instrumentista que estivesse com o repertório limitado ou fosse roda-presa no improviso. Mulão queria ouvir os cravopianopancadões madrugada adentro, mas sempre algo “diferente”, manjas? Molezinha: só remixar de antemão os discos, ou antes, os rolos. E a noite podia ser longa pacas. Para o minueto, há 11¹⁶ combinações, ou na linguagem popular, 45.949.729.863.572.161, ou como dizem os matemáticos após Cantor, um porrilhão. Se Milordesa souber transpor, tem-se porrilhão × 23  de minuetos. O apelo desse divertimento porrilhonesco era tamanho que até publicaram obras de música por dado falsamente atribuídas a Haydn e Mozart.  A quantidade burlesca de combinações só escancara o caráter modular, altamente abstrato, da música.[2] Os autores dessa Würfelmusik simplesmente insistiam, de maneira mais bruta, na mesmíssima fórmula que um compositor convencional seguiria para peças musicais mais “orgânicas”.[3] 

Por ser a abstração que geral acha gostosinha, a música talvez seja a arte que mais se preste à algoritmização. Entretanto, experimentos com literatura combinatória não faltam. Em 1671, o esquisitão Quirinus Kuhlmann compôs um soneto cumulando o gênero do Proteusvers com o gosto barroco por antíteses e cultismo ao deixar ao leitor boa parte do encargo de armar o poema. Só as primeiras sílabas e as rimas são fixas. O resto de cada verso se monta escolhendo entre um rol de palavras, no mais monossilábicas. Título: Der Wechsel menschlicher Sachen (“A Mudança das Coisas Humanas”), tchã! Talvez o caso mais famoso de literatura combinatória seja Cent mille milliards de poèmes do grande experimentador e humorista Queneau. O livrinho, publicado em 1961, apresenta dez sonetos impressos no recto, mas cujos versos são recortados em tirinhas, de forma que, no dobra-dobra, o leitor teimoso, vagabundo ou imortal, mais dia, menos dia, pode terminar de compor e ler os tais 10¹⁴ poemas.[4] Ofendendo a cultura duns e ilustrando a doutros, convém lembrar que os escritores ligados ao Oulipo, como Queneau, queriam justamente libertar a literatura da inspiração romanesca e criar textos a partir de algoritmos. (Um dos mais célebres procedimentos empregados pelo Oulipo é o algoritmo S+7. A partir dum texto já existente, cada substantivo é trocado pelo sétimo substantivo que se encontra adiante num dicionário. O efeito é tanto melhor quanto mais conhecido é o texto-base.)

Talvez nem tudo esteja perdido e o artista ainda tenha uma sobra de “alma”, “inspiração” e “talento” que lhe permita perseverar a louça suja na pia. Como somos (repito) muito burros, é possível estarmos exagerando as capacidades da inteligência postiça. Qualquer processo mecânico ou mesmo fajuto que emule o humano ou só o orgânico já tá quase sendo convidado para vir conhecer nossos pais. Disso tampouco faltam exemplos. Numa época que mal tinha calculadora mecânica, fins do XVIII, por anos a fio o autômato de von Kempelen engabelou o público de que seria capaz de jogar xadrez e jogar bem. Não é de hoje que se busca psicoterapia no consultório barateiro do ChatGPT: em 1966 os tantãs da vida cotidiana também atribuíam superpoderes analíticos ao ELIZA. O Jogo da Vida, de John Horton Conway, autômato celular de 1970, gerou especulações se os quadradinhos estariam realmente vivos. (Perguntei pro ChatGPT qual foi o filósofo da mente ou teórico de inteligência artificial que tascou esse despautério, mas o pérfido sonso cérebro eletrônico ficou me enrolando em rebote de pergunta a modos ELIZA). E ninguém menos que um grande pioneiro da inteligência artificial bostejou, em retrospecto, doidas pretensões. Em 1971, Marvin Minksy estimou que os programas de computador se tornariam versáteis tão logo atingissem pífios 125 kb. Ele também achava que a inteligência artificial estaria no horizonte duma ou duas décadas.[5] E, enfim, qual criança, adolescente e até marmanjo, rebocado no Street Fighter, já não reclamou que a “máquina é mor apelona”?

Somos a espécie que cria (uns ainda creem) que o vento, a chuva e o trovão são provocados por pessoas muito grandes, muito especiais e, no mais, muito invisíveis, mas fora isso, gente como a gente. A gente é muito carente. Achamo-nos a última carne-seca ribonucleica do sopão químico, somos especiais, nada nos emula, temos uma alma imortal, nosso cérebro tem um borogodó diferente, mas basta uma bela fachada para que rodas-dentadas e equações polinomiais virem o mais límpido espelho. A gente é muito burro...

Com a generalização da arte feita por inteligência artificial, dois resultados antagônicos podem emergir ou, mais provavelmente, se suceder, sobretudo se o Homem perder a dianteira criativa na manipulação dos algoritmos (talvez se possa dizer vivermos hoje a reiteração da querela oitocentista pintura vérsus fotografia). Um resultado (ou o antecedente) seria a revalorização da perfórmance. A melhor música será composta pela quinta formação do Velvet Sundown, a clássica, aquela com o Freddie Jackson nos vocais e o Jaco McCartney no baixo, mas, ainda assim, continuará havendo o gozo estético supremo em ouvir o côuver cuver voz-e-arranhão daquele seu amigo chato. Que coisa maravilhosa é tirar som da guitarra e da garganta que até lembra Dezember Rain e Stairway over the Rainbow! A perfórmance é afinal amiúde a projeção do público no artista, o potencial em si reconhecido no outro. O peitchola sedentário não vidra esporte? Não nadamos tão bem quanto um pingüim, mas gostamos de assistir aos melhores atletas de natação. Em suma, o autor deve se extinguir antes do intérprete.

Contudo o outro resultado (ou o subseqüente), quer pela massificação, quer pela eficácia, pode ser uma desconexão completa da arte como obra humana. Mesmo a arte não como criação autoral, mas como mera perfórmance só teria valor para uma geração mais velha, a nossa. Para as gerações sociabilizadas de berço com a arte como produto inteiramente artificial o vínculo com o potencial humano pode vir a se perder de todo. A experiência estética passaria a ser muito próxima ou mesmo equivalente à da contemplação da natureza: uma cachoeira, ao contrário dum poema, rigorosamente não nos inspira. Uma sinfonia produzira o mesmo prazer que os sons da floresta, uma ilustração o mesmo prazer que um pedregulho bonito. Pior: talvez nem isso, considerando-se a quantidade de pessoas que não reparam em xongas exceto se as coisas vierem etiquetadas BOM, BONITO, CARO, DESEJADO, EXCLUSIVE, ALPHA GOLD, GUCCI.

Basicamente isso era o que queria dizer, os quatro parágrafos acima, só. Mas minha burrice é muito sostificadinha. Artista, né?

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[1] STADLER, Maximilian. Tabelle, aus welcher man unzählige Menueten und Trio für das Klavier herauswürfeln kann. Viena: Artaria Kompagnie, 1781.


[2] Vossa Internetância pode ver um resultado aqui da composição pelo método Kirnberger-Caraglia: https://www.youtube.com/watch?v=3SQYWsfL_Fo.


[3]  REUTER, Christoph. “Der Würfel als Autor: Würfelmusik und Zufallstexte des 17. bis 19. Jahrunderts”. IN: BANNERT, Herbert; KLECKER, Elisabeth (org.). Autorschaft: Konzeptionen, Transformationen, Dikussionen. Viena: Praesens, 2013, pp. 195-222.


[4] Que tu pode explorar, foda-se o copirraite, sem risco de rasgar as tirinhas em: https://www.laclassevirtuelle.fr/danquen2


[5] SAGAN, Carl (org.). Communication with Extraterrestrial Intelligence (CETI). Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1972, pp. 126-127, 161

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