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Leitor Lelé Lê Leitores

  • Foto do escritor: Álvaro Figueiró
    Álvaro Figueiró
  • 27 de mar. de 2021
  • 10 min de leitura

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Entre minha vasta obra – esboços, fragmentos, cacos, enredos, idéias vagas, compassos em números transcendentais –, o título cafoninha Cenotáfio aos Afetos Caídos era um escripturo conto sobre bibliofilia. O protagonista, cansado do conteúdo dos livros, colecionava só para ponderar sobre as dedicatórias. Nesses afetos estenografados, há juras de amor, cumprimentos maternais, parabéns de aniversário, gestos de amizade, munificência avuncular, autocomplacência, advertências, votos por sucessos nos estudos, celebrações pela aposentadoria. Até a bajulação se avista naquela dedicatória que abria com o babaovocativo “Chefe!”

Com o passar do tempo, ao contrário talvez do escripturo protagonista, eu comecei a me interessar por outras pegadas de quem passou pelos livros. Os leitores vestigiais estão em assinaturas, marginálias, ex-líbris, sublinhados, carimbos, folhas e flores para herbário, etiquetas de livraria, clipes, recibos de compra e marca-páginas (sobretudo os pouco convencionais como bilhetes de ônibus londrinos da década de 1930, recortes de jornal finlandês, notas de vinte reais[1]). Desdos treze anos, freqüento sebos e a maioria dos livros que comprei são de segunda mão, às vezes de segunda vista também. Minhas estantes estão carregadas de fantasmas. O ectoplasma gruda mais obviamente na tinta e no grafite das notas e dos grifos. Em livros mais antigos, a metáfora é mais fantasmal ainda: a sinistra combinação oitocentesca de papel reles e tinta ferrogálica corroía a página, criando, nos melhores casos, um estêncil e, nos piores, um rasgo linear.

Durante muito tempo, recusei-me ao poliamor da celulose. Por mais enxovalhado, sebento, tetânico, bichado e orelhudo, o livro era meu e só meu. Não me interessava o que outra gente tivesse a dizer sobre o livro. Quando em lápis, costumava apagar tudo que se intrometesse no papel impresso; quando em tinta, iludia-me dizendo que, rico, compraria uma edição virginal. Achava escrever em livro uma profanação, algo só reservado para aquele papel-higiênico mental que era o livro didático. Se soo purista, os verdadeiros talibãs bibliográficos condenam à damnatio memoriae os decaídos donos, suprimindo-lhes os nomes com liquidepêiper ou rasura. Hoje respeito os leitores em trânsito. Só continuam me irritando os parkinsonianos que sublinham em procelosas ondinhas ou os redundantes que marcam tanta coisa que é a palavra imaculada que chama a atenção. Tenho um livro onde o leitor cretino marcou duas páginas inteiras, de cabo a rabo, com canetinha fluorescente rosa-choque-chiclete-ploc. Você chega ao final do segundo parágrafo com metade dos cones e bastonetes tostados pelos raios-gama da insistente canetinha. O que ainda não tenho é a fleuma de ler em Memória Vegetal que Umberto Eco não via problema em dar uma anotadinha a lápis em cartapácios publicados no século XVII.

Há livros todos rabiscados nas primeiras páginas e limpinhos no resto. Pode significar leitura difícil abandonada, mas também que se perdeu o entusiasmo. As grandes revelações esperadas se mostraram triviais, senão boçais: o autor desmascarou-se tão leso quanto o leitor, talvez até mais. Quem nunca? As notas dos outros também perpetuam nossas ignorâncias. Em Harmonia Funcional de Koellreuter, alguém interrogou o seguinte trecho: “Podem ser dobrados [sic] nas tríades, se for necessário ou conveniente, a fundamental (de preferência) ou a quinta do acorde. Raramente dobra-se a terça. A quinta do acorde pode ser omitida.” Na minha primeira leitura, entendi só a interrogação. Hoje vejo esse ? e lastimo o leitor burrinho, só para lembrar depois, humildão, que também não havia entendido a passagem.

Os leitores fazem os livros seus pelos mais diversos meios. Os possessivos carimbam ou etiquetam o próprio nome pelo livro todo. Os inventivos suprem as faltas editoriais como quem improvisou marca-página colando barbante no interior da lombada. Os incongruentes encapam Dostoevsky com papel do Ursinho Pooh. Os pedantes acrescentam as próprias erratas.

Em certa forma, pareço-me sim com o protagonista do escripturo conto: cada vez mais o que me intriga são os signos quase ilegíveis fora do texto impresso. Hipérbatos, hipálages, monomitos, metanarrativa, tudo isso perdeu um pouco a graça. Um recibo de tinturaria ainda conserva o mistério. Meu interesse pelas marginálias veio pela doença mental – não a minha; a de parentes. Tenho uma tia esquizofrênica, aquele clássico da tia solteirona. Em 1997, ela pintou lá em casa com caixas de livros, maços de cigarros e coro de vozes. Nos lugares mais inesperados – não só dos livros, mas onde quer que se pudesse escrever –, na sua caligrafia peculiar, goticizante, geralmente em caneta vermelha, emergiam observações crípticas, palavras soltas, nomes, versos, citações. Desses estilhaços, menos intimidadores que as vozes, eu tentava restaurar uma cuca quebrada. Nas guardas dum álbum de fotografia danificado numa enchente, minha face infantil aquarelada, encontrei uma passagem de Baudelaire: “Pensas sonhar, mas estás lembrando”. Nunca encontrei essa passagem em Baudelaire. Talvez o próprio poeta estivesse declamando inéditos para minha tia.

Hoje me divirto interpretando os leitores e as suas involuntárias charadas. Há livros de que não lembro patavina, nem uma única idéia ou mesmo o nome do autor, exceto um achado fascinante entre as páginas – por exemplo, uma enorme mariposa ou uma tirinha de papel em letra formiguinha com nome estrangeirado, endereço e telefone sugerindo algum encontro espionesco. A memória obliterou de tal forma o livro que não consigo encontrar onde estaria essa tirinha. No caso da mariposa sei que não era Nabokov, mas esquecer o título do livro onde estava a tirinha apaga as poucas pistas (a presunção de intriga política, veio duma conjunção de fatores, alguns só entrelembrados como uma data propícia e um idioma subversivo). Mas, mesmo com colofão, a história do leitor vestigial é conto de raciocínio e imaginação. Jogos de Cartas, coletânea publicada pela Editora Abril, revela logo à primeira página verde-feltro uma figurinha adesiva dum cartunesco cachorro de olhos esbugalhados e, ao lado em advertente vermelho, a dedicatória, antes esporro grandigermânico: “Eu estou te olhando em!” Quem e o quê essa Shirley S. Ribeiro está olhando, hein? A fantasia mais preguiçosa vê ciumenta esposa apavorada com as pretensamente ingênuas saídas do marido para jogar truco. Mas que esposa (ou namorada) – percebo só agora – assina dedicatória com sobrenome? Na joinha Jugend ohne Gott de Ödön von Horváth há um questionário datilografado, a tinta azul reminiscente do papel-carbono de muitas cópias. Vejo a aflição do aluno em vez do prazer com a leitura. Em certos casos, a curiosidade frusta um bonito mistério. Os tratados de lógica e ontologia de Vincentio Remer, S. J., que comprei na Carioca a três merréis pertenceram, em 1940, a D. André Arcoverde, sobrinho do cardeal. Perto da eclesial assinatura, havia um recorte deliberado: qual epígrafe satânica – pior ainda, anticatólica – mereceria cair no índex das tesouras? “Ph'nglui mglw'nafh Cthulhu R'lyeh wgah'nagl fhtagn”? Fiquei chateado ao descobrir que não havia nada nesse espaço... Posso sonhar ao menos com o satânico – pior ainda, anticatólico – nome do proprietário anterior?... E a qual pessoa ou a qual instituição pertenceria o carimbo-chancela com abelhinha sobre o dístico “Servare modum” num livro sobre a expedição ártica de Franklin?

Há quem, não podendo pagar os livros, entrasse na livraria para xepar leitura aos golinhos, hoje um capítulo, amanhã outro. Fiz isso num sebo, mas para ler uma redação dentro do livro – não porque o livro fosse caro, mas sem interesse nenhum senão pela redação, cujo aliciante começo era:


My Trip to England


Sailing


After I had said goodbye to the servants, dogs and the cat […]


A redação era tão velha que, em vez de clipe, se prendia com alfinete. Após o nome da autora, Dóris Junqueira, alguém obstruiu a data com liquidepêiper (vovó Dóris escondendo a idade?), mas olhando o trecho censurado contra luz se via fácil 1937. A crítica interna já balizava a época: em Tenerife, a menina observou muitos soldados no cais, “all because of the Comunist [sic] war”. De Londres trouxe um cãozinho e espantou-se que o jeca Portugal tivesse em Estoril “such a nice place”.

Nada rende mais exegese pelos exegetas que a exegética da exegese das obras preferidas pelos exegetas. Meu Ulisses, edição da Modern Library, pertenceu a um Luís de Freitas em 1944. Não só pela diferença sutil nos algarismos, talvez seja outro o anotador, azul e vermelho, mas, mais obviamente também, pela menção a um livro posterior: “Todorov. Anál. estrutural da narrativa. Vozes, 1971”. Mas, ao mesmo tempo noto similaridades em certas letras, o dê de lacinho. Nossa caligrafia vai mudando com o tempo e talvez o Luís de Freitas, como muitos, tenha ficado intimidado com o romance e só muitos anos depois o encarou. Ulisses é por excelência o livro do signo oculto – às vezes no limite da vigarice – e, lendo as notas do leitor vestigial, tento decifrar suas tentativas de decifração. Num quadro de anagnórise homérica, identifica Bloom com Ulisses e Stephen Dedalus como Telêmaco, mas refuga desesperado perante a adulterina Molly:


Molly ← Margarete (Goethe?)

ñ é Penélope


Só na página seguinte enfim admite Molly como Penélope, trideificando-a como “Terra(GeaTellus)”.

Essa edição da Modern Library abre cada uma das três partes do romance com capitulares enormes, de página inteira. Assim o íncipit do romance, “Stately, plump”, tem um esse gigante. Seja qual fosse a intenção da diagramação, nosso putativo Luís de Freitas endossou uma das mais místicas interpretações: Ulisses teria a mesma circularidade de Finnegans Wake. No final do monólogo de Molly, anota no mântrico yes “É o S inicial”; na outra ponta, “É o S. final”. A forçação-de-barra ganha contornos metacristológicos na constatação de que:


ω → α


Marginálias como fonte, um bom estudo psiquiátrico sobre quantas pessoas tiltaram tentando zerar Ulisses (dica: é basicamente um romance sobre um dia em Dublin em 1904).

No meio do livro, há um retrato dum hircino Joyce, recortado, pela qualidade do papel, duma revista, sem nome nem data (no verso, um teco de artigo sobre o poeta inglês Stephen Spender com menos substância que conversa sobre o tempo numa pracinha de Quiçamã: “As angústias do presente que são senão o reflexo das vicissitudes do passado?”). Apesar de toda a baboseira de que a imagem superaria a escrita, o fato é que pertenço à última geração que viveu um espartilho visual: o semblante dalguma figura era aquilo que a tevê, a revista, o jornal, a enciclopédia, a orelha do livro mostrava. É por isso que havia gente que era uma e só uma fotografia (Scott Joplin, Chopin, Verne, Mahler). A foto de Joyce era, portanto, tesouro. É isso que explica alguém ter colado o retrato de Walter Benjamin na capa amarela-urânio numa coletânea de artigos do lerolerólogo alemão. Por acaso, sei que a foto saiu dum catálogo da própria editora Suhrkamp publicava. Uma imagem vale um trilhão de cruzeiros-novos. Quem se preocuparia hoje em guardar foto do autor dentro do livro?

Há os esforços interpretativos absolutamente fracassados, alguns de causar dó. Num dicionário de russo-português, Walkir (Rio, 1989) copiou, numa letra infantil, uma ou outra palavra mais elementar: рано, раньше (“cedo”, “mais cedo”). Fez observações como “быть = to be, ser”. Ele achou importante registrar помогите, “socorro!”. Nas guardas, há cinco linhas com sinais ininteligíveis, decididamente não cirílicos, conquiformes, talvez taquigráficos, talvez esquizofrênicos.

O pendor recursivo é mais evidente nas crianças, repositórios de repetições e rimas, mas o adulto só se refina um pouquinho (prova-o o esforço em tornar Ulisses circular!). Não tenho como negar um sorriso ao topar com matrioscas textuais, hiperlinques materiais. Em Fruticultura Brasileira, dentro do artigo sobre o coqueiro, encontro um folheto sobre coqueiro-anão. Teria gritado de alegria se o folheto contivesse também um pacotinho de sementes de coco, uma escala decrescente de informação, até o microfilme, sobre um mesmo tema. Em The Gentleman’s Club of London (sentido literal, não bordelengo), há uma carta da firma Francis Russell, “surveyors, valuers and estate agents” dirigida a “The Occupier” em 4 Connaugh Square, Londres, W2 em 6 de abril de 1994:


Forgive me writing to you without the benefit of a formal introduction. However, clients of ours were recently let down when they failed to acquire the house they wanted in the square.

Accordingly, the purpose of this letter is to inquire whether you might be interested in selling your house.


E assim, nesse cerca-lourenço em papel patrão, segue por mais alguns parágrafos. Assinatura de Lorde Francis Russell BSc ARICS ASVA. Very British indeed! Um livro esnobe sobre um assunto esnobe lido por um esnobe num endereço esnobe recebendo uma proposta imobiliária esnobe por um lorde esnobe – parando no apartamento dum pé-rapado paracambiense esnobe.

Por falar em esnobice, nos meus tempos esnobes de Oxford Fluminense, nutria a esnobe curiosidade de saber se os títulos esnobes que pegava também haviam sido lidos por mais alguém conferindo os cartões de leitura. Às vezes, até conhecia até os caboclos. Essa guria com já quem tive um afer, olha só, pegou também o Apuleio da Loeb, in-trigésimo-segundo vermelho. Deve ser por causa do culto de Isis, matutei. E este desmiolado lendo Lévi-Strauss? Se entendeu o sentido da leitura (da esquerda para a direita), tá no lucro...

Quando compro livro que conserva os cartões, continuo dando espiada. Aí me interessam várias coisas: a biblioteca donde saiu o livro; quais, quantos e quando foram seus leitores; e se o livro foi oficialmente descartado (pruridos morais). The Plays of Christopher Marlowe ingressou como o detento 822.9 M349p da Biblioteca da Epcar em 10 de julho de 1965 (crime: dramaturgia elisabetana) e permaneceu em confinamento solitário, sem um único leitor, até sair do cárcere. Pode ter recebido visitas íntimas na própria xilindroteca, não sei. Mas, em todo o caso, como escreveu o chatonildo Walter Benjamin, “Para o bibliófilo, a verdadeira liberdade para todos os livros é um cantinho nas suas estantes.”[2]

Se você freqüenta um mesmo sebo durante certo tempo, calha de adquirir despojos duma biblioteca particular, cujos signos mais visíveis são ex-líbris, assinaturas ou etiquetas de classificação. Graças à lógica peculiarmente ruim dumas etiquetas, é evidente que alguns dos livros pertenceram uma mesma pessoa:


QUARTO

PRAT. 13

LIVRO 6


Essa recorrência proprietária cria simpatia, a adoçada egolatria em admirar quem gosta das mesmas coisas que nós. Quando os gostos são exóticos, há desejo mais forte ainda de conhecer o alterleitor, que muitas vezes desaparece no pique-esconde da assinatura, onde a caligrafia se torna mais idiossincrática e o trenzinho da sintaxe descarrilha. The Polar World de Patrick D. Baird e Communication with Extraterrestrial Intelligence (CETI), editado por Carl Sagan, trazem a mesma mão interessada em confins, em extremos. Um deles, o polar, registra nome e data, a custo decifrados:


Malvino Reis Costa

Rio, nov. 1966.


O último sobrenome é que embola tudo: ora acho ser “Leite”, ora “Hertz. Testei todas as hipóteses no Grande Oráculo, o Google – em vão. Quem seria Malvino Reis das Couves? Um dos raros glaciólogos tropicais? Algum diplomata ou milico fissurado num Brasil Grande também glacial? Mas militar não sempre assina junto à patente? Algum cientista que, anos depois, desembarcaria na estação de Comandante Ferraz? Ou seria astrônomo? Um simples escapista científico? Ambos os livros possuem vasta bibliografia manuscrita, logo não se trata de mero bisbilhoteiro.

Outras vezes nem precisamos abrir o livro para identificar sua origem numa biblioteca particular. Basta olhar a lombada – não digo pela encadernação uniforme, coisa que talvez hoje nem os ricos possam bancar, mas pelos títulos mesmo. Perto da Praça Tiradentes há um sebo com cinco, seis prateleiras inteiras dedicadas só a bridge. Deve ser a maior coleção sobre bridge no Brasil. Obviamente a livrarada veio em bloco do espólio dum aficionado. Não resisti e perguntei ao dono do estabelecimento, quem me confirmou a coleção unigênita.

E quais serão meus vestígios nos livros? Em princípio, os mesmos que legarei para o planeta: nada. Não assino, não dato, não anoto, não sublinho nas páginas. Até dedicatória eu costumava escrever em cartão. Restarão só as manchas de café e os papelotes que servem de tosco fichamento. Além do que julguei importante, do que achei curioso, das referências, das constatações de má tradução, no verso meu fantasma persistirá em rascunhos de ofícios, relatórios e laudos históricos, boletos bancários, partituras, desenhos tronchos...

Não deixo de ser o verso e o reverso disso.

Minhas florezinhas estranhas neste hortus siccus.


[1] Singularmente encontradas em Memórias de um Rato de Hotel do Dr. Antônio. [2]Für den Büchersammler ist nämlich die wahre Freiheit aller Bücher irgendwo auf seinen Regalen.” Citação saída de “Ich packe meine Bibliothek aus”, texto que não é chatonildo nem lerolerístico. Todo mundo às vezes acerta.

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