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Justiça Divina e Festa da Firma

  • Foto do escritor: Álvaro Figueiró
    Álvaro Figueiró
  • 30 de ago. de 2023
  • 8 min de leitura

Atualizado: 18 de dez. de 2023


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– Você é um lesado!

Pela branca barba mosaica, o finado advogado Paulo Nazaré berrava comigo puto, nenhum fenômeno meteorológico novo. Girou puto na cadeira de volta à mesa. Parou dois, três segundos. Puto. Girou de volta a mim com o dedo em riste, ainda puto:

– Isso aí é gosto de intelectual pelo submundo! – bufou puto enquanto esmurrava puto o calhamaço de processos e os livros de Direito Administrativo.

Os outros colegas da diretoria também me recriminavam, não tão putos. Era dezembro de 2016, o ápice da crise financeira do Estado. O salário estava atrasadaço, o décimo-terceiro ia ser fatiado em nove vezes, melaram progressão e triênio, o vale-refeição tinha morrido de inanição, continuávamos por fora das decisões, o prédio estava infestado com ratos, o elevador pifara, os telefones eram pais-de-santos, já já até a luz seria cortada. Tipo Olimpíadas de Moscou, os concursados decidiram boicotar o churrasco de fim de ano. Só os comissionados do Pacto de Alerjóvia, no aperto da precariedade, confirmaram e isso nem todos. Conviva espontâneo, não alinhado, só eu. Mas era ainda o meu primeiro aninho na Repartição e, embora não pareça, em ambientes frescos sou sociável e até boa-praça – autista extrovertido, cara-de-pau tímido, escolha você. Paguei os R$ 25 e pedi para capricharem no arroz e no vinagrete.

Na sexta-feira da confraternização, encarei de novo a putice veterotestamentária de Paulo Nazaré.

– Nossa representação diplomática junto ao lúmpen!

Ele se referia aos colegas da diretoria onde havia começado a trabalhar como lúmpen e ao seu diretor como o Lixeiro. Sempre recordava puto que fritavam bife na chapa dentro da própria diretoria lumpemproletária. Na nossa diretoria pós-lúmpen, comparativamente ele se sentia no Institut de France – citava Eliot, Camões, Mann à vontade. Também não se fritava bife nela. Ainda assim, viva puto.

– Traga notícias das suas investigações no bas-fond, Embaixador!

Gargalhou puto, balançou a cabeça, ajeitou os suspensórios. Encarou putossatisfeito o despacho. Bateu o carimbo contra o despacho tão puto que você até conseguia ouvir a mola tinindo. Quer dizer, ao menos eu conseguia – você eu já não sei, não me lembro de ti na sala.

– Mas esse menino é um lesado!

Quis rir, mas começou a tossir, porque só tinha um pulmão, o outro comido pelo câncer.

A confraternização aconteceu no próprio Órgão, no vazio terceiro andar. O Estado estava/está na pindaíba, mas tinha/tem um andar inteirinho ocioso. Na mais alta fuleiragem, o surrasco preparava-se numa paradigmática laje, avanço arquitetônico sobre bife na chapa no meio da diretoria. Dois andares acima se sentia a carne queimada pela caixa de iluminação. A banda –, baixo, teclado, guitarra com vocais – ouvia-se pelo prédio inteiro, sobretudo, presumo, na biboca da Secretaria de Fazenda no andar abaixo. Não foi convidada para a festinha. Devem ter ficado tão putos quanto Paulo Nazaré.

A música oscilava entre o forró e o pagode. Eventualmente a banda ariscava Tim Maia e Legião Urbana, mas sempre como forró ou pagode. De comida, sequer o arroz fizeram e o feijão tinha metade da fauna sul-americana. Tive de me arranjar com o bizarro menu de vinagrete, farofa e rabanada. A mongonga, misturada a duas caipirinhas, maceradas com cabo de pá que nossos capiaus recusaram pelo sílex defeituoso, não revelou à Humanidade nenhum elemento químico novo. Paulo Nazaré tinha razão: tá mesmo com cara de submundo. Lembrei dos meus quinze anos comendo coxinha queimada em Coelho Neto com guaraná Tobi quente em meio a motoqueiros-mirins no globo-da-morte epurizado que era a calçada, tudo isso ao som de Wando no videoquê – sinfonia sensorial. Nessa época, ao menos, meus pais não atrasavam a mesada.

Agora é a hora do sorteio dos chocotones da Bauducco. É a coisa mais sostificada da tarde. Fique o risistro. Conforme se anunciam os felizardos, minha inteligência superior, acima duma goiaba bichada (QI do bicho-da-goiaba incluso), percebe armação para agradar a todas as diretorias. Brasil, desde 1500 buscando a paz social sem resolver os conflitos. A chefe do RH pegou outro papelzinho e, fazendo mistério, falou no microfone:

– O próximo ganhador... hum... ele... hum... vive de panamá!

MEU DEUS, QUEM SERÁ O JEQUINALDO QUE USA PANAMÁ EM 2016?! perguntei-me sofrido enquanto tirava o panamá para enxugar a testa.

– É o historiador! – respondeu Tico.

– É o que conta história! – explicou Teco.

Peguei o microfone. A emoção foi tão grande que até engasguei na quarta palavra:

– Quero agradecer ao meu pai, à minha mãe e especialmente a você.

Ergui o chocotone que nem a Jules Rimet. Gesto mais digno, gesto mais nobre, gesto mais renascentista do que a foto demagógica que tinha logo de cara no saite da Repartição: um assistido beijando o TÍTULO DE PROMESSA PRECÁRIA DE POSSIBILIDADE VAGA DE CHANCE EVENTUAL DE CONCESSÃO DE DIREITO REAL DE USO da casa que, durante anos, ele construiu por conta própria, tijolo sobre tijolo. Mas eu sou o último dos aristocratas. Meu desengoço é sempre acintoso. Jeca e blasê. O cochotone está aí erguido com duas mãos pra quem quiser ver.

Ex. 1: Crave o leitor os olhos no chocotone!

O chocotone está agora no meu colo enquanto me arrependo de não ter perguntado se o quitute podia se contar como parcela do salário atrasado. Não vendo nenhum constrangimento a causar, decidi ir embora. Da minha diretoria, só permaneciam duas pessoas, uma vovó comissionada e o Amado Chefinho. Falei com a comissionada que vazaria, ela também vazaria, pegamos a chave da nossa sala com o Amado Chefinho, deixei o chocotone numa cadeira, subimos dois andares, catamos bolsas e mochilas, aproveitei para ir ao banheiro.

Ex. 2: O leitor acompanha essa cronologia singela?

Tudo mal durou dois ou três minutos. Desci os dois andares. Cheguei ao salão do terceiro andar – o salão e eu em contrazum. Um aturdimento, um alheamento, um assombro, uma vertigem, uma gastura, um estranhamento, uma distorção espaço-temporal, uma ziquizira em suma. Há algo bem errado aqui. Algo bem errado aqui, urso-polar camuflado no calçadão de Bangu. Abafo um grito. Ninguém deve perceber meu mal-estar. Pelo menos, ainda não. Sem escândalo. Pelo menos, ainda não. Miopia, astigmatismo, coloboma de nervo ótico, cratera no campo visual, 50% de visão no olho direito, 35% no esquerdo. A culpa é dos olhos quebrados, só pode ser. Olhe com mais atenção, Figueiró. Foco. Você vê com a mente. A vista arrombada criou cérebro esquisito, lateralização toda zoada. Meu pai apontando passarinhos na árvore e eu, aflito por não ver nada, um The Turn of the Screw ornitológico. Olhe com mais atenção. Foco.

Meus olhos patolam o salão todo com a insistência do motorista que vasculha o vasto estacionamento atrás do carro que não está onde deveria estar. Porque meu chocotone tampouco está onde deveria estar. Olhos quebrados, mas memória espacial boa. A cadeira eu sei precisamente qual é: é

aquela ali

Reconstruo os passos: teria, por acaso, leso, subido com o chocotone prà minha diretoria? Não, impossível. Nesta história, te liga, ao menos nesta história não estou trêbado nem mesmo altinho – quem garante isso sou EU O Figueiró Narrador Onisciente, criador do céu, da terra e do “prà” craseado, não o figueirófluxodeconsciência. Sem esboçar reação nem causar celeuma, circundo o salão atrás de chocotones suspeitos. Apesar disso, estou às portas duma crise nervosa. Sou chorão. Sou frouxo. Sou frágil. A verdade é manifesta. Sou uma criança no pátio do jardim-escola em busca da sua lancheira. Quero abrir o berreiro:

– Lalalaram meu chocotone! Eu quero meu chocotone de volta!

Há anos analista de sinistros na Vidabrás, já tinha dado ciência na circular que nos precavia da rũidade da Pessoa Humana. Mas sacanagem tal sempre pensamos acontecer apenas com gente desconhecida. Conhecia dois causos similares. Noutra repartição estadual, a Lerolerj, um escronotonésio desfalcava as quentinhas dos colegas, mas só e tão-só o franguinho e a lingüiça – a salada permanecia intacta. Na Acme Trilhos Subterrâneos, um psicopata se especializou em afanar a Coca-Cola duma estagiária. Quando a menina deu queixa dos furtos, ela passou a receber misteriosos telefonemas que consistiam só e tão-só dum arroto. Agora o causo sou eu. A vida é um cagalhão mesmo; a felicidade permanente, um caô. Até uma vitória industrializada, cheia de conservante, some em três minutos.

Quando dei o chocotone como irreversivelmente gatunado, prostrei-me. Nesse exato preciso cravado momento de nocaute moral, o Amado Chefinho veio sentar-se ao meu lado, todo sorridente.

– E aí? Cadê o chocotone?

O Amado Chefinho é sacana. Certa vez, após um barnabé aparecer dando entrevista na tevê durante a Marcha da Maconha, ele forjicou uma intimação judicial pedindo esclarecimentos sobre a conduta ilícita do servidor público. A pergunta sobre o paradeiro da minha iguaria natalina trazia implícita a zoa – talvez. Preciso do meio termo entre não virar bobinho nem levantar acusações. Respondei como quase não tivesse percebido o sumiço do chocotone:

– Não sei...

O Amado Chefinho arregazulou os arregalados olhos azuis. Compreendi, de imediato, que o chocotone tinha efetivamente migrado da esfera gastronômica para a penal. O Amado Chefinho não tava de zoa, não.

– Sacanagem! – gaguejou.

Sugeriu procurasse na diretoria. Sabia que não tinha nada lá. Subi. Lá não tinha nada mesmo. Fucei até no banheiro aonde fora mijar por mais esdrúxula que fosse a idéia de entrar com chocotone em banheiro, mesmo considerando a ilha selvagem das minhas idéias.

Nesse batente já havia gramado e havia de gramar muitas vexações: uma aspone tentando me enquadrar como pesquisador logo na primeira semana, planilhas exigidas no Word, advertências para não prejudicar a comunidade no laudo histórico, xingamentos de stalinista por um empresário paulista, trabalhos profissas destruídos por afã amadoresco, o mais alto conceito de metodologia concebido como tabelinha, complacência pseudoengajada de colegas acadêmicos, deportação semivoluntária para uma sibéria empoeirada, inscrições compulsórias em grupos de WhatsApp como Rifa Pataxó. Mas o meu chocotone gatunado foi o ponto de inflexão. Rancoroso eu já era desde pirralho. Foi com o chocotone perdido que começou o cinismo. Falam tanto em revolução, transformação social, empatia, mais amor, fadas, chacras, duendes. Como você vai acreditar nisso quanto te roubam o chocotone em plena festa de fim de ano em menos de três minutos dando bobe?!

Meti o pé antes que alguém intelectual da regularização fundiária viesse me lecionar sobre como a gatunagem de chocotone em festa de fim de ano, sobretudo contra estatutário, também era política social, inaugurada, aliás, pelo saudoso Brizola, na época com gatunagem de iogurte no programa Cada Família um Bote.

Mas Deus existe – quem garante isso sou EU O Figueiró Narrador Onisciente, criador do céu, da terra e de bestesséleres de dark fantasy estrelando Paulo Nazaré como Êxodo, Deuteronômio e Levítico. Cheguei ao prédio do meu Covil e o que me entrega o porteiro? O quê?!

Um bilhete.

No canto esquerdo, um ursinho fofinho fofinhamente dentro dum balão fofinho por entre nuvens fofinhas.


Alvinho fofinho,


I love you. I love you so much. I’ve been loving you since I saw you fall down while you were searching the boundary of a nearby farm in Petrópolis. I was playing tennis and I was dumbstruck by you. I’ve never seen someone fall so handsomely.

Since then, I’ve been following you. It was me who took away your breadline wartlike Christmas cake. It was poisoned by the wicked paper-shuffler hag that doesn’t want you to do academic research. (By the way, you have many deadly enemies at work. Beware!)

My phone number is on the other side of this note. Come to me. I’m wearing red lingerie, black silk stockings and bright yellow safety helmet.

All my love,


Maria Yuryevna Sharapova

Winner of the 2006 US Open &c.


Isso foi um truque que aprendi sendo cobaia de testes psicológicos. É despiste. Se escrevesse direto, ficava muito fácil. Além do bilhete, o porteiro me entregou um chocotone – e chocotone da Cacau Show, edição Teodicéia, presente da síndica. (Oquei, depois se acusou a síndica de desviar dinheiro do condomínio, nem tudo é perfeito, menos ainda no Brasil, que dirá na cracuda Praça da Cruz Vermelha.)

Satisfeito com a reencarnação aprimorada do chocotone gatunado, só tinha agora um problema a encarar: Paulo Nazaré na segunda-feira.

– Eu falei! Eu falei! Ninguém me ouve nesta porcaria. Isso que dá se misturar com o lúmpen! Mas é muito lesado!

Um celular vibrou amedrontado. Paulo Nazaré o agarrou puto. Puto encarou o visor.

– Quem importuna? Ahn?! Não estou interessado! Não! Ene, á, ó, til, não! Não! Por que você não oferece esse pacote aí prà tua mãe!

Apertou um botão e pôs o celular de volta no bolso. Abriu os braços num gesto que se prepara para esganar a Humanidade. Dir-se-ia que estava bem puto.

– É brincadeira?! Plano funerário! Meu negócio é São João Batista. Depois dessa só um chope no Gaúcho.

Peguei meu panamá e fui saindo.

– Aonde que você vai, Embaixador? Vai entregar as credenciais diplomáticas no Lumpenistão do terceiro andar?

E gargatussiu.

– Vou acompanhar uma vistoria aqui na Rua do Constituição. Sobrado ardecô. Quero ver como é por dentro.

– É o nosso Zola!

Pôs o punho na frente da boca gargalhando tossindo.

– Mas que menino lesado!

Abri a porta da diretoria. Paulo Nazaré modulou para voz branda e pausada, sem tosse:

– Quando você estiver em Viena, escreva nas suas memórias sobre os usos e costumes da burocracia fluminense como... subtraírem chocotone em festa de fim de ano!

E gargalhou alto e tossiu alto e gargalhou alto tossindo gargalhando alto gargalhando tossindo alto. Putossatisfeito. Com um só pulmão.

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