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Folhinha de Tatibitate

  • Foto do escritor: Álvaro Figueiró
    Álvaro Figueiró
  • 18 de jan. de 2024
  • 4 min de leitura

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24

DEZEMBRO

2023

 

Plena nìvervéspera noite, a sobrinha, dois anos, ousa frase constrangedora, escandalosa mesmo, nunca ouvida Casa 66:

– Eu te amo!

Quem ela diz que ama é Rebeca. Rebeca é o bicho mais brutal deste lado da galáxia. Do outro lado da galáxia, nem a deixam entrar. Camisa-preta com manchas caramelas, isso quando não de sangue, medolhos fervluzentes de ódio, rabo antena atenta a todas as fraqüencias a destruir, a estraçalhar, a esculachar – um animal absoluta, convicta e condecoradamente fascista. Quando achada bicho-solto lá pelas roças do Incra, em Seropédica, balangandava um tumorzão na vagina, o que não a impedia de avançar sobre as vacas, que, temendo pela vida, fugiam ou, ao menos, tentavam. 

Rebeca é o cão-salsicha minimicronanotico dos meus pais.

Ayla é o nome da sobrinha.

– Ayla?! Que raio de nome é esse? – pergunta-se quem não vai batizar a filha de Enkhjargal ou Qiajujunnguaq Ilikkajippaat assim como perguntei eu ao irmão quando recebi a notícia da tiozice, a popular avuncularidade. – É árabe?

– Turco.

– E quique a família tem de turco?

A família da genra tampouco cheira a estepe, mas aqui nunca se sabe e eu só me preocupo onde tem DNA meu investido, no caso 25%. 

Meu irmão bufou.

– Há nomes portugueses feios também. Hermengarda, Cremilda, até o da nossa bisavó.

Os olhos do irmão fularam como os de Rebeca. E só não enristou o rabo porque não tem rabo. E o nome da bisavó era Umbelina.

Nossa mãe tentou onuficar a fraternidade bipolar – ela não tem mais força para chinelar choro, quer dizer, acho que não, meu irmão e eu já somos potências adultônicas:

– Pede desculpa pro irmão!

Bem que me lembro de Munch vir pintar cenas domésticas aqui na Casa 66: contenção, distância, cada qual se falando olhando prum ponto sem gente, lá onde se juntam as paralelas. Nossa tez e expressão é que eram mais bonitinhas. Já estava no meio da escada, a reta, me escafedi de volta pro meu bânquer escolástico, o quarto. Sem pedir desculpa, que nunca peço. Segunda lei da termodinâmica, seta do tempo. Mols de C12H22O11 + H2O bagunçados por G não se rearranjam no estado inicial e aquele lance das glândulas lacrimais. E, como sempre, estou certo.

Mas voltemos a esta noite da folhinha, nìvervéspera. Lá fora, a neve cobre as palmeiras-arecas e os mamoeiros. Já disse, meio, é Natal. A mentinrinha-branca também me cobre e não quero brigar com ninguém, mesmo estando sempre certo, ao menos não quero brigar com quem compartilhe prà riba de 25% de DNA comigo.

Ayla Guılhermeoğlu sobe pela desmantelada bamba bumba escada-caracol que causaria vertigem no Reinhold Messner (pra quem não sabe, um famoso pipoqueiro de Campo Grande[1]). Ali pela altura do Ararate na racol-escadaca, meu helicóptirmão decide-se pelo tatiresgabitate.

– Sobe não. Tá scUUUuuuuuro. E se lá tiver tanha?

– Tanha? – susprendo-me a essa espécime de bagunça inclassificada no Wunderchaos doméstico. Morcego certo, gambá provável, dragão-de-comodo possível.

– Aranha.

– Ela tem medo de aranha?

– Tem.

– Aranhas são legais!

Tania acroceraunia.

Rebeca aproveita a distração alpina de Ayla Messerzade e escafede-se da escada, a reta.

Desde ontem, Rebeca está atiçada. Ela pressente que o planeta tem seres vivos demais.

Rebeca despreza o amor. Ela gosta do ódio. Nesse sentido, é o melhor amigo do Homem. 

Rebeca só teme uma coisa no Universo: Feliciayla.

– Cadê o au-au?

O au-au tá fafá lado vovô.

O au-au tá bolado.

Auau farcimenosus.

Tou vendo a hora quando Rebeca vai tascar dentada na gugudadaria. Por muito menos, petiscou meus pêlos pernis. Ela me detesta em particular. Me reconhece como rival em ódio.

A sobrinha, acarinhando a salfacista, bole-bole toda sua facúndia, toda sua magnoloqüência, toda sua tatibitância.

– Tu que é bom com idiomas – me desafia o pai –, que língua ela tá falando?

– Sei lá. Não estudei pré-história.

Ouvindo algo que soa português em tríades ascendentes arpejadas, meu pai, voltado para a neta, pergunta cadenciando bem as sílabas:

– Você é angolana?

Eu rio, rarrirdade.

Novas distrações. Ela vive ainda nos badalos do relógio da torre central da Estação Ferroviária Celeritas. Tempo lento. “El tiempo lento de los niños”. Ou algo assim. BioyLugonesQuirogaBorges, já esqueci quem.

– Olha como ela pega no lápis direitinho.

Vou zoar tamanha curujice sobre a coordenação motora da filhinha, mas me descoordeno e o chiclete cai da boca muda. Em resgatinhas, tateionde tibitatebeantonde pelonde chicletonde.

Rebeca aproveita pra vazar. Meu irmão vasa e, juntos, os biontes associados, com ou sem investimento do meu DNA, vindos ou não da estepe. Cada ano que passa o Natal melhora. Não tem ceia nem nada. Não tem oração, não tem família. Natal é uma janta que não como descamisado. Nunca entendi porque minha mãe tentava puxar oração na ceia. Meus pais nos deram a melhor educação religiosa possível: nenhuma. Nunca nos levaram a igreja, templo, sinagoga, mesquita, terreiro, centro espírita. Fizeram bem. Amém.

Bucho cheio, vou vazar também para o bânquer escolástico. Rebeca é quem volta. Achou, com razão, a janta chocha. Trouxe pro meio da sala um gambá morto.

Um gam-de-orelha-preta morto no meio da sala na véspera de Natal.

Didelphis aurita.

A neve cobre Campo Grande. De trenó, Papai Noel corta os céus dando um grau. Uma bala-traçante abate uma estrela, cadente.

E toda a Humanidade e a Canitude se dão as mãos e as patas numa mesma canção:

 

Cumpade Gambá morreu!

Menino Jesus nasceu!

Noite de Natal

No salto mortal.

Taca o gambá, a mirra e o bebê

Na farofa de fruta com glacê.

 

Ah! Coca-Cola,

emoção pra valeeeeeeeer....




[1] Ou lambe-lambe de Madureira, ou viticultor da Serra Gaúcha, ou zagueiro do Bayern Leverkusen ou pastor de ovelhas na Ilha de St. Kilda ou um hipercubo em Zórdon XL-486 66 MHz.

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