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Cinema, Formiga, Memória, Inteligência e CNT

  • Foto do escritor: Álvaro Figueiró
    Álvaro Figueiró
  • 11 de nov. de 2020
  • 9 min de leitura

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Sinto falta em sentar o facho diante duma tevê para pegar filme pelo meio. Produz a mesma curiosidade rueira das aglomerações cochichantes. Quantos não foram os filmes dos quais só fisguei uma cena memorável, uma trama inferida, uma misancene diferentona? O astronauta surfando rumo a um planeta num destroço da espaçonave; o poeta beberrão com laço no pescoço, concluindo pro seu gravador portátil que o suicídio não valia a pena pra logo em seguida ser derrubado da cadeira pelo cão festeiro; um apartamento perestoicamente enxovalhado e um glasnóstico xavascão, tufudo e preto; um cachorrinho de acetato e acrílico tragado por um bueiro (trauma infantil); um moleque anossetentista de cachinhos dourados flutuando numa acarpetada estação espacial, mais anossetentista ainda, atrás dum glóbulo d’água saído dum saquinho plástico; Kirk Douglas com uma louraça fugindo dum andróide que acabara de trucidar um foxterriê (covardia!).[1] Graças à internete, a rede mundial dos computadores, consegui etiquetar alguns desses fotogramas e ver o rolo de cabo a rabo.

Um dos cacos fílmicos que mais me intrigou foi uma estação científica no meio do deserto azucrinada por malévolas formigas. Durante anos perguntei por esse filme. Tu conhece um filme onde as formigas ficam inteligentes e atacam os cientistas no deserto? Não, não vi. Você viu esse filme que se passava no deserto, uns caras isolados, o interior da estação muito cinza, cheio de equipamentos esquisitos, lutando contra formigas que tinham ficado inteligentes? Não. Manja esse filme, jeitão de anos 70, uma estação no meio do deserto, os cientistas mexendo em mainframes pra lutar contra formigas que tinham ficado inteligentes? Acho que não.

Ninguém vira esse filme, porque, além de bê, tinha passado numa emissora zê menos, a CNT. Na história cultural da civilização brasileira, a CNT deve ter-se notabilizado apenas por quatro coisas. Primeiro, pela sua antecessora, a Rede OM, lecionar o ignaro lar pátrio sobre a mais sofisticada parte da história do Alto Império Romano exibindo em horário nobre Calígula; segundo, por divulgar Alborghetti, quem, vivo hoje, estaria morigerando discursos para o Bolsonaro proferir perante a Onu; terceiro, pelo Hugo Game numa época quando linha telefônica era jóia de família constando de testamento; e quarto por única piada eletrortográfica que conheço. Uma mulher telefonou para a emissora querendo saber o significado de CNT.

– É Sistema Nacional de Televisão – explicou o funcionário.

– Mas a sigla está errada!

– Desculpe, senhora, mas nosso gerador de caracteres não tem cedilha.

O filme televisionado pela ÇNT que se passava num deserto dos anos 70, onde, da sua estação, cheia de equipamentos esquisitos e mainframes, tudo cinza, dois cientistas lutavam contra formigas que tinham ficado inteligentes é Phase IV (no Brasil, que sempre presume, com razão, o espectador mais burro que o gringo, virou Fase IV – Destruição). Foi lançado em 1974 e seu diretor ninguém menos que Saul Bass, o único longa-metragem na carreira desse célebre desáiner. Mal comparando, Bass era uma cruza de Hans Donner com Aluíso Magalhães, pois bolou aberturas cinematográficas emblemáticas – entre elas, as de Psicose e Um Corpo que Cai – e criou várias logomarcas (AT&T p. ex.). Já consagrado na década de 1960, era de se esperar, portanto, que seu trabalho autoral trouxesse visuais marcantes.

Eu sei que mesmo o leitor mais amnésico no ápice dum porre de vodca Natasha já entendeu a idéia de Phase IV, mas convém esmiuçar a trama. Um evento cósmico, inexplicável ou inexplicado, aciona a fase I da mutação nas formigas. Os insetinhos são tomados de entusiasmo pela Bauhaus e começam a construir formigueiros à Gropius. Da Alemanha de Weimar logo passam à Alemanha nazista e começam a atacar tudo a seu redor. Vilarejos são evacuados. Dois cientistas vão estudar as formigas instalando-se num domo geodésico no meio do deserto, todo cheio de equipamento cinza e de pesticidas coloridos. Um dos sabichões é o entomologista inglês Hubbs; o outro, o americano Lesko especialista em comunicação e criptologia. Obviamente as personalidades não são compatíveis. E, claro, tem de haver um cientista falho, com desejo fáustico por conhecimento (Myers-Briggs: INTP, vertente turbulenta/neurótica). Esse é Hubbs, que deixa a picape ligada como isca para as formigas. Por que diabos as formigas deveriam atrair-se por uma picape, em vez duma torta ou dum quindim (supondo-se haver quindins no Arizona), é uma das muitas coisas no filme que exige boa vontade: a idéia é que as formigas sacaram que o veículo era o único meio de fuga e, de sacanagem, fizeram um corrente formigana para curto-circuitar o motor. Hubbs acaba entrando numa esparrela agônica, tipo Passa ou Repassa, para saber quem é mais esperto: o Homem ou a Formiga. Esse é o nosso Dr. Hubbs. Lesko é o boa-praça (horóscopo: libriano): se as formigas não querem papo, vamos nos pirulitar feroz. É o cara que fica com a mocinha. Sim, pois no meio desse deserto assolado por formigas entendidas em mecânica automotiva tem uma mocinha – cute-cute, quase porta-de-cadeia, com uma dessas cabeleiras exuberantes cujo xampu se perdeu com o fim da década de 1970 (Toda Teen, Qual princesa da Disney é você?: Branca de Neve). Mas divago. Os pais da mocinha teimaram em permanecer no rancho (Instituto Gallup: eleitores do Trump, não praticam distanciamento social), viraram rango de formiga, a mocinha teve de se abrigar no domo geodésico para paquerar o Dr. Lesko. Vendo algumas formigas capturadas pelos cientistas, a mocinha dá um piti contra as pestinhas que mataram os pais e arrebenta o laboratório. Lesko decodifica uma mensagem enviada pelas formigas: querem um dos humanos (devem estar planejando um churrasco). A mocinha acha que o papo-reto é com ela e escapole para se imolar ao nazifascismo himenóptero (quão boa é essa mocinha!). Hubbs, delirante em dobro por picada de formiga, acredita ter encontrado a Hilterina hexápode e escapole para destruir a Nurembergue subterrânea.[2] Lesko, boa-praça, a América em armas (um pulverizador), vai atrás dos dois. Descobre que Hubbs caiu numa armadilha e morreu e, caindo numa armadilha sem morrer, descobre a mocinha, quem também caíra numa armadilha e não morrera, emergindo ela do fundo das areias, como se fora mar caribenho, toda cute-cute com a cabeleira exuberante. A fase IV é apresentada numa montagem psicodélica, amanita-muscária no ácido bebericando vodca Natasha. Bass aí deita e rola, recorta e cola, distende e enrola. Uma longa sinistra tomada do sol poente e o sussurro do vento com os créditos. Feidaute. Fim. Interpretei esse desfecho viajandão como se o casal boa-praça e mocinha fossem o Adão e a Eva duma nova espécie híbrida, Formica sapiens, mas pode ser muita outra coisa, como um comercial de cigarros mentolados ou um do Opala 74, sei lá. Na proposta original, vetada pelo estúdio, parece que Bass apresentaria, nessa linguagem proto-MTV, a humanidade escravizada pelas formigas.

O roteiro não prima, os diálogos são sofríveis, a atuação é de manequim com artrite, a qualidade da imagem é de película de meio milímetro, os efeitos especiais não convencem, numa cena de perigo-perigo somos torturados por um apito durante quatro minutos. Não à toa passou na ÇNT e só eu vi. E isso um pedaço. Apesar de tudo, Phase IV representa, como poucos, o tipo de filme que, se refeito direito, vai ficar bem responsa – e olha que abomino o remeique. O primeiro passo no caminho da respeitabilidade seria banir aqueles zuns dramáticos, tão ao gosto da era.

De qualquer forma, para sentar o facho diante de Phase IV não é preciso esperar pelo remeique nem a reprise casual na ÇNT, pois há pontos fortes. O mote é instigante, meus deboches à parte. Toda a linha visual da narrativa é boa. A música é excelente, uma mescla de sintetizadores e instrumentos acústicos. Mas o maior barato são as formigas por teleobjetivas. Vemos lutas contra louva-deus em meio a circuitos eletrônicos; ataques a aranhas; a rainha parindo; uma simpática formiga dourada com abdômen esmeralda, tão joinha quanto uma linha telefônica durante a década de 90. Dá certo sabor de documentário – os humanos só aparecem quase dez minutos após o começo do filme –, mas conseguiram integrar bem as cenas do mundo animal numa narrativa. Em certo trecho, p. ex., as formigas formam uma cadeia para transportar um poderoso pesticida a ser processado como antídoto pela rainha, cada operária morrendo após um tempo na lida (obviamente envenenaram de verdade as formigas; qualquer morte é triste de se ver). Então, em termos de atuação, palmas para as formigas, vaias para os humanos.

Do ponto de vista fílmico, Phase IV tem antecessor quase imediato no semipseudodocumentário The Hellstrom Chronicle, de 1971. Sensacionalista, apelativo, mintão, é como se pusessem o Ratinho para narrar um programa profissa da BBC de Londres. Traz, porém, fotografia sensacional e inovações técnicas como macrofotos cameralentescas do voo de abelhas, moscas e mariposas – aliás, a cinematografia dos insetos foi feita pelo mesmo cara em ambos os filmes. Na crista da primeira onda ecologista (poluição, pesticidas, radiação, superpopulação), The Hellstrom Chronicle tenta te convencer que os humanos vão se estrepar e os insetos vão continuar aí melecando o globo com gosmas.

Do ponto de vista temático, Phase IV está, até onde percebo, entre os precursores duma idéia que passou a habitar o nosso subconsciente: o formigueiro como análogo do cérebro, a formiga como análogo do neurônio. A analogia decorre de fenômenos cuja complexidade transcende em muito os entes que os produzem: nenhuma formiga sabe mais que qualquer outra formiga sobre o comportamento que o formigueiro vai adotar assim como nenhum neurônio sabe mais que qualquer outro neurônio sobre o pensamento que o cérebro vai gerar. Essa organização discrepa daquela dos sistemas hierárquicos. Numa batalha, embora o general conheça a estratégia e o tenente, a tática, o soldado só sabe que tem de tomar a colina. Phase IV deve ser a primeira obra ficcional a explorar essa vereda da formigueiro como suprainteligência.

A analogia pipoca nos lugares mais insuspeitos. Escrevi há pouco aqui no blogue sobre como Rudy Rucker no romance The Hacker and the Ants, de 1994, punha formigas virtuais no cerne dum projeto de inteligência artificial. Em 1972, numa conferência internacional para discutir a comunicação com extraterrestes chefiada pelo astrônomo popestar Carl Sagan, houve quem, em metáfora de formigueiro, avançasse formas de vida alienígenas onde a inteligência não estaria em cada indivíduo, mas na interação global dos indivíduos. Se as interações são simples, desprovidas de qualquer personalidade, essa inteligência singular é, em tese, imortal, pois a morte ou a falha do indivíduo é um problema que se resolve como a troca dum transistor, ou seja, pelo nascimento doutro indivíduo.[3] A cuca até começa a formigar. Um problema é que, no longo prazo, nenhum sistema complexo (p. ex., uma formiga) se replica sem erros de cópia, logo esse cérebro, cedo ou tarde, sofreria um AVC evolutivo. Por outro lado, exceto talvez pelos agrupamentos mais simples, tampouco uma sociedade humana cabe na cabeça duma só pessoa. Noutras palavras, há muito tempo vivemos imersos numa inteligência supraindividual e “imortal”. Não é, afinal, um clichê que, para certos olhos (digamos 72 dúzias) alienígenas, o comportamento humano, sobretudo numa metrópole, é tão estereotipado, que apareceria como nós mesmo vemos o bulício dum formigueiro?

A equação entre formigueiro e cérebro complicou-se e, de fato, deixou de ser analogia para se tornar estudo de caso. Cada vez mais, formiga e formigueiro são explorados como fenômeno em escala macroscópica e manejável que ajuda a entender sistemas complexos emergentes da reiteração de regras simples e descentralizadas: o fluxo automotivo, a difusão de fake news, o sistema imunológico e, óbvio, o próprio pensamento. É precisamente essa a idéia duma mirmecóloga americana, Deborah Gordon quando escreveu em 1999: “If we knew how an ant colony works, we might understand more about how all such systems work, from brains to ecosystems.”[4] Se Gordon não descobriu formigas sabidas em mecânica automotiva, ao menos concluiu que alguma coisa de teoria da informação elas praticam, para alegria do Dr. Lesko. Para determinar quantas operárias vão sair a buscar comida, Gordon percebeu que as formigas de sua predileção acadêmica se guiam pelo mesmo algoritmo do protocolo internético TCP, cujo significado, em adolescente, tive de decorar na aula dum professor conhecido como Modem. Dum cérebro magnificado, as formigas passaram ao patamar do modem e da fibra ótica nesses processos idênticos aos quais o cérebro humano stricto sensu teve de fabricar para manipular a informação fora dele. Calha logo de se descobrir que o cérebro humano emprega dentro de si algum protocolo TCP ao feitio das formigas. Fecha-se o ciclo. Se a espiral logarítmica nas conchas do náutilo não prova vezo artístico da Mãe Natureza, o fato de as formigas entenderem melhor sobre protocolo TCP do que o pobre estudante de telecom demonstra, do seu canto, que, afinal, o conhecimento científico se ganha por inovações conceituais e que a mente humana integra, sem blablablás místicos, a mesma substância e os mesmos processos que regem o Universo. Melhor ferroada em relativistas e em antirracionalistas não há.


[1] Respectivamente Dark Star, Reuben, Reuben (no Brasil, Amor e Boemia), ???, ???, ??? e Saturn 3 (no Brasil, Saturno 3). [2] Para uma visão sobre a faceta revolucionária das formigas, cf. GLOMMER, F.-W. “Luta Operária na Rodésia”. [3] SAGAN, Carl (org.). Communication with Extraterrestrial Intelligence (CETI). Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1972, pp. 122-123. [4] GORDON, Deborah. Ants at Work: how an insect society is organized. Nova York: The Free Press, 1999, p. 141.

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