O Conto do Programador: "The Hacker and The Ants" de Rudy Rucker
- Álvaro Figueiró
- 9 de out. de 2020
- 6 min de leitura

O nascimento do saiberpanque uns dizem que foi de parteira, outros de equipe médica. A parteira é William Gibson e as toalhas quentes, Neuromancer; a equipe médica é Phillip K. Dick, John Brunner, Bruce Sterling entre outros. Até o diretor alemão Fassbinder pode-se considerar como precursor pelo seu Welt am Draht de 1973. O fato é que o neném passou de colo em colo e mamou de muito peito.
Rudy Rucker foi um dos responsáveis tanto em extrair esse bebê com bisturi lêiser quanto alimentá-lo com caseínas líquidas, silício, fibras óticas, psicotrópicos, óculos espelhados, pistolas e plugues atrás da orelha. Menos badalado que os outros pioneiros, Rucker afirma-se como praticante e expoente maior do transrealismo. Se você quer vender a tua marca, a melhor maneira é criar um nicho para si próprio. No manifesto que lançou em 1983 – um ano antes de Neuromancer –, o programa é apresentado como realismo meticuloso onde o insólito se integra sem sustos, a fotografia euvocêdoisfilhoseumcachorro diante da casa de cerca branca com o chupa-cabra de papagaio-de-pirata. É exatamente a mesma coisa que o realismo fantástico hispano-americano vinha fazendo com sucesso havia uns bons vinte anos, mas deixa quieto. A única diferença é que o transrealismo importa os topos da ficção-científica e, mais precisamente, do saiberpanque.
Nascido em 1946 no caipiróide Kentucky, Rucker, antes de se firmar como escritor, foi camelô da educação lecionando matemática por universidades americanas e alemãs; já firmado como escritor, prostituiu-se como programador na Autodesk, a empresa criadora do AutoCAD. Presumo que a experiência profissional peculiar em face da que tiveram os autores da Era de Ouro da Ficção Científica, como Asimov, Clarke e Heinlein que vinham da física e da engenharia, e a formação acadêmica mais sólida em face da tchurma mais xovem do saiberpanque, permitiu a Rucker escrever um romance bem singular no atacado e no varejo da literatura especulativa. Refiro-me a The Hacker and the Ants, publicado em 1994.
A singularidade de The Hacker and the Ants consiste em ter como eixo o dia-a-dia dum programador, Jerzy Rugby, em meio a pinimbas, camaradagens e crocodilagens das firmas do Vale do Silício. Uma vez que menos se navega pela internete do que se mergulha nela, um bocado da ação acontece no saiberespaço, com xerezadescos encaixotamentos: em certo trecho, Jerzy usa um módulo de realidade virtual para operar um robô real a partir dum módulo virtual de realidade virtual. A narrativa esparrama o jargão mais nichado na informática: cryps, phreaks, frob, logjam. Há quebra-cabeças da área como portar programa duma linguagem de programação para outra ou transformar código hexadecimal em binário – suspenses incomuns, ao menos a nós que já cansamos de abrir portas com cartões de crédito, de fugir de tiras saltando de telhado em telhado, de esquivar de bazucas, tudo cortesia de Hollywood. Assim soltas, as pegadinhas e as geringonças de programação poderiam intimidar mesmo aquele que nalgum ponto pálido da década de 1990 se aventurou em QBasic, mas o contexto ou mesmo intervenções didáticas trazem explicação. Portando deste meu idioma ALGOL valvulado pro pá-e-bola esmartefônico, a leitura flui, amiguinhos.
O que atrapalha o fluxo é a adrenalina vir em pedregulhos de craque, overdose tipicamente saiberpanque. Compra-se um romance e leva-se dois, cada qual competindo com o outro, disputando pelo processamento neuronial do leitor: por um lado, lemos uma extrapolação realista e crítica da internete e do capital que a controla e, por outro, lemos um capa-e-espada para adolescentes quarentões. Sei que soará bizarro, mas, se Rucker tivesse se guiado por um zhdanovismo saudável no seu transrealismo, The Hacker and the Ants poderia ser um grande romance. Infelizmente, em vez de Jerzy se submeter apenas a rotinas e surpresas duma firma de tecnologia, o programador acaba sugado num rebu de ação e de intriga de fazer o James Bond parecer escrivão da Suderj.
Comparemos sinopticamente ambas as sinopses sinopsizadas.
1. O Romance Transrealista-socialista do Vale do Silício. Jerzy trabalha na GoMotion aperfeiçoando o sóftuer de robôs domésticos. Em protótipos anteriores, o robô confundira bebê com peru de Ação de Graças, de forma que o produto não parecia ter mercado junto à família americana. A GoMotion treina dois dribles: sacanamente vende seus produtos como quites montáveis para se eximir de responsabilidades sobre o resultado final; e bacanamente, para testar a interação do robô com os humanos, mantém um modelo virtual da casa americana (o pai bêbado, a mãe drogada, o adolescente sádico, o bebê tranca-rua). No começo, o programa robótico era aperfeiçoado no muque, torcendo e distorcendo os vários parâmetros que controlam o bicho, mas a grande sacada da GoMotion foi implantar um darwinismo digital em que se conjuga inteligência artificial com vida artificial para colher, numa naice, as melhores combinações. A vida artificial tem a forma de formiga. E, como toda boa formiga, elas começam a zanzar por tudo quanto é lugar – noutras palavras, infectam as doçuras da internete e tudo melado por ela. Pior: como conseguem ultrapassar a singularidade da inteligência artificial, as formigas virtuais cabeçudas aprendem a programar. Até aí tudo bom, tudo bem. Mas isso é muito celebral e os pessoal quer ação!
Então vejamos o segundo romance.
2. Matrix para Adolescentes Quarentões. Antes do formigamento digital, Jerzy é intimidado no saiberespaço a trabalhar para a West West. Essa concorrente da GoMotion é mais inescrupulosa ainda, pois lalou código-fonte de todo mundo, até da Mattel, isso mesmo, a fabricante da Barbie e do Ken, para modelar os bonecos virtuais da sua versão de Família Americana, esta, por sua vez, lalada da GoMotion. Enquanto Jerzy paquera uma vietnamita, o robô da GoMotion, ainda emprestado ao programador demitido, esquizofrenicamente começa a ouvir vozes das formigas virtuais psicóticas, mata um cachorro e infecta com as formigas a rede de tevê digital do mundo todo. Jerzy pára no banco dos réus, inclusive sob acusação de traição à segurança nacional. Nesse bololô ainda acompanhamos o protagonista em crise de separação, confrontos com corretora imobiliária, busca por baseados e trepadas ocasionais. O final é calamitoso, um deus ex machina em que o deus é uma Fada do Dente e a máquina, um Chevette Tubarão 1977 bege a álcool: o vilão, cujas vilanias são incompreensíveis, é frankensteinmente destroçado pelas criaturas, as próprias formigas que agora tomam o feitio de nanorrobôs no mundo real; Jerzy livra-se do processo judicial como se tudo não fora um mal-entendido, continua nas paqueras papando uma coroa e uma novinha – e ainda vende sua milionária história para uma rede de televisão. Eta, mundo bão!
Além de The Hacker and the Ants, só conheço de Rucker o romance Wetware, de 1988, que trata sobre o eterno conflito humanos babacas vérsus robôs espartaquistas na eterna colônia penal que é a Lua. Wetware traz todos os cacoetes do gênero: detetive neonuaresco em busca da gatinha desaparecida, conspiração de conglomerado empresarial, submundo estilizado, drogas sintéticas do balacobaco (literalmente liquefaz o usuário). As virtudes e os defeitos são os mesmos de The Hacker and the Ants embora predominem com folga os defeitos. Entre estes estão a narrativa super-elaborada, frissons baratos, situações artificiais. Entre as virtudes, humor, digressões, neologismos, tratamento inteligente da linguagem (uns robôs modelam sua fala em Poe, outros nos beatniks).
Embora Wetware só deva cair no gosto dos mais cracudos fãs do saiberpanque, considerei The Hacker and the Ants, malgrado as falhas, umas das leituras de ficção científica mais interessantes que fiz nos últimos tempos. Além da temática em si, há três pontos altos. O primeiro é o humor, sacaneando a cultura americana e, sobretudo, a californiana, os yuppies, a mídia, o besteirol do meio corporativo, até o metiê do programador.
O segundo é a antecipação não apenas das tecnologias que estamos prestes a experimentar ou já experimentamos em parte, mas também a antecipação dos comportamentos sociais associados a tais tecnologias. Quando o dono da GoMotion monta seu escritório virtual como um castelo de Dungeons & Dragons, com direito a ogros e a passagens secretas, prevê-se que a alta tecnologia vai servir como novo escapismo, chancelada até pelo sisudo mundo laboral – da mesma forma que a internete acabou menos para instrução das massas que para a propaganda de quimeras, algumas paleontológicas. A experiência imersiva da realidade virtual ainda não decolou, mas não seria absurdo que a transição venha a ocorrer dentro de dez anos. Foi dentro desse prazo curto afinal que se processou entre 2005 e 2015 a revolução das mídias sociais, internete em celulares, colapso do mercado fonográfico, crise da imprensa tradicional, necromancia de crendices. Em todo o caso, o leitor atento poderá ver em The Hacker and the Ants práticas hoje correntes transladadas para um nível maior de sofisticação. Quando um personagem, dentro do saiberespaço, reage a uma notícia ruim, sua face toma as feições mais caricatas de desgosto – é o meme que mandamos nos grupos de WhatsApp, só que manipulado em tempo real e em deep fake. Por deep fake também é como se intimida Jerzy a trabalhar para a West West quando uma figura sinistra, com cara de Morte, simula cenas de tortura envolvendo a família do programador. Essas percucientes antecipações daquilo que ainda não se concretizou de todo convivem com grosseiras bolas-foras, prova das dificuldades em se estabelecer futurologias consistentes. Previram os filmes de ficção científica de meros vinte anos atrás essa ubiquidade vidrada no celular? Em Count Zero, de Gibson, não há uma cena com tiroteio e motocicletas para se transportar um disquete? Em The Hacker and the Ants, escapam da infestação das formigas o rádio e, pasmai, a telefonia porque continuam analógicos...
E qual o terceiro ponto alto? Bem, talvez aqui esteja vendendo perplexidade como entusiasmo, mas são as próprias formigas. Em certo sentido, The Hackers and the Ants participa duma curiosa subcorrente que usa o formigueiro como metáfora para o cérebro e, logo, para a inteligência. Mas disso trato outro dia.
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