Agonia dum Colecionador-mirim
- Álvaro Figueiró
- 12 de dez. de 2023
- 14 min de leitura

Criança, colecionei tudo o que se colecionava:
1. moedas,
2. rochas,
3. selos,
4. papel-moeda,
5. cartões-postais,
6. cartões musicais,
7. miniaturas de garrafa,
8. conchas,
9. folhas secas,
10. flores secas,
11. penas,
12. lápis,
13. revistas,
14. gibis,
15. armas de espoleta,
16. calhambeques de metal,
17. bolinhas de gude,
18. latinhas,
19. embalagem de doce,
20. chapinhas,
fora modismos como
21. figurinhas,
22. tazos,
23. ioiôs
24. e brinquedos do Kinder Ovo.
Algumas das coleções nem eram reputadas coisa de menino. Só não ligava o foda-se, porque meus palavrões não iam além da puta-que-pariu. Trocava com as meninas
25. papéis de carta fofoletes,
26. adesivos purpurinados,
27. continhas de bijuteria.
Até o que não se colecionava quis colecionar, como
28. liquens, para o que tentei desenvolver cultura em caixinhas de fósforo (colecionei também).
Algumas coleções só não tinha porque precisava esperar virar adulto, ou seja, rico:
29. plantas (ênfase: carnívoras e aquáticas),
30. carros (só calhambeques),
31. aviões (todos, mas destaque para os mono- e biplanos),
32. videogueimes (adorava ler manuais).
Certos objetos irritavam por partilharem e não partilharem do colecionismo:
33. os potinhos de nitrato de prata e os saquinhos de enxofre do minilaboratório de química formavam coleção?
34. doce era só estocável ou também colecionável?
35. e explosivos?
Borboleta quis muito colecionar, mas achava bruta sacanagem (na velha pedreira de Queimados, havia dois cafolindos quadros ovais envidraçados, moldura de jacarandá, com borboletas Morpho e Heliconius mimetizando voo entre arranjos florais mais mortos ainda – aliás, alguém na família, nunca soube quem, colecionara chaveiros e chaves).
Nem todas as coleções tiveram a mesma intensidade. A maioria foi efêmera. O foco acabou trivial – moedas, rochas e selos. Bem ou mal, até hoje alimento o museu doméstico: cato um sienito num riacho de Itatiaia, alguém volta da estranja e me dá um florim da Frislândia ou um selo da encomenda que veio da Lemúria. Certas coleções preponderam menos por acumularem objetos corriqueiros que pela desistência doutros colecionadores. Nunca grande missivista, muitos selos vieram de pessoas que se desfaziam dos guardados. Foi uma tia consorte quem me deu um bolo de selos velhos, entre eles o mais feio da minha coleção, dois tocadores de pífaro (Jô Oliveira, Brasil, Cr$ 1,80, 1978). Tempos depois, os cartões-postais eu mesmo pensei em presentear a um grande amor desastrado, mas o egoísmo colecionista prevaleceu – ela podia ter meu cérebro por anos; meus cartões-postais, não.
Visitar novas casas trazia a esperança de butim. Sempre inquiria o anfitrião sobre cacarecos colecionáveis:
– Você tem uns selos velhos aí? Ou moedas? Pedras?
Os adultos eram movidos pela caridade ou, ao menos, pela exasperação de enxotar o pentelho. Com meus colegas de nanismo transitório, o principal meio de aquisição era o rolo. A merenda era o dólar na Sotheby’s do recreio. A melhor negociata me trouxe um cêntimo haitiano de 1904 e um patacão de prata brasileiro de 1850 ao custo dum saco de biscoito Queijinho. Em retrospecto, é quase certo que a menina só quisesse mostrar umas moedinhas da coleção do pápi, mas minha lábia a convenceu de se desfazer daquela porcaria toda em troca das pepitas de massa assada da Piraquê. Se levou chinelada depois, não sei – não pediu as moedas de volta ou, se pediu, não devolvi. Como disse Maquiavel, “Foi na roça, perdeu a carroça”. Confirmado cafajeste, a menina não só era minha namoradinha e, novamente em retrospecto, a coisa mais próxima dum amor feliz que já tive. (O destino pune. Já no ano seguinte, nas Olimpíadas de Barcelona, fui brincar de discóbolo com meu patacão e zuni a moeda de volta prà arqueologia. Simone foi pra Portugal, sumiu da minha vida como o patacão zunido.)
Em 1990, minha mãe, quem colecionava porcelanas, embalagens de sabonete e recortes de jornais, topou numa matéria com o endereço postal do Papai Noel: Círculo Polar Ártico, Rovaniemi, Lapônia, Finlândia, Países Capitalistas Desenvolvidos Não-alinhados.
– Álvaro, vamos escrever uma cartinha pro Papai Noel?
Eu já sabia que o Papai Noel, como a Cegonha, o Coelhinho da Páscoa e Papai do Céu, era uma impostura, mas, ao contrário da Cegonha, do Coelhinho da Páscoa e do Papai do Céu, agora sabia existir um “Papai Noel” brabo que monopolizava a fraude a ponto de se arrogar endereço postal e, por conseguinte, emitir selo. No meu álbum, não tinha selo nenhum da Finlândia, que dirá do Círculo Polar Ártico, melhor ainda do Papai Noel capomafioso, um ator gordão e rosa que vivia mesmo em meio a neves, renas, pinheiros e trenós, talvez até tivesse um poste pirulitesco, não aquelas fajutices raquíticas anêmicas de barba postiça do BarraShopping ou, pior ainda, do calçadão de Campo Grande, porque o BarraShopping ao menos tinha ar-condicionado. Meu próprio pai (colecionava copos, canecas e Placar), barbudo, pançudo e corado, me parecia Papai Noel mais crível àquelas chochas imitações. Mas meu pai não emitia selo nem vinha do Círculo Polar Ártico. O Papai Noel de Rovaniemi tinha o mesmo carisma fictício mas oficial do Collor na Semana do Presidente. E, ao contrário do Collor, o Papai Noel finlandês, repita-se, emitia selo.
– Oba! Vamos, mamãe! [Tradução: Puta-que-pariu, vou arranjar um selo do Papai Noel!]
Minha mãe (a mulher MAIS LINDA e INTELIGENTE do MUNDO, talvez só equiparável – e isso no ano seguinte – à Simone loirinha de quem subtrairia o cêntimo e o patacão), minha mãe, como dizia, concluiu que o Papai Noel não se rebaixaria ao português, que nem os brasileiros entendem, que dirá um velhote finlandês assoberbado em responder zilhões de cartinhas, sobretudo daqueles países onde era comum as pessoas saberem ler e escrever. A cartinha seria em inglês. Não muitos anos depois, mais ou menos ali pela décima aula da Cultura Inglesa, percebi que meu inglês era muito superior ao dela, mas em 1990 confiei na mulher MAIS LINDA e INTELIGENTE do MUNDO,
Por semanas, minha mãe e eu trabalhamos em versões da cartinha. O Bom Velhinho Assoberbado não toleraria palavras vãs. Minha mãe ia escrevendo em caneta vermelha por todas as direções do papel, catando palavras num dicionário bilíngue dum sujeito com o absurdo nome de Pandiá Pându. Era dentro desse dicionário que dormia a cartinha, provavelmente entre as tabelas de frases feitas, embora nenhuma servisse exceto talvez “Get down quick!”, exclamação que ajudaria os duendes quando o trenó estivesse cruzando um tiroteio na Avenida Brasil.
Que dizia a cartinha?
Não lembro. Algo assim:
My dear Santa Claus,
How do you do?
My name is Álvaro. I am a boy. I have five years. I make six soon soon in october. I live in the Rio de Janeiro, in the Brazil. The Rio de Janeiro no have snow. I live in one white house with my fathers and my lesser brother Guilherme. When I am very big I want be scientist. My preferred food is pizza, french potato and sweets.
I want ask for you one telescope and one bicycle. Bicycle because is good for legs. Too I want ask yours seals of Finland. I colletionate seals, stones, moneys and many another things. My lesser brother want ask for you one tiger or one lion or chocolates.
I hope that you are very well there in Rovaniemi, my dear Santa Claus.
Hugs,
Álvaro
P.S.: My mother write this letter by me.
Isso é paródia. É também injustiça com a mulher MAIS LINDA e INTELIGENTE do MUNDO. Sem dúvida, o original era bem mais engraçado. Afinal, eu já disse que fiz dez aulas na Cultura Inglesa.
Cartinha postada, devaneava sobre o selo. A imagem não era clara, sequer os motivos (talvez algo no estilo das figurinhas do álbum Amor Perfeito?). A paleta sim era vívida, um pouco menos as formas. Nada daquela combinação natalina bela mas trivial, à lusa – vermelho, verde, dourado. Azul-da-prússia desbotando-se em roxo-alaranjado, salpicos amarelo-ouro, riscos e blocos brancos. Isso. A paleta e as formas por instantes se fixavam numa vista cinemascópica que a mixaria dimensional do selo saberia reproduzir: horizonte alto de dunas nevadas, estrelas enormes, noite iluminada por auroras boreais. Quase lá. Mas logo a visão se borrava. Azul, roxo, amarelo, branco. Assim, assim, assim. Blocos de azul, faixas de roxo, raspas de amarelo, riscos de branco.
O furgão dos Correios acaba de colidir com um caminhão com galinhas vivas na antiga Rio–São Paulo. Os populares cercam o caminhão virado. Uma galinha escapole com a cartinha no bico. A galinha postal é capturada no Km 37. D.ª Lúcia dos Docinhos não sabe o que fazer com a carta. A galinha ela vai engordar.
O selo do Papai Noel só podia ser a coisa mais bela da filatelia, quiçá do mundo. Tudo no Natal era bonito, mesmo na árvore mais fuleira. As bolas de vidro, as cores das bolas de vidro, a leveza das bolas de vidro, o mundo antiesférico das bolas de vidro, a fragilidade das bolas de vidro, bolhas de sabão congeladas, os caquinhos das bolas de vidro, guirlandas, pisca-piscas como pupas elétricas, bichos de presépio, cartões, papai-noéis de chocolate informes. Pegava da árvore um cartão musical – fundo branco, cometa estelar amarelo de cauda roxa –, abria-o, tocava We Wish You a Merry Christmas pela Sinfônica Meio Bite e ficava encantado. Até da estapafúrdia vinheta natalina do SBT, com neve, lareira e clamores desafinados de “eterna paz”, eu gostava. Certo vez, sonhei que nevava na sala-de-estar enquanto Simone e eu, de mãos dadas, flutuávamos vestidos de Papai Noel. Isso sim é felicidade – e bastante factível.
O selo do Papai Noel também era factível – e logo logo seria meu. De todos os selos do mundo, dois bastavam para sossegar o sassarico colecionador:
1. o Olho de Boi, horrível mas pioneiro e, ainda por cima, brazuca; e
2. o do Papai Noel, a coisa mais bonita da filatelia, a antítese dos dois tocadores de pífaro (Jô Oliveira, Brasil, Cr$ 1,80, 1978).
Esse selo do Papai Noel ingressou no âmbito das idéias transcendentais exploradas na cama ou no espelho: o infinito, os confins do Universo, o espanto de saber que eu existia, o tempo anterior ao meu nascimento, a morte, o propósito do mal, a última fase do Pac-Man. Prestes a dormir, por entre a estática das estrelinhas nas pálpebras, ponderava sobre esse metafísico selo do Papai Noel. O selo do Papel Noel resumia a filatelia, resumia a filosofia.
D.ª Lúcia dos Docinhos ouve a buzina do Binho Padeiro. Ela pede para que ele coloque a carta na caixa de correio quando voltar para o centro de Estrondópolis. Ela também pede duas broas de milho. Na hora das cigarras, Binho Padeiro chega a casa. Esqueceu de postar a carta.
Poucas vezes, sofri tamanha expectativa (pensando bem, talvez só uma única coisa e nem foi perder a virgindade). Imaginava todas as etapas de gozo filatélico: a carta entregue, o estudo multissensorial do envelope, a contemplação do selo, minha mãe traduzindo a resposta noelesca, a remoção do selo com vapor d’água (que faria no fogão da velha pedreira de Queimados), o selo guardado no álbum, a carta exibida aos coleguinhas de escola.
Durante a merendinha, caldinho de feijão e gelatina com leite condensado, tão logo eu terminava minhas imitações de mosca com o Biscoito da Vaquinha, corrigia o coleguinha que dizia que o Papai Noel morava no Pólo Norte. Não, não, não! Ele morava na Finlândia, em Rovaniemi, no Círculo Polar Ártico, e já já eu ia receber uma cartinha dele e, mais importante, o seu selo. Sempre fui pedante.
Bebericando a terceira ou décima talagada de cachaça, Binho Padeiro toma a nota mental de postar a cartinha no dia seguinte quando for buscar mercadoria na padaria do Nelson do Km 42. No quintal, a Baronesa começa a latir. Dois homens entram na casa, um deles armado. Binho, cheio de coragem, bafo e nhaca, reage e leva uma coronhada. A garrucha se desmancha na mão do assaltante. Começam a brigar. O comparsa foge levando os maços sobre a mesa.
Aos cinco, seis anos, o rol de decepção é pequeno. O maior trauma envolveu uma área onde jamais pude colecionar: a paleontologia. Na velha pedreira de Queimados, vasculhava barrancos, escarafunchava o chão atrás de ossos de dinossauros. Pelo mato já até tinha achado um gato plástico, brinquedo da minha mãe menina, quer dizer, fóssil ali da fronteira do Cretáceo com o Terciário. Numa dessas expedições paleontológicas, exclamou minha mãe, erguendo um baita fêmur:
– Olha, filho, um osso de dinossauro!
– Ípi! [Tradução: Puta-que-pariu, achei um osso de dinossauro!]
Ali por perto, o caseiro pavoneou seus conhecimentos paleontológicos:
– Que osso de dinossauro que nada... Isso aí é osso do porco que a gente matamos.
Abri o berreiro. Ao menos, a decepção foi imediata.
Vendo que os maços são contas, jogos da loteria e uma carta, Boinha arremessa a papelada na sarjeta, supondo-se que tal conceito se pode aplicar a uma via de barro sem esgoto. A carta pára na frente da casa do Zé do Tonho. Há duas semanas ele começou como carteiro. Nunca tendo ouvido falar, que dirá, lido Bukowski, Zé do Tonho não se intimida por ladeiras, soleba, torós, cachorros, pneus murchos de bicicleta, mais ladeiras, mais soleba e acredita na dignidade do seu ofício, gênero profissão nobre como professor, médico, bombeiro, domador de circo, bicheiro e Papai Noel. (Ah! Um dos bilhetes de loteria estava premiado com bolada milionária, ou o certo naqueles tempos, quadrilhionária.)
Meses de espera.
A primeira coisa que Zé do Tonho fez no dia seguinte ao chegar aos Correios foi postar a carta. O rapaz colocou no escaninho errado e a carta foi para Ramilândia, Paraná. Respeitando a sagacidade do leitor e as regras de economia textual, limitemo-nos a dizer que a cartinha experimentou muitas peripécias, mas chegou a Rovaniemi, sede mundial do papel-noelato.
O Natal já até passou.
Agora a resposta da cartinha.
O ano-novo já passou.
Peski, o duende das renas, de ressaca, encara o caminho até a agência dos Körröjös mais próxima, a qual fica, mais ou menos, a 726 léguas do vaticano papadonoélico.
A única coisa que não passa é o calorão.
Uma nevasca sobre toda a Lapônia bloqueou as rodovias de Rovaniemi. A carta está indo no lombo de rena até Oulu no Golfo de Bótnia. Peski, o duende das renas, assoberbado de cartas e manguaça desaba pelo caminho de volta. As renas transmitiram pedido de socorro pelos focinhos. É tarde. Peski, o duende das renas, morre de hipotermia.
É carnaval.
Aconteceu uma coisa engraçada na Ilha de Marajó numa fazenda de zebu, mas deixa pra lá.
Prometi a Simone mostrar a cartinha tão logo chegue.
Em todo o caso, esse guzerá rosilha mocho, o Serelelepe, vendido para o Pantanal, foi instrumental em salvar a tripulação da canoa que afundou.
E é bom chegar logo, porque Simone tem os olhos mais zangados do mundo – e zanga verdinha.
Sim, porque, como tantas vezes, a carta foi parar no Mato Grosso do Sul.
– Álvaro, cadê a nossa cartinha? – berra Simone com os olhos mais zangados do mundo.
– Valdomiro, cadê a minha correspondência?
Cadê minha cartinha?
Em Campina Grande, de novo alguém se apercebe do extravio.
Puta-que-pariu, cadê minha cartinha?
Calma, calma, garoto boca-suja! O carteiro vem subindo a tua rua!
– Álvaro, Álvaro! – chama minha mãe. – Olha! Chegou a cartinha do Papai Noel!
– Êeeeeeeeeee! [Tradução: Puta-que-pariu, até que enfim!]
O envelope afoito traz quatro surpresas:
1. É lindo lindão, enorme, vermelho pálido, quase rosa, listrado de azul-esferográfica. Envelope só conheço branco, bege ou pardo.
2. Há um retângulo plástico por onde se lê o destinatário, no caso, eu. Foi a primeira vez na vida que vi esse macete postal. Deus não existe; Papai Noel sim.
3. O selo.
4. Outro selo.
Os selos assustam. Não acredito no verso do envelope lindo lindão. Lado a lado, o casal Noel. Chato. Bobo. Sem graça. São dois velhos sentados na mesa da cozinha, cansados da vida, cansados um do outro, cansados da neve, cansados do Natal. Poderiam até concorrer com os exemplares mais feios da minha coleção (Jô Oliveira, Brasil, Cr$ 1,80, 1978) não fosse um detalhe. O detalhe é que os selos não eram selos. Eram selos de mentirinha. Vinham impressos no próprio envelope.
Baratinado com essa crocodilagem filatélica, concluí que os selos à vera estariam dentro do envelope. Puta-que-pariu, ô Papai Noel, eu falei na cartinha que colecionava selos! O telescópio, o tigre, o leão e o chocolate foram só um verde. Qualquer Papai Noel digno do seu ofício, tarimbado em peneirar o factível do impossível nas demandas infantis, em separar a bicicleta voadora da bicicleta de marcha, o Phantom System do NeoGeo, qualquer Papai Noel contando com aquela vasta equipe de duendes gorrinho-branco, entenderia que o propósito da cartinha era obter selos. A firma estava sediada na Finlândia, não no Distrito Industrial de Nova Iguaçu – era de se esperar eficiência desse duendato altamente escolado, graduado em engenharia de brinquedos, ludologia, psicologia de cartinhas e gestão de birra. Como poderia o Papai Noel recusar-se a estimular a filatelia, uma das formas mais nobres, eruditas e edificantes de transtorno compulsivo-obsessivo nas crianças, muito melhor que comer meleca e torturar animais?
Abri o envelope. Não tinha selo nenhum. As ilustrações do papel-cuchê me distraem por instantes. Nevasca, céu lavanda, pinheiros, renas, um Papai Noel com cara de cachaceiro e um moleque de bochechas coradas que lembra o Gauchito, mascote da Copa do Processo de Reorganização Nacional que conhecia por cartão-postal. Se isso estivesse reduzido a selo, seria frustrante, mas admissível. Que desculpa terá Papai Noel?
Querido(a) amigo(a)!
Mas eu disse que eu era menino! Boy! Meu nome termina em ó!
Círculo polar, diciembre 1990
Diciembre?! Diciembre 1990.
Me gustaría primeramente darte las gracias por tu saludo, me encuentro bien y espero la llegada de la Navidad con el mismo entusiasmo que tú.
Gustaría. Encuentro. Mismo.
Puta-que-pariu, puta-que-pariu, puta-que-pariu!... A cartinha estava toda, toda, todinha toda em CASTELHANO. A viagem de Campo Grande até a puta-que-pariu de Queimados passei em choque no banco de trás do Chevelho meticulosamente a decifrar essa paródia do português, uma língua-do-pê very hard, pondo aqui uma letra, tirando outra ali, trocando sons pra ver se as palavras faziam sentido.
Pero qué oigo, la puerta se abre de repente y Peski, el gnomo de los renos, con sus mejillas sonrojadas pregunta:
Puerta. Pregunta (essa minha vó fala). MEJILLAS SONROJADAS???
Meus conhecimentos de portunhol tinham três fontes:
1. os universitários cucaratchas que cursavam a Rural em Seropédica e vinham tomar seus gorós no Skylab;
2. os manuais poliglotas dos jogos de tabuleiro e dos eletrodomésticos;
3. e a hiperlexia que me fez aprender a ler muito cedo, mais ou menos junto a eu engatar na fala, tardia.
Seja pelo desenho, seja pelo contexto, seja pela parapsicologia das minhas vidas pregressas como grande de Espanha, um trambolhão impermutável como “mejillas sonrojadas”, cedo ou tarde, se fazia entender. O que eu não entendo ainda é se este desgraçado gordo-baleia-saco-de-areia vai me dizer onde está meu selo nem que seja em pecaspetepelhapeno?
Don Diego Peski Gauchito de Videla y Junta Militar Maradona, el gnomo de los renos, con sus mejillas sonrojadas pregunta:
– ¿Cadê el sello del Álvaro? ¡Puta-que-parió!
Pero qué se abre Peski, el gnomo de los renos, con sus mejillas sonrojadas pregunta:
– Dime querido Santa Claus, ¿qué significa respetar la vida?
Esa si que es una pregunta acertada.
Respetar la vida, querido(a) Santa(o) Claus, é mandar selo.
SELO.
PESSEPELO.
Difficulty: Practice Normal Pro
Verdad que la vida es siempre maravillosa -
Mi querido(a) amigo(a), tú eres maravilloso(a), el pájaro azul es una maravilla, la flor amarilla también lo es.
Siempre. Maravillosa. Pájaro. Amarilla. También.
Pepupeta peque pepaperiu.
La única cuesa que no é maravilosa na la vida é lo não-selo del Papai Noel.
¡¿O que este velho maldito tem de bom?!
Esos renos de Peski son también maravillas de la naturaleza, son obras de arte viventes de naturaleza.
Naturaleza. Puta-que-pariu, que ridicualeza. Isso é pior que meu primo Vivi chamando estilingue de “atiradeira” e meu pai chamando moca de “cascudo”.
Piensa tú también querido(a) amigo(a), ¿qué entiendes tú por respetar la vida? Y cuando tengas tiempo me escribes acerca de ello.
Respetar la vida, maldito(a) Santa(o) Claus, é respetar las regras dels cuerreyos.
PESSEPELO.
SELO.
Pepupeta peque pepaperiu, esse lapão parlapatão desgramado não me manda os selos, não fala uma só vez em brinquedo e, tipo He-Man, ainda me vem passar lição de moral – em CASTELHANO. Ali a criança envelheceu sessenta anos.
Oquei, oquei... Hoje, marmanjo com seiscentos e noventa e nove anos, compreendo a função da cartinha.
A cartinha pretendia aniquilar na mais loca lerda lesa songamonga criança qualquer ilusão sobre o Papai Noel e, digo mais, sobre a vida. Para a criança criança, Papai Noel se recusava a reconhecer a existência de bicicleta, guloseimas, videogueime, passeios, diversão, mesmo alusivamente. Para a criança carola, Papai Noel não dava um pio pio sobre Deus, cristianismo e o principal aniversariante do 25 de dezembro. Para a criança solitária, à espera da cartinha de próprio punho com canetinha purpurinada, Papai Noel assumia tom de prospecto comercial. Para a criança patrioteira terceiro-mundista anti-imperialista decolonial, Papai Noel demonstrava a mesma ignorância geográfica dos filmes americanos. E para a criança filatelista, Papai Noel sovinava o selo – o selo que é condição suficiente e necessária para o envio duma carta, porque a carta em si pode até estar em branco, a carta não precisa falar de brinquedo ou de Jesus, a carta não precisa ser uma conversa íntima com o órfão que apanha da madre-superiora, mas o envelope tem de estar selado. Puta-que-pariu, essa era e é uma regra básica dos serviços postais por todo o planeta! E o planeta – pode não parecer – inclui Campo Grande e Rovaniemi! A carta tem de TER SELO, puta-que-pariu! O Papai Noel ainda assim deu um jeito de enviar uma carta oriunda lá da puta-que-o-pariu ártica sem selo só e tão-só para fazer mais uma criança infeliz neste planeta cheio de criança infeliz. Papai Noel contrabandeou em pleno verão da Floresta Tropical a carta na puta-que-pariu da rena só para magoar outra criança que sonhava com seu selo polar.
A função da cartinha era também profetizar minha vida. Os anos seguintes seriam todos espera por coisas belas e leves, leves e belas como um selo, coisas que nunca vinham no que tinham de vir quando tinham de vir – nunca vieram nem virão... Anos sozinho decifrando, dum jeito ou outro, códigos estranhos – decifrando sozinho só pela força de muito olhar, porque o difícil seria fácil e o fácil seria difícil...
Verdad que la vida es siempre maravillosa... El pájaro azul, la flor amarilla, tú...
Puta-que-pariu, ó Simone... Cadê nossos selinhos?

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