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Sumidouros de Influência – Literatura Fantástica e a Terra Oca

  • Foto do escritor: Álvaro Figueiró
    Álvaro Figueiró
  • 1 de out. de 2020
  • 7 min de leitura

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Nestes tempos quando a grande questão epistemológica gira em torno (em torno? gira?) de saber se a Terra é A) redonda ou B) plana (gabarito oficial do Mec: B), está fora de vista, no estreitíssimo horizonte (horizonte prova a Terra plana) intelectual brasileiro, a problemática da Terra Oca, cujo pressuposto é tão evidente quanto o da Terra Plana: a Teoria da Terra Oca diz que a Terra é oca – pruns mais oca, proutros menos, com sistemas de cavernas (mais divertido!), pruns com trevas, proutros com um sol subterrâneo. A Terra Oca costuma ser associada ao americano John Cleves Symmes, quem em 1818 não só expôs em panfletos suas idéias como também, com empreendedorismo ianque, convocou interessados em participar ou em financiar a expedição, que obviamente geraria bufunfa, ao menos uma série do History Channel e merchandáizim. Na geodesia alucinógena de Symmes, nosso maltratado planeta era vazado de pólo a pólo por um buracão retofuricular e no seu oco havia dantescos círculos concêntricos.

A Terra Oca rendeu mais literatura que a Plana, sem dúvida pela topologia favorável. A Terra Plana é linear demais, não permite a circularidade do mito heróico, exceto, claro, se você defender a Geodesia Pac-Man, que propugna que o mundo é plano sim, mas, ao chegarmos a umas das quatro margens do mundo, somos teletransportados para o ponto cardeal oposto. Ao menos, a Geodesia Pac-Man é consistente com os fatos: o come-come e os fantasminhas dão a volta ao mundo, ou antes, à tela. A obra mais famosa que se emburaca na Terra Oca é A Viagem ao Centro da Terra de Verne (com cavernas!), mas, nalguma medida, ela subjaz aos trocentos zilhões de mitos e ficções que tratam das descidas aos infernos: Orfeu e Eurídice, Caronte, a Divina Comédia. E é um Gulliver da Terra Oca uma das obras pioneiras da literatura fantástica ocidental – isto é, quando o maravilhoso exorcizou o cristianismo –, a pouco conhecida Nicolai Klimii Iter Subterraneum (“A Viagem Subterrânea de Nicolau Klimm”) do norueguês Ludvig Holberg de 1754.

Há outra ficção do Século das Luzes que trata dessa Idéia das Trevas. Uns anos atrás, procurando pelo relato da expedição antártica do belga Gerlache, trombei com ela na pororoca informacional da internete. Esse livro fortuito é a obscura Relation d’un Voyage du Pole Arctique au Pole Antarctique par le Centre du Monde. Foi publicado anonimamente em Amsterdã em 1721 e dois anos depois ganhou tiragem parisina, que, até onde conferi, não difere grandes coisas da edição-prínceps. Alguns elementos de Relation d’un Voyage apontam para possível autoria holandesa apesar de escrita em francês: o local de edição-prínceps, o narrador partir de Amsterdã e encontrar no Cabo da Boa Esperança (colônia holandesa) um amigo oriundo de Batávia (outra colônia holandesa).

Apesar de livro, é curtinho. E apesar de curtinho, é cheio de aventuras. E apesar de cheio de aventuras, é sacal. E apesar de sacal, é surpreendente. É surpreendente, pois a Relation d’un Voyage antecipa diversos motes da literatura fantástica que só serão sagazmente desenvolvidos um século depois. A Relation d’um Voyage trata deles no destrambelho.

A trama resume-se a um espírito aventureiro que arma navio para conhecer a costa da Groelândia – modalidade incomum de turismo no século do Grand Tour, mas tá – e, após perder-se num nevoeiro, é tragado por um vórtice no Pólo Norte. Como escapa o narrador? Resposta: não escapa. O navio some no rodamoinho e é cuspido nas antípodas polares: “no meio do qual deveria haver um abismo terrível e sem fundo aonde todas as águas que desses mares se precipitavam tinham comunicação pelo centro da Terra com os mares que estão sob o Pólo Antártico”.[1] No hemisfério sul, onde é inverno, a noite antártica é iluminada por estranhos fenômenos atmosféricos e o clima, até morninho. Por ilhas encontram vestígios de civilização com escritas fantásticas e animais idem. Enfim, talvez tão cansados dessas explorações quanto o leitor, rumam ao Cabo da Boa Esperança, onde o narrador encontra, opa, um conhecido, cujas crises de catatonia, ops, o levaram a ser enterrado vivo, xi. Por sorte, ah, o herói desfaz o funéreo mal-entendido, eba. Finis. Ad majorem Dei gloriam. Avec licenses et privileges. Ufa.

O condensado desse opúsculo aponta para temas que aparecem em diversos textos de Poe: o vórtice n’Uma Descida no Maelstrom e Manuscrito Encontrado numa Garrafa; o clima antártico temperado e as inscrições misteriosas n’A Narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket; a vivissepultura n’O Enterro Prematuro; é o holandês o narrador daquele conto jocossério onde se atinge a Lua de balão, Hans Pfall. Façamos uma pergunta com a dicção do narrador do History Channel: teria Edgar Allan Poe lido Relation d’un Voyage em rapaz?

É preciso dar uma resposta convicta: sei não.

Sem dúvida muitas das temáticas abordadas pela Relation d’un Voyage aparecem em fontes menos malocadas. A fantasia polar andava em certa voga no apagar do século XVIII, antes mesmo que as explorações se proliferassem, afinal A Balada do Velho Marinheiro do píssico Coleridge foi publicada em 1798. A crença de que poderia haver uma terra australis nondum cognita quentinha era antiga – e sua persistência, mesmo com os barcos esmigalhados contra aicebergues, só testemunha a teimosia em idéias de jerico. A patranha do vórtice ártico não era nada nova, pois aparece no mapa de 1595 por Mercator.[2] Mas conforme advertiu o próprio Poe em posfácio ao Manuscrito Achado numa Garrafa, isso se ele tampouco estava de patranha, desconhecia aquela projeção cartográfica ao escrever o conto, portanto a inspiração poderia ter vindo doutro lugar. Para o buracão polar afinal, bem mais próximo geográfica e temporalmente a Poe, estaria seu compatriota Symmes. Por outro lado, a Relation d’un Voyage parece que continuou tendo voga durante certo tempo além das duas edições em começos do Setecentos. No décimo nono volume duma coletânea chamada, Hetzel antetempo, Voyages Imaginaires, republicou-se em 1788 a Relation d’un Voyage, aliás em dobradinha com o romance de Holberg.

O que, nesta crítica literária de várzea, rachão estético, rala-coco de cuca, levanta a bola prà minha bicuda isoladora sobre a problemática das influências. Lá vai a bola cair de novo no quintal de Dª Pepita... Aproximadamente sete treze avos da história da arte fundamentam-se nas cadeias de influências. Essa perspectiva pressupõe que os artistas mantêm diálogo contínuo com grandes criadores do passado. A crítica da arte é tão vezeira nessa abordagem que raríssimos são os casos de criadores, como Blake ou Beardsley, em quem não se consegue estabelecer filiação genética nenhuma e admite-se, com muxoxo, originalidade no sentido pleno. Há procedimentos que buscam dar um mínimo de rigor às cadeias de influência: o primeira deles é estabelecer que o artista anterior fosse acessível ao posterior, tanto materialmente (p. ex., mediante reproduções) quanto formalmente (p. ex., achar-se o texto em certos idiomas). É por isso que o estudo biográfico assume muita importância na história da arte, pois permite estimar aquilo que o artista poderia ter consumido. Em certos casos, como o da pintura, cuja reprodução fidedigna só foi possível pela fotografia em cores, até pouco tempo atrás a única maneira dum pintor conhecer a fundo certa obra era freqüentar galerias, museus, igrejas, palácios onde se encontrassem os quadros. Quem não o pudesse fazer, só poderia sofrer influências derivativas – outra ordem de problema.

Entretanto quem garante que as semelhanças temáticas, estruturais, estilísticas, até mesmo frasais (lato sensu), entre o artista B e o seu sucedâneo C impliquem em influência de B sobre C, mesmo quando C foi seguramente bombardeado por obras de B? Essas influências não poderiam ter ocorrido por um artista Z, menos conhecido? Ou, direto duma fonte A, apenas seguindo as mesmas deduções estéticas que B aplicou à arte de A? Ou ainda por um conjunto de estilemas que simplesmente estão no ar?

Assim como o público costuma apreender os códigos artísticos de forma inconsciente ou raramente consciente (a câmera lenta como ênfase dramática quem nos ensinou?), também é de se suspeitar que a criação artística reflita influências latentes e muito difusas que o artista depois tenta racionalizar. A primeira racionalização é misturar influência com admiração. Quando o Sr. Jornalista pergunta ao Sr. Escritor quais autores o influenciaram, a resposta não fala sobre as influências efetivas e sim sobre quem o Sr. Escritor gostaria de emular, ou melhor, de superar. Não duvido que o mais corriqueiro na criação seja a influência por artistas que se queira evitar a todo custo. A força do clichê, o desejo de romper com a “anxiety of influence” como diria Harold Bloom, a necessidade de se resolver impasses, o equilíbrio instável entre o prazer e o dever, tudo isso fazer pender a mão criadora para formas cuja matriz não é bem clara e às vezes até indesejável. Aliás, como observa Umberto Eco no posfácio d’O Nome da Rosa, geralmente são os artistas menores que criam alertas, superconscientes; comumente os verdadeiros criadores apenas pretendem engabelar aos outros e a si que a obra foi planejada com régua, esquadro e compasso. Outra vez Poe pode ser tomado como exemplar: quando explica n’A Filosofia da Composição como teria escrito O Corvo, temos é antes uma explicação sobre como O Corvo deveria ser lido.

A problemática das influências derrapa para o infinito quando a produção, a circulação e o consumo de textos, vídeos, áudios e imagens passam a pervadir o cotidiano. A questão fica mais encalacrada ainda quando se opera no domínio pope, em que tanto os estilemas quanto as formas são estereotipados. Não à toa é nesse domínio pope onde mais surjam as acusações de plágio e, como era de se esperar, essas acusações dificilmente sejam comprováveis. Esse é um vórtice de influências que destrói artistas e críticos: só é mar sereno para navio que arvora o pavilhão pirata dos escritórios de advocacia.

Mas afinal Poe leu a Relation d’un Voyage du Pole Arctique au Pole Antarctique par le Centre du Monde? E se leu, fez alguma diferença?



[1]au milieu duquel il devoit y avoir un goufre épouventable & sans fonds, où toutes les eaux de ces Mers se précipitans avoient communication par le centre de la terre, avec les Mers qui sont sous le Pole Antarctique”. [2] “O oceano por meio de dezenove entradas entre estas ilhas forma quatro estreitos, pelos quais incessantemente é conduzido rumo ao pólo norte e aí é absorvido pelo interior da Terra.” (“Oceanus 19 ostiis inter has insulas irrumpens 4 euripos facit quibus indesinenter sub septentrionem fertur, atque ibi in viscera terrae absorbetur”)

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