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Que Niterói se Exploda

  • Foto do escritor: Álvaro Figueiró
    Álvaro Figueiró
  • 24 de out. de 2020
  • 8 min de leitura

Atualizado: 23 de set. de 2021


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Em primeiro plano, a Ilha Fiscal. O Malho, 07/03/1925.


Quem não gosta duma explosão? É um espetáculo de som e luz. Dá consistência ao filme. O neorrealismo italiano e a nouvelle vague teriam muito a ganhar com explosões (verdade que não são tão bonitas em preto-e-branco). Em beleza nada supera as explosões nucleares, sobretudo nos atóis do Pacífico, as palmeiras concorrendo em elegância com o cogumelo atômico, as areias de corais concorrendo em brancura com o vapor radioativo. Faça o dia dalguém feliz. Diga para a tua explosão atômica que ela é linda.

Uma boa explosão tem de ser acompanhada por estrondo. É muito decepcionante ver nos meiquinoves quão fajutas são as explosões dos filmes, meras bolas de fogo, bufas pirotécnicas. Isso não é explosão. Um cabeção-de-nego faz melhor.

Minha piromania tem pedigri. No lado materno, a família explorava pedreiras no Rio e em Queimados. Para burlar blitz na carga de explosivos, meu avô estufava no carro, junto com as caixas de dinamite, a filharada. Se o guarda o parasse, ele protestava todo choroso:

- Mas, seu guarda, no carro só tem família!

Família Cardoso Trinitrotolueno Mendes.

Supondo que esse veículo familiar tivesse colidido frontalmente com um caminhão-tanque de gasolina – apesar do plasma de não-avô, não-mãe e não-tios –, a catástrofe seria de diminutas dimensões e a explosão até modesta, tendo lá, embora, seu valor estético.

Em 1917, uma colisão mais portentosa causou o maior cabum desde que o Homo erectus começou a faiscar pedra. No porto canadense de Halifax, um cargueiro francês, entupido de explosivos para matar gente na Europa, abalroou um navio norueguês. No ato, morreram 1.600 pessoas (no lado errado do Atlântico). Uma área dum quilômetro e meio foi arrasada. A âncora do cargueiro foi isolada a três quilômetros de distância. A explosão logrou a proeza mosaica de expor o leito do mar, que respondeu socando uma onda de 18 metros de altura em quem ainda estava vivo. A Cecil B. DeMille Production. Só coisa fina.

Tivemos algo parecido – versão maior da América Latina – aqui na nossa Baía de Guanabara. Mais precisamente na sonífera Niterói, o que deve ter sido o acontecimento mais eletrizante de toda sua história, à frente mesmo da inauguração da praça de alimentação do Plaza Shopping. Em 27 de fevereiro de 1925, a Cidade Sorriso fechou a cara, Araribóia fugiu pro Rio e a praça de alimentação do Plaza esvaziou-se. Parte de Nitquíti foi pelos ares, mas infelizmente só parte. Hiroximanagasaquimente, um relógio cravou o momento exato da explosão: 16 horas e 16 minutos. A explosão foi tão fodástica que todas as casas da Ponta da Areia foram danificadas. Foi tão fodástica que ela quebrou vidros e arrancou portas na Avenida Rio Branco, do outro lado da Poça. Foi tão fodástica que se ouviu em Santa Cruz, aonde ainda não chegou a notícia do Grito do Ipiranga nem a do assassinato de Odete Roitman.[1] Foi tão fodástica que fez um paralítico sair correndo.[2] Foi tão fodástica que matou de susto um rapaz de dezesseis anos.[3] Foi tão fodástica que fendeu a terra e pariu uma ilhotinha.[4]

Como sempre, tudo começa na véspera, uma quinta-feira, quando se incendiaram duas chatas, pertencentes à The Atlantic Refining Co., transportando latas de óleo e de gasolina. (Se você já é calvo ou tem peito murcho, vai-se lembrar dos postos de gasolina da Atlantic, tão velhos que se pronunciavam à francesa, oxitonamente.) Na manhã de sexta-feira, os niteroienses podiam ler no sempre chapa-branca O Fluminense que o garboso Corpo de Bombeiros debelara o incêndio às nove da noite.[5] Só que não. Verdadeiro arquétipo daquela piada dos dois baianos na rede e a cobra venenosa, as chatas voltaram a pegar fogo e agora pegar fogo à vera. Lata voa, gasolina arde sobre o mar, chatas à deriva.

Ao contrário da explosão em Halifax, em Niterói as embarcações só foram o pavio. O barril de pólvora era a Ilha do Caju. A Ilha do Caju hoje é um daqueles acidentes geográficos típicos da Guanabara, metade granito, metade concreto, erosão retificada. Quando você se aprochega ao pedágio da Ponte vindo do lado certo da Baía, é aquele naquinho à direita com galpões dilapidados, pátio industrial, vestígio de estaleiros, concreto tinto de ferrugem, capim enfezado, autedores de cueca ou de plano funerário. No estágio economicamente menos sofisticado que era 1925, a Ilha do Caju era um trapiche arrendado à firma Cruz Santos & Matos. Que tinha no trapiche? Paióis, tanques e armazéns de pólvora, gasolina, dinamite, oxigênio, munições, breu, cordite, bojudinhas de Caninha da Roça Blueberry, conhaque de alcatrão São João da Barra, cachaça Velho Barreiro.

E as chatas incandescentes estão vindo, devagarinho, devagarinho pra essa riba.

Hoje vai ter uma festa.

O administrador do trapiche em apuros implorou reboques de estaleiros vizinhos, chamou os bombeiros, gritou pela mamãe. No desamparo, os funcionários do trapiche saltaram no mar para afastar as latas com croques e tentar apagar com baldes as chamas sobre a água. Homens queimados, o fogo lambendo pelo matagal da Ilha do Caju, as latas voando das chatas, é hora de dar tchau. O administrador arregou numa frase que sempre jurei inexistir em português, frase de mentirinha, frase de filme, unicórnio frasal:

- Salve-se quem puder![6]

Então o fogo deu uma beijoca nos paióis, tanques e armazéns de pólvora, gasolina, dinamite, oxigênio, munições, breu, cordite, licor creme de menta Stock, conhaque de gengibre Dreher, aperitivo alcoólico Catuaba Selvagem.

Smaaaaack!

Beijinho, beijinho, tchau, tchau.

Tchim-tchim.

Essa foi a explosão fodástica, tão fodástica que etcétera e etcétera. Quem perdeu o espetáculo podia ficar descansado, pois teve repeteco, em câmera lenta, por mais dois dias. Vez ou outra, algum explosivo ou inflamável sobrevivente espocava. Em sete horas, foram cinqüenta estrondos.[7] Mas isso era enterro-dos-ossos.

Se a onda de choque da primeira explosão se fez ouvir na terra-de-malboro, é de se imaginar o estrago na lusitânica Ponta d’Areia, a um tirinho de espingarda da Ilha do Caju. Jornais do dia seguinte, como O País, davam com mimosa linguagem “várias centenas, talvez um milhar de mortos e estropiados”. A mais moderninha A Noite estimava cem defuntos e três mil desabrigados, duas mil casas destruídas. O prefeito niteroiense logo desmentiu a hecatombe, garantindo que não havia desaparecido ninguém, que feridos eram uns cem e que tinham morrido só sete pessoas (Prefeitura Municipal de Niterói, trabalhando por você).[8] Outros periódicos falavam em quinze mortos. A Wileman’s Review, semanário comercial carioca editado em inglês, relatava sem firulas: “Though up to now only 7 bodies have been recovered, there is no doubt that the death roll must have been great and that many bodies will never be found because they must have been blown to pieces or buried deep in the debris.[9] Para os bombeiros, contudo, não haveria mortos nem feridos sob os escombros – mas isso era palpite, pois não escarafuncharam, assim afirmou o coronel Alfredo E. Neumann.[10] What, me worry? Pioneiro da tradição dos voos de helicóptero solidários, o governador Feliciano Sodré, depois de comer um italiano, saiu do Palácio do Ingá para dar uma espiada na desgraça, declarou que era buito tite e partiu para encontrar o secretariado na praça de alimentação do Plaza.

É difícil dar xou de dados. A era do lide ainda estava por vir. As mesmas matérias jornalísticas se contradizem. Uma fala em diferentes linhas que a Ilha do Caju mantinha, em toneladas de dinamite, vinte, oitenta ou mesmo mais que trinta mil.[11] Embora sem dúvida o número de mortos tenha sido superior a quinze (chegou a chover bala-perdida na Ponta da Areia), talvez a tragédia não tenha assumido grande magnitude em vidas. Ontem como hoje, a imprensa é dada a sensacionalismo. Matar centenas e estropiar milhar vende mais. Pelas fotografias, percebe-se que a parte da Ilha da Conceição voltada para a do Caju foi de fato aniquilada. Na Ponta da Areia, muitas casas das ruas Barão de Mauá e Miguel de Lemos aparecem destelhadas, rachadas, sem portas nem janelas, caibros caídos, móveis revirados, porém não exatamente arrasadas.[12] Bombeiro chegou a morrer no combate às chamas, mas só foi um. Então, no final das contas, a maior parte dos mortos deve ter sido mesmo, como escreveu uma matéria, “os vigias, suas famílias e alguns empregados, em número reduzido.”[13] Mas aí dá para presumir algo mais que quinze mortos. Uma das razões para a matadeira ter sido talvez suave é que a maioria dos trabalhadores já tinha vazado dos estaleiros, indústrias e oficinas do entorno. O laudo dos engenheiros civis nomeados para instruir o inquérito policial poderia trazer esclarecimentos, mas, neste exato momento, tenho tarefas mais prementes do que tal pesquisa (escorrer o macarrão).[14] Entretanto, conhecendo os arquivos estaduais, é bem provável de o laudo, se concluído, ter sumido.

A caridade pública não tardou a comparecer. Encheu coluna social, mas ao menos trouxe grana – melhor que solidariedade expressa em tuitada, rexetegue, laiques e abaixo-assinados. Ainda na ressaca do carnaval, os clubes dos Democráticos e dos Fenianos recolheram donativos em “bandos precatórios”. A Noite promoveu subscrição que, um mês depois, levantaria 116 contos de réis.[15] Se a tua família fosse honesta, se ela não misturasse automóvel, criança e dinamite, poderia vir a receber alguma merreca dos cem mil-réis da Sociedade União Beneficente das Famílias Honestas.[16] E, claro, teve missa pacas, mas isso era a tuítada e o laique da época. Pelo menos, não encontrei nenhuma menção a gente afanando os donativos, ao contrário do ocorrido após o ultratoró na Região Serrana em 2011.

Não existe tragédia mais anunciada do que a dum escritor não conseguir achar alternativa para dizer que uma tragédia era uma tragédia anunciada. Após gastar quinze minutos ponderando como começaria este parágrafo para dizer que a tragédia era uma tragédia anunciada sem escrever “era uma tragédia anunciada”, rendo-me à economia textual: a Ilha do Caju era uma tragédia anunciada. Já cinco anos antes, em 1920, tinha derrubado casas na Ponta da Areia quando explodiram depósitos de óleo, querosene, magnésia e dinamite pertencentes à Marques Leão & Cia. O povo conhecia a pestinha como “ilha dos inflamáveis”.[17] Era uma tragédia anunciada.

O Ministro da Fazenda, descobrindo que explosivos e inflamáveis com cidade dão tragédia anunciada, encomendou estudos para transferir os diversos depósitos para a Ilha do Braço Forte, pelas bandas de Paquetá.[18] Aí aconteceriam outras tragédias anunciadas. Uma delas, a morte de dezessete bombeiros, a maior perda da corporação, numa explosão em 1954. A outra, a desfiguração das ilhas da Guanabara.

O porguesso é exprosivo.

E tragédia anunciada.



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Estragos em Nitéroi. Revista da Semana, 07/03/1925.


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Catástrosfe industrial registrada em intrépido aeroplano. O Brasil civiliza-se! Revista da Semana, 04/04/1925.


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- Coronel Hermógenes, será que isso vai afetar a saca do café? Careta, 07/03/1925.


[1] “O impressionante sinistro de ontem na ilha do Caju”, O País, 28/02/1925

[2] A Noite, 2ª edição, 27/03/1925

[3] O Fluminense, 28/03/1925

[4] Revista da Semana, 04/04/1925, p. 25.

[5] O Fluminense, 26/02/1925; “Um incêndio na Guanabara”, O Jornal, 27/03/1925.

[6] O País, 01/03/1925

[7] A Noite, 2ª edição, 27/03/1925

[8] “A catástrofe da Ilha do Caju”, O País, 02-03/03/1925

[9] Wileman's Review, 04/05/1925, pp. 281-283.

[10] “O formidável sinistro de anteontem”, O País, 01/03/1925

[11] “O impressionante sinistro de ontem na ilha do Caju”, O País, 28/02/1925

[12] Obviamente os melhores registros fotográficos estão nos semanários ilustrados. Revista da Semana, 07/03/1925, pp. 20-30; Careta, 07/03/1925, pp. 20-25; Fon-Fon, 07/03/1925. De especial valia é o registro da Revista da Semana, que conta até com aerofotos, panoramas, diagramas e mapas.

[13] “O impressionante sinistro de ontem na ilha do Caju”, O País, 28/02/1925

[14] A Noite, 06/03/1925.

[15] A Noite, 30/03/1925.

[16] O Social, 15/05/1925, p. 14.

[17] A Rua, 25/11/1920.

[18] "O porto para inflamáveis", Jornal do Brasil, 28/06/1925.

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