Pirataria Moleque
- Álvaro Figueiró
- 30 de jun. de 2020
- 16 min de leitura
Atualizado: 19 de mar. de 2024

Catarina Stephanopoulos, Joli Jolly Roger.
Como não amar os piratas? Eles são imundos, violentos, alcoólatras, traiçoeiros, cruéis, sociopatas, torturadores, devastadores de cidades, destruidores de colônias, interruptores do comércio, dilapidadores de cargas, chantagistas, gananciosos, estúpidos, desbocados, debochados, analfabetos, piolhentos, escrofulosos, sifilíticos, bangüelas pelo escorbuto, caolhas, manetas, aleijados e desfigurados por tiros de canhão, de palanqueta, de arcabuz, por golpe de florete, de faca, de cutelo, absolutamente incautelosos em fumar cachimbo nos paióis de pólvora, viciados em carteado, putanheiros, invariavelmente bêbados durante as borrascas ou nas abordagens à presa. E isso tudo para quê? Para encher os cornos de rum, conhaque e vinho num recife deserto e admirar o pôr-do-sol. Justo. E não postavam fotos das suas férias paradisíacas no Instagram. Mais justo ainda.
Dizem que a pirataria é a terceira profissão mais velha do mundo, depois da prostituição e da medicina. Na verdade talvez a quarta se profissionalizarmos as futricas e intrigas paleolíticas como jornalismo. Boa parte dos heróis homéricos é mais bem entendida como bando de larápios náuticos. O púbere Júlio César foi capturado por piratas e só escapou graças a um resgate zilhardenário. Júlio César escravo na Cilícia ou morto no fundo do mar, a História do mundo teria sido completamente diferente... Não. Não, não seria, caro contrafactualista.
Embora tenham pilhado os sete mares e os sete milênios, a pirataria para nós é algo que se pratica no azul-turquesa por tripulações paramentadas de rabicho, bandana, jabôs fedendo a rum contra galeões espanhóis bojudos de dobrões de ouro e reais de oito comandados por fidalgos gordos, corruptos e covardes. Pirata medieval no Báltico como os Vitalienbrüder ou chinês no Mar Amarelo dos manchus como a esquadra da Viúva Ching soa como impostura, mash-up infeliz, Kid Bengala vérsus Predador. Fazendo o corte espaço-temporal no açougue da memória, sessenta gramas de história, vemos só o Caribe entre 1660 e 1720. Esse período designa-se como Época Áurea da Pirataria embora para certos autores o ápice se deva restringir às décadas de 1660 e 1670 enquanto para outros, às de 1710 e 1720. Há aí talvez vezo nacionalista, pois o primeiro intervalo, favorecido por espanhóis, corresponde aos esculachos que um Henry Morgan desdo seu valhacouto jamaicano desferiu contra o Panamá ao passo que o segundo período, ao pega-pra-capar generalizado de que a Inglaterra, já a superpotência marítima, acabou, por mera estatística, a principal vítima. Essa perspectiva nacional explica a dificuldade que os espanhóis têm em cindir a tipologia: “Nada tan confuso como distinguir entre piratas, corsarios, bucaneros y flibusteros.”[1] Como a especialidade espanhola era levar porrada, burilar a taxonomia da bandidagem não servia de nada. Para os ingleses, no lado azul do livro contábil do mercantilismo, sacanagem tinha de ter regra e a principal distinção era entre corsário (privateer) e pirata (pirate).
O corsário atuava como força paramilitar ao receber das autoridades navais carta de corso (letter of marque) que lhe permitia atacar os navios das nações inimigas. A paga evidentemente era o butim, rateado entre tripulação, capitão e governo. Foi no bojo da rocambolesca Guerra da Sucessão Espanhola, uma das primeiras conflagrações mundiais, que Jean-François Duclerc aportou aqui na Guanabara em 1710 para dar um créu nos inimigos portugueses mas levou coça e, após preso, em prenúncio da futura polícia carioca, tomou sumiço. No ano seguinte não teve jeito, pois a frota doutro corsário, René Duguay-Trouin, não só capturou o Rio como escapou da nossa proto-PM. Para os corsários, como Duguay-Trouin, erguiam-se até estátuas.
O pirata, esse era um sem-eira-nem-beira, roubava todo mundo a todo tempo com a estibordo e a bombordo, não tinha pátria, não tinha lei, não tinha estátua – mal comparando era antepassado suinospiritual daquele meu ignoto colega de repartição que, em festa de fim de ano, em dois minutos de desatenção, afanou o panetone que eu acabara de ganhar no sorteio. Na pitoresca expressão do Setecentos, os piratas haviam declarado guerra contra o mundo, reelaboração do ciceroniano “hostes omnium gentium”. Por meterem essa banca toda, os ingleses não lhes reservavam os favores legais. Capturados, iam para a forca. Para não deixar dúvida, a sentença ainda vinha com eco: “there hanged by the neck until you are dead, dead, dead.” Dá até boa canção pirata: “there hanged by the neck until you are dead, dead, dead.”
Embora as tripulações piráticas fossem multinacionais e até multirraciais, com folga predominavam ingleses, galeses, irlandeses e seus descendentes da outra margem atlântica como se tabula da documentação de diversos julgamentos. Nos navios mais mesclados, em vez daquele idioma de araque cheio de arrgh e yo ho que ouvimos nos filmes, decerto se falava algum inglês pidginizado, donde os espanhóis para designar pirata terem o aparentemente cognato vocábulo pechelingue, também existente em português. O predomínio das ilhas britânicas nessa chusma, outra vez, explica-se pela hegemonia naval inglesa, que pressupunha abundante mão-de-obra náutica. Por outro lado, os surtos de pirataria no século XVII e XVIII estão intimamente associados às desmobilizações ao fim dos conflitos militares: a gatunagem aquática endêmica a partir de 1715 é tida como conseqüência direta do fim da Guerra da Sucessão Espanhola que desempregou a marujada. E, neste mundo injusto e cruel, para poder encachaçar-se é preciso trabalhar. Além da irrupção crítica de desemprego num dos primeiros complexos industriais que eram as marinhas,[2] alimentavam os navios piratas corrente contínua de insatisfeitos com o esculacho que era a vida nos vasos de guerra e mercantes. Os soldos eram irrisórios, as condições atrozes, os castigos corporais constantes, a hierarquia rigidíssima, as chances de ascensão quase nulas, o butim açambarcado quase todo pelos figurões, a morte provável por afogamento ou doença.[3] Não estranha que atraíssem os marujos à pirataria a insatisfação e o prospecto dum golpe de sorte em capturar uma nau bojuda de ouro, prata, rubis, esmeraldas, pérolas, diamantes, sedas. No mais, em vez desse Clóvis Bornai náutico, avinham-se com chalupas mequetrefes com algum peixe seco, melado, buréis.
Sim, o navio pirata também era um inferno molhado, mas, ao menos, sem hierarquia de capetas. A parte do leão no butim que cabia ao capitão era um mio, apenas o dobro do recebido pelo resto da tripulação. O capitão era escolhido por voto da maioria, sua autoridade restringia-se na prática aos combates e poderia ser revogada pelos marujos a qualquer momento. Os mutilados em combate recebiam indenização e podiam permanecer junto à matalotagem, previdência social pioneira e decerto mais bem administrada que a nossa. Tais tendências democráticas levaram a incontinente pena do autor de A General History of the Pyrates a fabular certo capitão Mission que, estabelecido em Magadascar, se propôs a criar uma utópica Libertália, onde ninguém seria senhor de ninguém nem haveria propriedade privada e todos falariam um idioma comum. Apesar do devaneio desse soviete pirático, A General History of the Pyrates, publicada em 1724, é uma das melhores fontes históricas e decerto a obra que mais influiu na lenda da pirataria. Em que pese o horror do romancista E. M. Foster em Aspects of the Novel, as biografias da bandidagem marítima que compõem A General History quadram justinho dentro daquele pululante gênero da literatura da patifaria (rogue literature), tão ao gosto inglês, ao qual não se furtaram nem Fielding ou Defoe. Aliás a autoria há algum tempo se atribui ao irrequieto (para não dizer mercenário) criador de Robinson Crusoé e Moll Flanders e, entre as razões aduzidas, elencar-se-iam a misturança de picaresco, o tom condescendente com as falhas humanas, a propensão à religião natural, a crítica à hipocrisia nos paralelismos entre os piratas e os poderosos, a reflexão política. É bem Defoe interromper uma cena de ação para discorrer sobre as repúblicas ou para deixar o capitão passar um sabão na tripulação por ter roubado as colheres das crianças do navio predado.
Os piratas produziram lenda, teatro, panfletos, sermões, crônicas, baladas, romances, musicais, filmes, jogos de videogueime. Mais recentemente até estudos acadêmicos, inclusive um cujo pendor neoinstitucionalista sobre a Jolly Roger Inc transparece no título The Invisible Hook: the hidden economics of pirates.[4] Prof. Glommer aplaude desde Viena.
Eu gosto muito de piratas!
Na literatura, o exemplo mais famoso é, claro, A Ilha do Tesouro de Stevenson, que consolidou estereótipos como o papagaio encarapitado, o oximórico mapa, a perna-de-pau e a contagem regressiva musical das trezentas e quarenta e nove garrafas de rum, ho! Outros autores foram menos felizes. Steinbeck, no seu primeiro livro, Cup of Gold, romanceou Morgan sob o ocasional prisma do realismo fantástico. Michael Crichton, de dinossáurica fama, escreveu o pífio Pirates Latitudes, publicação póstuma inacabada caça-níquel, onde cada personagem tem uma habilidade especial à boneco do Comandos em Ação. O vovô beatnik Burroughs saiu-se melhor ao reter do imaginário o essencial e assim, após muitos picos de heroína, em Cities of the Red Night retrabalhou a Libertália em utopia guerrilheira pirata guei terceiro-mundista tecnologista. Até a pouco ousada, sempre convencional literatura brasileira deu braçada nesse mar aventureiro. O barriga-verde Virgílio Várzea publicou o maçante O Brigue Flibusteiro, vindo à lume como livro em 1904, mas escrito entre julho e outubro de 1895. Menciono meticulosamente a data, pois foi em julho de 1895 que os ingleses, esses colecionadores de pedrinhas oceânicas, pretenderam ocupar o furúnculo rochoso da Ilha da Trindade, esquecido incidente geopolítico transmutado por Várzea em folhetim capa-e-espada, cujo desfecho é a expulsão pela frota lusa da “bandeira inglesa dos flibusteiros”.
Na telona, as jóias decaem a bijuteria. Nem mesmo Polanski ou a trupe do Monty Python com Pirates! e Yellowbeard criaram filmes interessantes. Ninguém nunca filmou um Flibusteiros da Guanabara e talvez a saída seja por aí.
Curiosamente foram os videogueimes que souberam explorar bem a temática pirática. Nessa linha há alguns dos melhores jogos de todos os tempos, como The Secret of Monkey Island, Monkey Island 2 e os dois primeiros da série Alone in the Dark. Menos famoso que seus simuladores Civilization¸ Sid Meier, com a minúcia de sempre, também programou Pirates!, guaribado em Pirates! Gold, em que nosso navinhozinho segue os alísios, troca bordoadas com o inimigo, comercia, pilha.
Eu gosto muito de piratas!
Sobre todas as lendas assoma a figura do Capitão Kidd, o arquipirata. E, como quase toda lenda, de forma absolutamente injustificada. A lenda ronda a perversidade e o paradeiro do tesouro, roubado e escondido graças a perversidades mil.
No clássico O Escaravelho de Ouro, de 1842, sem dúvida um dos maiores marcos na consolidação do conto como meio literário, Poe colocou ninguém menos que Kidd por trás de escrita invisível, cifras, enigmas e tesouro escondido. O cenário é a arenosa Ilha de Sullivan, ao largo da Carolina do Sul, e postula-se o pirata demoníaco a ponto de matar os comparsas de pá como fecho de segredo, outra estampa para clichê, o dead men tell no tales. Nas ilustrações do americano Howard Pyle – a contraparte gráfica de Defoe, Poe e Stevenson na escrita –, o Capitão Kidd tem todo o feitio de facínora, os olhos aguados, a bigodaça cretina, a beiçola sanguinolenta contrastando com a face cinérea, um dandismo de bate-bola que tivesse feito pacto satânico para vencer os rivais nos quebra-paus carnavalescos em Marechal Hermes. Numa dessas ilustrações, Kidd te encara cheio de marra tipo gerente da boca, pistola na mão, o vento lhe rufando as cintas vermelhas, enquanto a tripulação se some na areia para esconder os baús.
Antes de existir History Channel – ao menos para a patuléia como eu – e antes ainda de o controle acionário do History Channel ser assumido pelo Erich von Däniken, lá em fins da década de 1990 bom meio para se inteirar sobre o fantástico, o bizarro, o paranormal, as teorias de conspiração, os turismos sexuais dos é-tês era ler a Fator X. Foi aí que aprendi sobre o sujeito que morreu eletrocutado no projeto falhado de brinquedo erótico bronheiro cujas peças eram a) uma tomada, b) dois fios de cobre e c) um coração de boi. E foi aí que aprendi sobre o reverendo Jim Jones. E sobre o MK Ultra. E a Unidade 731. E sobre sonhos lúcidos. E sobre a memética. E sobre o avistamento de grandes felinos pelas Grã-Bretanha. E, claro, sobre Oak Island.
Oak Island, talvez você já saiba graças ao History Channel ou à Fator X, é aquela ilhota ao largo da Nova Escócia com um poço onde o povo escarafuncha há mais dum século na esperança de desentocar tesouro. Já se teria retirado tudo: tábuas, lajes com inscrições crípticas, o boletim escolar de Eric o Ruivo, bótons de “Eu sou fiscal do Sarney”. Mas vem broca, vem bomba e o maldito poço volta a inundar. Quebra equipamento, morre gente e continuam a cavucar o maldito poço que enche d’água atrás do tesouro. E quem teria malocado o tesouro nesse maldito poço? Ora, quem? Ele, o Capitão Kidd, arquipirata e maior engenheiro de minas de todos os tempos!
Até no Brasil teriam escondido o tesouro. Em The Worst Journey in the World, fascinante relato do perrengue antártico na expedição de Scott, Apseley Cherry-Garrard menciona ampassã a Ilha da Trindade como esconderijo da bufunfa. Enfim, parece que o maior objetivo do Capitão Kidd em singrar os sete mares era devolver à terra todo ouro dela retirado. Leitor, confira no teu extrato se o vil Kidd não tentou te usar como laranja.
- Mas quem foi o Capitão Kidd histórico? – intima-me o Conselho Regional de Historiografia, agora sob gestão neopositivista-pós-deleuziana jiujiteira, mediante ameaça de abater meu brevê na porrada.
William Kidd nasceu na Escócia ali pela meiúca do Seiscentos e, garotão, imigrou para Nova York, onde enricou no comércio de grosso trato. Mareante respeitado que não dava cavalo-de-pau nas escunas nem tunava bergantins, recebeu várias comissões para capitanear como corsário. Tinha uma casa bonita, esposa moça com dote gordo, duas filhinhas, um Escort na garagem. Mas cantou-lhe no ouvidinho o bichinho da cobiça. Ao desembarcar em Londres numa das suas viagens de negócios, acenaram-lhe com mirabolada: dechavar-lhe-iam não só carta de corso contra navios mercantes franceses, mas também comissão régia para apresar os piratas que infestavam o Índico. Boquejava-se sobre o butim fabuloso que os flibusteiros angariavam atacando as imbeles naus árabes, persas e, sobretudo, do Grão-Mogol. Em 1695 Henry Every, evanescido no mito, acabara de saquear a frota de 25 navios que peregrinava a Meca naquilo que é, desde então, o maior roubo da história dos mares. Ladrão que rouba ladrão, ora, uma comissão para gatunar esses piratas índicos parecia meio digno de encher o bandulho. Para reforçar o esquema que se propunha a Kidd, associaram o Conde de Bellomont, que acabara de ser nomeado governador de três províncias da Nova Inglaterra, entre elas Nova York. E o olho-grande foi inflando a ponto de pintarem, na chincha, mais quatro patrocinadores, o Duque de Shrewsburry, os condes de Romney e de Oxford, e Sir John Somers, todos com himalaicos cargos na administração. Até o rei pensou em fazer a sua fezinha na expedição caça-pirata. Na melhor lógica e logística do Antigo Regime, a empreitada era parceria-caracu, pois, se fracassasse, o plebeu Kidd teria de indenizar as perdas dos milordes. Na verdade nem parceria-caracu direito era, pois a lordalhada preferiu não meter a cara com medicas de escândalo. Com a tripulação o esquema era aí sim sem dúvida caracu, pois à cota recebida pelo marujo ao capitão competiriam quarenta. Nos navios piratas, recordemos, a razão era de duas para uma.
Isso vai dar merda.
Isso é pirâmide pirática.
Isso é igual à previdência tupiniquim.
Em dezembro do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil seiscentos e noventa e cinco, zarpou do Tâmisa o Adventure Galley com 287 toneladas, 34 canhões, 70 homens, o lastro todo em quimeras. Kidd teve o cuidado de escolher marujos casados, na crença de que a tripulação fosse menos feral. Mas, como qualquer partida de casados vérsus solteiros poderá demonstrar num domingo à tarde, o matrimônio não reduz a babaquice nem a selvageria de ninguém e, âncora ainda cheirando à vasa, a tripulação, olha só, resolveu fazer bundalelê para uma belonave da maior potência naval do mundo, isso na nação que enforcava por roubo de colher, quá-quá-quá, que divertido! Os oficiais da marinha de guerra, provavelmente também casados, ficaram putinhos, abordaram o Adventure Galley e levaram embora pro xilindró o escrete do capita Kidd. Em troca, sobem a bordo os piores cafajestes do cais londrino. Aproando em Nova York, mais rebotalho embarca, tudo zoiúdo com os miríficos butins dos saqueados mares orientais.
Isso vai dar merda, eu tou falando.
Após seis meses de parcas pilhagens no Atlântico, arriba Kidd em Magadascar, antro de gatos-do-mar, mas fica no vácuo, a piratada toda escafedeu-se, saiu pro batente, foi buscar o rum das crianças. O navio está começando cacarecar, com cracas e craques, as provisões a carecer, a marujada cricri. Geral está doidinho para um motim – isso é, aqueles que sobreviveram às febres tropicais. À vista dum navio arvorando o pavilhão inglês, Kidd é pressionado para atacá-lo. O capitão resiste, pois seria ato franco de pirataria e pirataria dá forca, explica-nos Arnaldo César Coelho. Na primeira oportunidade, parte da tripulação deserta. Um artilheiro vitupera o capitão covarde pelo miserê em que vivem. Correm palavras afiadas. Ponto de exclamação triplo, Kidd bate na cabeça do artilheiro com balde de ferro. O crânio é casca de ovo, é fácil matar, é fácil morrer. O artilheiro morreu. Na pindaíba e agora homicida, Kidd perde o pejo de predar a torto e a direito. As capturas, porém, revelam-se magrinhas, magrinhas. Em vez de metais preciosos e gemas cintilantes, “some Chests of India Goods, thirty Jars of Butter, with some Wax, Iron and a hundred Bags of Rice”.[5] Não tem nem pão pra passar essa manteiga nem feijão pra fazer uma misturinha com esse arroz. Que miserê! Na costa indiana do Malabar, enfim presa polpuda, impada de ouro, prata, musselinas, sedas, cetins. Os armadores eram armênios – o que excluiria o navio como alvo legítimo, mas na Europa meio que se cagava para esses orientais, mesmo cristãos –, só que capitaneado por inglês, o que, opa, aí sim, encaroçava o angu, porém, por outro lado, um tripulante apresentou passaporte francês, evidência que daria, com muitos ademanes jurídicos e sortilégios causídicos, tênue fumus boni juris ao jus furandi, pelo menos assim pensou o nosso Kidd. Simples, né? O Desembargador Eunésio Frieiras tem considerações a fazer sobre o direito internacional privado marítimo, mas não vamos deixa-lo falar...
Nas cidades portuárias da Índia corria o boato de que William Kidd, como diz a televisão, tinha entrado no submundo do crime. Em Londres, quando se expediu perdão régio aos piratas no Índico, excetuou-se Every e Kidd. Mas, confiado nos seus parças poderosos, o capitão singrou de volta a Nova York. Antes de aportar, só por desencargo de consciência, deu uma paradinha ali pelas imediações de Long Island na Ilha de Gardner para esconder parte das suas riquezas. Desse pitestope maloqueiro é que deriva o potosi imaginário que Kidd espalhou pelo mundo. Sabendo sua situação encruada, o capitão pediu a Bellomont para interceder em seu favor no previsível processo de pirataria. Para ficar bem na fita, até deu um presentinho para a esposa do governador, que ela, malandramente, recusou – não, querido capitão, muitíssimo obrigada, mas seda e ouro fazem mal à minha cútis. Com fidalguia, Bellomont deu a entender broderagem, tamos juntos, venha aqui pra Boston pra tomarmos uma e bater um papo, saudades de ti, mermão, esquenta com esse rolo de pirataria, não. Então está lá Kidd literalmente batendo na porta do bróder condal quando ouve os meirinhos gritarem “Teje preso!” O capitão é posto em ferros solitários. Bellomont tratou logo de se informar sobre o paradeiro do tesouro na Ilha de Gardener e tudinho foi recuperado e arrolado (lê-se em caligrafia “Rubies small and great sixty seven – green Stones two”[6]). Ainda assim até hoje tem gente rondando as praias com detector de metal e escarafunchando o poço de Oak Island ou, o que é pior, assistindo aos programas do History Channel sobre Oak Island.
Após um ano confinado, acorrentado e incomunicado, Kidd, já meio tantã, é remetido para Londres para acareação perante o parlamento. Os legisladores, porém, não estão muito preocupados com o destino do preso e sim em usá-lo como arma política: agora eram os tóris que comandavam o governo e Kidd serviria para desacreditar a oposição dos whigs, partido a que pertenciam todos os seus financiadores sangue-azuis. A conveniência, senão conluio, das autoridades coloniais com os larápios oceânicos era habitual e quase corolário – canta, coração livre-cambista! – do exclusivo mercantilista: um dos governadores de Nova York, Benjamin Fletcher, lucrava como receptador e Woodes Rogers, pirata contrito, foi nomeado governador nas Baamas para extinguir com a bandoleiragem. Portanto a delação dos gentis-homens não teria conseqüências mais graves do que uma gafe política, um peido na Câmara dos Lordes. Mas, como o honrado Kidd preferiu não cagüetar os parças, os tóris desinteressaram-se por seu caso e o capitão foi arrastado para uma jaula em Newgate, o Carandiru londrino. Na pátria do liberalismo e do devido processo legal, ficou outro ano encarcerado, sem ver família nem advogado, à espera do julgamento pela Corte do Almirantado. As cinqüenta libras a que tinha direito para as expensas com sua defesa foram pagas em cima da bucha, de modo que o réu só teve uma consulta com os advogados horas antes do julgamento. Ao estilo da Porta dos Desesperados, Kidd entrou e descobriu que, além de pirataria, era processado pela morte do artilheiro. O capitão tentou legitimar suas capturas dentro dos conformes da carta de corso. Lembram-se dos passaportes franceses? Cadê o toucinho que tava aqui? O gato comeu! Decerto aturdido por tudo, o réu embananou-se durante suas falas.
Eh, capitão, a situação tá rũi pro teu lado...
Isso vai dar merda.
O júri já voltou e agora o juiz vai proferir a surpreendente sentença na pátria do liberalismo que enforcava por roubo de colher: “hanged by the neck until you are dead, dead, dead.” Pelo menos, dessa vez, Kidd não teve de ficar aprisionado mais um ano. Rapidinho o levaram para o patíbulo às margens do Tâmisa. Dentre os expectadores que se acotovelavam para o novo arrasa-quarteirão em tecnicólor do leo britannicus MGM com grande elenco, alguém num gesto de caridade passou pro morituro uma manguaça bem braba, destilado de gambá. Kidd subiu ao cadafalso trêbado; agora só a união da gravidade com o garrote para deixar esse caboclo em pé. O povo sacalizou-se com o sermão do pastor, quer ver o carrasco abrir o alçapão, a dancinha da asfixia, a língua de xarpei, talvez uma ereção e até uma ejaculação. Graças a Deus, pararam de falar sobre ressureição, inferno, Bíblia e penitência. O pessoal já está chateado, porque o capitão que escondeu tanto tesouro desprezou a etiqueta patibular dos piratas e não tacou de avanço moedas e pedrarias. Mata logo esse mão-de-vaca! A lei dos Homens já fez seu trabalho, deixem agora trabalhar a lei da gravidade.
Mas não!
Em vez de a queda ser interrompida por saracoteios, o condenado caiu na lama literalmente: a corda arrebentou. Esse cara tá mesmo cagado de urubu que bebeu água do Guandu. Mas vamos dar outra chance à cordoaria inglesa, ainda nos primórdios da Revolução Industrial.
Agora sim o laço agüentou o tranco.
Por três vezes, as marés do rio cobriram Kidd. Depois o cadáver foi metido em anéis de ferro e lambuzado de piche em momo de múmia, espantalho a todas os corvos mentais dos navegantes que iam e vinham pela barra do porto londrino.
Eu falei que ia dar merda.
Parceria-caracu em esquema de pirâmide.
Não que fizesse muita diferença, mas duzentos anos depois, em começos do século XX, encontraram em arquivos ingleses os passaportes franceses. Evidentemente alguém os enrustiu, mais malocado que o tesouro na Ilha de Gardiner.
A viúva não tardou para se recasar com um figurão nova-iorquino. O Escort na garagem foi trocado por um Corsa.
Mas Kidd continua vivo com suas molecagens e cabriolas a pilhar fortunas nas praias do mundo, no poço de Oak Island e nas assinaturas do History Channel.
[1] SALMORAL, Manuel Lucena. Piratas, Bucaneros, Flibusteros y Corsarios en América. Madri: Editorial Mapfre, 1992, p. 33.
[2] JACQUIN, Philippe. Sous le pavillon noir: pirates et flibustiers. Paris: Gallimard, 1988, p. 126.
[3] Boa referência, embora tenha lá os vícios costumeiros da história militar (o autor nega a batiolagem costumeira em alto mar...), é RODGER, N. A. M. The Wooden World: An Anatomy of the Georgian Navy. Londres: Fontana, 1988.
[4] LEESON, Peter T. The Invisible Hook: the hidden economics of pirates. Princenton: Princenton University Press, 2008. Um exemplo da abordagem neoinstitucionalista aplicada à gestão tapa-olho, p. 43: “Similarly, pirate captains didn’t display goodwill and faithful devotion to their crews’ interests because they were nicer than merchant captains or cared more about fairness. Their better behavior resulted from a different institutional organization – democratically divided power – aboard pirate ships. The democratic institutions pirate captains operated under created incentives for them to behave differently than merchant ship-captains who operated under an autocratic institutional regime. Pirate organization rewarded captains for being good stewards of the power they possessed and punished them for preying on their crews. Merchant ship organization often did very much the opposite.”
[5] DEFOE, Daniel. A General History of Pyrates. Nova York: Dover, 1992, editado e anotado por Martin Schonhorn, p. 446.
[6] BOTTING, Douglas et alii. The Pirates. Amsterdã: Time-Life Books, 1978, p. 121.
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