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Prog alla Italiana

  • Foto do escritor: Álvaro Figueiró
    Álvaro Figueiró
  • 14 de jul. de 2020
  • 14 min de leitura

Atualizado: 16 de jul. de 2020


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Catarina Stephanopoulos - Il Lato Oscuro della Luna (Snell-Descartes com Chabu)


Um amigo perguntava-me, em tempos universitários pela Oxford fluminense, quando é que o tal do roque progressivo progredia. De fato, chegou a um ponto ali por finzinhos dos anos 1970 que nem retrogredia mais, empacou mesmo, perdeu a ferradura, furou o estepe, tornou-se tão formulaico quanto um samba-canção, só que de quinze minutos, mudanças múltiplas de andamento e de fórmula de compasso, variações bruscas na dinâmica, solos virtuosísticos, polirritmia, letras absolutamente viajantes, álbuns conceituais abstrusos. Sempre me intrigou como se tascou esse “progressivo”, ou para falar o idioma da matriz, nosso neolatim, progressive, mas, ignorantão eu, só há pouco descobri que o adjetivo já em fins da década de 1940 se aplicava ao djez dum Stan Kenton, quem pretendia incorporar o vocabulário modernista nas big bands. Por paradoxal que pareça, o progue como panque é uma questão de atitude. No caso do progressivo, a atitude é de deliberada aproximação da música popular à erudita, tendência que o publipoetário Augusto de Campos martelou naquela sua boa coletânea Balanço da Bossa, focada na bossa-nova, na tropicália e no iê-iê-iê.

O cerne do roque progressivo foi indubitavelmente a Inglaterra, a começar com os pioneiros mais elementares e menos indigitados, os Beatles. Na esteira dos liverpudianos, um ano após Sgt. Peppers, surge o King Crimson, que nos seus dois primeiros álbuns são ainda uns Beatles deprês. Nos anos seguintes, emergirão diversas bandas em diversas vertentes – umas, mais próximas ao folque como Jethro Tull e Renaissance; as mais ousadas na Cena da Cantuária como National Health, Egg, Soft Machine; outras vão abeberar-se do historicismo, sobretudo da música renascentista, como o Gentle Giant e mais ainda o Gryphon; outras trarão fortes influências da psicodelia como o Curved Air.

Na década de 1970, talvez validado pelo amplo sucesso comercial de bandas como Pink Floyd, Genesis, Emerson, Lake & Palmer, o progressivo ramifica-se por toda parte onde se toca roque. No Brasil, as influências se farão sentir mesmo em artistas já consagrados como o Mutantes e informarão novos conjuntos como Secos & Molhados, para não falar nada daqueles que passarão a rezar direitinho na cartilha progue, como o Terço. Houve casos esporádicos em que até músicos com vezo brega decidiram lançar seu álbum conceitual, como o português José Cid em 10.000 Anos Depois entre Vênus e Marte, que miraculosamente não é rũi, não.

Da mesma forma que a primazia inglesa é incontestável, é difícil negar que o centro secundário do progue durante a década de 1970 fosse a Itália. Não só a quantidade de bandas chama a atenção, mas também a sofisticação – o que, na falta de indicadores mais objetivos, se reflete pelo continuado apreço que tributam aos italianos os fãs do progressivo. Entre as bandas mais emblemáticas estão Banco del Mutuo Soccorso, Le Orme, Premiata Forneria Marconi, Locanda delle Fate, E. A. Poe, Quella Vecchia Locanda e Area, cujo fabuloso vocalista Demetrio Stratos merece artigo todo à parte.

Mas por que a Itália? Francamente aqui posso estar bostejando pela boca, ou melhor, pelos dedos, mas presumo que, dalguma maneira, o país estava mais receptivo, dentro do contexto europeu, às influências da cultura anglo-americana. No cinema isso é muito evidente. Vejam-se os spaghetti westerns, melhores, aliás, que os originais. Mesmo os poliziotteschi rodados nas vielas peninsulares contavam com um ator ou outro anglófono – alguns deles com ninguém menos que Charles Bronson como protagonista matando vermes bastardos na Cinecittà. Idem para os filmes de horror de Dario Argento. Mutatis mutandis, o fenômeno compartilharia a lógica por trás do trânsito do roque de música jovem dançante a expressão artística madura que ocorreu na Inglaterra. Aí não só a língua facilitou a recepção e reelaboração do roque e do rhythm and blues, mas também a ausência dos pressupostos sobre relações raciais que durante muito tempo estiveram imbricados nesses gêneros nos Estados Unidos.

Além dessa maior abertura à cultura pope anglo-americana, a Itália tem população altamente musicalizada, em parte conseqüência histórica da fragmentação política numa miríade de cortes, cada qual bancando sua orquestra e logo produzindo músicos de qualidade a rodo como afirma Norbert Elias em Mozart, Sociologia de um Gênio.[1] Na Itália o povo cantarola árias operísticas pondo roupa no varal. Na Alemanha, que também se caracterizou por esse dueto de musicalidade e unificação política tardia, o progressivo se mostrou, contudo, bem menos presente. Por algum motivo, a vanguarda roqueira alemã, o krautrock, em vez da busca pelo variado e complexo, aproximou-se mais do minimalismo e da afirmação do pulso. É emblemático que o progressivo não tenha criado célula rítmica nenhuma enquanto o krautrock sim (a levada Motorik do Can, Neu! e Kraftwerk).

A Itália dispunha dum último trunfo, importante na preocupação do progue na exploração tímbrica: era um dos poucos países europeus que competia nas décadas de 1960 e 1970 no mercado dos órgãos elétricos e dos sintetizadores analógicos, com firmas como Farfisa e Crumar, geralmente situadas nas Marcas. Essa região adriática tinha tradição que datava desdo século XIX em produzir sanfonas, concertinas e bandoneons e, quando a eletrônica veio avassaladora, as fábricas trataram de trocar os foles e palhetas pelos transitores e potenciômetros.[2]

Como exemplar do progressivo italiano tomarei o Banco del Mutuo Soccorso. A banda lançou seu primeiro álbum em 1972 e, após reformulações, sempre seguiu ativa. Em 2019, após longo hiato em material inédito, lançou Transiberiana. Na formação clássica, era sexteto, mas divergia do padrão roqueiro ao ter dois tecladistas e apenas um guitarrista. Mesmo com as possibilidades de dobra da guitarra em estúdio, o som do Banco é harmônica e melodicamente ancorado em piano, órgão, sintetizadores e cravos, decorrência não só dessa invulgar presença de dois tecladistas, mas também pela educação de conservatório do principal compositor, o pianista Vittorio Nocenzi. Citações renascentistas e barrocas irão espocar com freqüência, às vezes de forma surpreendente. Outra influência erudita, embora talvez derivativa, é o belcanto muito evidente do principal vocalista, o bonachão gnômico tenor Francesco Di Giacomo, considerado a voz do progue italiano. Em certos pontos, o patos operístico chega a interferir na apreciação séria da música, algo agravado pelas letras dramáticas (cf. a parte final de R.I.P.). Ademais, sobretudo nos registros mais agudos, aquele dó-de-peito, o timbre de Giacomo compromete-se e não se transmuta nunca num artifício saboroso como a androgenia vocal dum Nei Matogrosso.

Francamente não aprecio o som do Banco a partir da década de 1980, que se revelou uma fossa séptica para quase todos artistas com pretensões progressivas (ouça, p. ex., Moby Dick, de 1983, que, nos seus piores momentos, poderia tocar-se quando a Xuxa descia do disco-voador). Sei que a função do crítico não é se guiar pelos seus próprios gostos e que, muitas vezes, as obras menos apreciáveis são as analiticamente mais ricas, mas, por outro lado, não sou crítico – e a maior parte dos sedizentes críticos, sobretudo musicais, tampouco se guia por análises formais e sociológicas. Comentarei, portanto, apenas três álbuns, Banco del Mutuo Soccorso de 1972, Darwin! de 1973 e Io Sono Nato Libero do mesmo 1973. Essa trinca de álbuns em intervalo inferior a dois anos revela época quando o público e o mercado exigiam das bandas criatividade incessante. Em 1975 sob o selo da Manticore Records, pertencente ao Emerson, Lake & Palmer, lançaram o álbum Banco na tentativa de franquear o mercado internacional recauchutando canções antigas para o inglês. Essas conexões não deixam de ser significativas em face do que já falamos sobre a receptividade da Itália à cultura anglo-americana – aqui a via é de mão-dupla como uma das principais bandas progressivas inglesas reconheceu.

Todos esses três discos do Banco del Mutuo Soccorso trazem estilemas progressivos bem pronunciados. Gostaria, porém, de mencionar algo que em meio a tanta informação poderá passar despercebido: a excelência da produção, eventualmente até inovadora. No recorrente processamento dos instrumentos acústicos, como clarineta e percussão, a banda estava em terreno novo (o Van der Graff Generator fora um dos pioneiros em tocar sax passando por pedais de guitarra).

1. Banco del Mutuo Soccorso, de 1972, opera com os contrastes que materialidade do disco de vinil permitia, a separação entre um lado-á e lado-bê que o progressivo costumava explorar para separar músicas curtas e longas. O lado-bê é assim dominado praticamente por uma única peça, Il Giardino del Mago, de mais de dezoito minutos, cindida em quatro seções, cujos subtítulos, embora remetendo à letra da canção, não correspondem exatamente à estrutura. Apesar da duração, dos interlúdios e das variações, é possível percebê-la como canção AABBCCC, a parte B tomada como coda instrumental. O tema fantástico – ou alienado como quererão os panques – revela-se no próprio título. Algo recorrente na banda, a faixa torna-se mais interessante quando transita para o instrumental (p. ex., a seção a partir de 11:15 com clarineta processada). Nos dois álbuns seguintes, sempre haverá uma faixa longa, com a diferença que serão apresentadas de prima no lado-á.

O lado-á abre com In Volo que apresenta, em forma compacta, o gosto pela variação: introdução em sintetizadores, teminha renascentista em flauta-doce, recitativo e corinhos estridentes à Morricone. Sem comissuras, liga-se a R.I.P. (Requiescant in Pace), estruturada como roquezão, bateria bem marcada, mas com coda lírica ao piano. Aqui o Banco soa mais banda colegial pastichenta que conjunto de virtuosos criativos, talvez limitação decorrente da orientação para os teclados. De fato, a sonoridade roqueira em sentido estrito nunca será muito convincente, mais mimese de rifes e pulsação acelerada que o peso associado ao estilo, tão dependente afinal das guitarras (em Cento Mani e Cento Occhi há, entretanto, uma passagem convincente). A letra trata de guerra, mas, num torneio esnobe tipicamente progressivo, não é a que se trava com fuzis, helicópteros e Agentes Laranjas, mas com cavalos, lanças, punhais. Como incontáveis outras bandas progressivas, o Banco incorrerá consistentemente em imagens pseudomedievalizantes: fadas, magos, gnomos, cavalos (bastante presentes), crucifixos (a um tirinho de espingarda do Vaticano fica difícil não falar em crucifixo).

É difícil perceber a coesão do álbum, que decerto serviu mais como tubo de ensaio. Isso fica patente em três faixas que, sem lhes desmerecer, parecem enxertos e o caráter passageiro se revela nos próprios títulos: Metamorfosi é miscelânia com tentativa episódica de roquezão; Traccia, que fecha o álbum, é uma instrumental curta, quase uma tarantela plugada; e Passaggio é um dos caçulinhas de Bach brincando com música concreta. Não estou de zoa. Durante os primeiros vinte segundos, ouvimos passos, alguém que se aproxima cantarolando, o farfalhar de partitura, um intervalo experimentado no cravo antes de se começar a bela musiquinha, cuja melodia, no ritornelo, é cantarolada pelo tecladista. Antes dum minuto, ouvimo-lo fechar o tampo, passos afastam-se e uma porta se fecha.

2. Darwin!, de 1972, é a obra-prima da banda, uma das obras-primas do progue italiano e mesmo uma das obras-primas do gênero tout court. Trata-se de álbum conceitual e isso decerto ajudou a superar a falta de coesão do disco anterior. O mote, conquanto bem menos esdrúxulo que surdo-mudo-cego craque no flíper (Tommy) ou poema épico por molecote (Thick as a Brick), conduz a imagens raramente exploradas. O conceito por trás de Darwin! é afinal a evolução biológica. Ninguém agüenta mais ouvir falar dum coração apaixonado. Deem-me os coacervados e os placodermos! A primeira faixa, L’Evoluzione te dá isso, junto com o programa do álbum. Há vários versos que saíram dum Augusto dos Anjos que acordou sem crise de hemoptise:


Strati grigi di lava e di coralli

Cieli umidi e senza colori

Ecco, il mondo sta respirando

Muschi e licheni, verdi spugne di terra

Fanno da serra al germoglio che verrà.


Estratos cinzas de lava e corais,

Céus úmidos e descoloridos.

Eis que o mundo está respirando.

Musgos e líquens, verdes esponjas de terra

Fazem de estufa aos brotos que virão.

Ou com hemopitise e proparoxítonos:


Informi esseri il mare vomita

Sospinti a cumuli su spiagge putride

I branchi torbidi la terra ospita

Strisciando salgono sui loro simili

E il tempo cambierà i corpi flaccidi

In forme utili a sopravvivere.


O mar vomita seres informes

Impelidos aos montes sobre as praias pútridas.

A terra abriga os bandos torvos.

Rastejando deles saem seus símiles.

E o tempo transformará os corpos flácidos

Em formas úteis a sobreviver.

Ao contrário de Il Gardino del Mago, os quatorze minutos de L’Evoluzione camuflam menos canção super-embonecada que minissinfonia, para o quê não deixam de contribuir rufares de tímpanos (não chega a constituir estilema progressivo, mas será acaso que no primeiro álbum do gênero, In the Court of Crimson King, a faixa Epitaph abra com um rufar de tímpano?). Como condizente aos tempos primordiais, a canção abre soturnamente com prolongados acordes de órgão contra grave ostinato no teclado. É verdade que os possantes pulmões do nosso Caruso roquestar e a melodia ajeitadinha demais sugam todo metano e toda amônia da atmosfera, mas os gases tóxicos voltam nas seções instrumentais com proterozóicos sintetizadores, clarineta free jazz quase dodecafônica, palhetas e percussão processadas. Aos dez minutos, após variar entre o djez, o roque e a psicodelia, apresentam-nos uma magnífica passagem barroca que vai tecendo aos golinhos várias linhas melódicas em piano, sintetizadores, baixo, vibrafone, mais sintetizadores. Poderia ser a coda, mas, como a reinvocar forças primitivas, sobre tanta riqueza contrapontística desfecha-se um roque mais quadradão. Essa idéia de primitividade ligada ao ritmo obsessivo, pelo menos aos ouvidos ocidentais (confira a seção sobre o caos em Les Élémens de Rebel de 1737), recorrerá no álbum.

A faixa seguinte, La Conquista della Posizione Eretta, tem a primeira parte, instrumental, dominada por ostinatos, ora no sintetizador, ora na guitarra, ora no baixo, ao que se pontuam timbres rudes. Quando o canto surge lá após seis minutos, há um comedimento performático que se vai desfazendo conforme a melodia avança, o motivo saltando alternadamente quintas e quartas. Pura pintura musical, o canto não é apenas um sobe-cai-sobe-cai até a tal da conquista da posição ereta (da coluna vertebral, salaz leitor!), triunfantemente anunciada em agudos operísticos (aqui sim a calhar), mas o próprio movimento descendente e ascendente em segundas menores ilustra a letra “Io provo e cado e provo / E ritto sto per un momento”: Eu tento [sobe] e caio [desce] e tento [sobe] / E de pé [notas de mesma duração como a figurar instabilidade] fico [nota mais aguda e mais longa] por um momento [fraseado descendente]. Em partitura algo assim:

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É brilhante conceitualmente. E muito mais emocionante que cantar sobre um coração apaixonado. Essa fusão entre conteúdo textual e musical não sucede por toda parte. Na verdade a raridade da pintura musical bem feita – não aquela vertente mickeymousing, glissando cromático para designar que alguém se estabacou da escada – assinala os limites teóricos da música de programa e, de tabela, dos álbuns conceituais. No caso de Darwin!, o maior exemplo dessas limitações é Danza dei Grandi Retilli, que, sem canto, precisa de amparo tanto no programa do álbum quanto no próprio título. É peça djezística, mas nada conduzirá o mais imaginoso ouvinte à idéia de dinossauro, ainda mais dinossauro dançante. Afinal, como diabos você representa sonoramente um dinossauro dançante? Tou imagianado aqui um tiranossauro no passinho e o que me vem à mente é o Barney mostrando as patinhas sarapintadas de verde. Esquece. Na faixa seguinte, Cento Mani e Cento Occhi, os conceitos aí sim são bem articulados graças às perspectivas múltiplas do canto à Der Erlkönig: o coletivismo da tribo pelo coro com melodia mais restrita, ora o indivíduo angustiado pela melodia ampla de Giacomo, ora a reflexão sobre a emergência da civilização por um segundo cantor em tom intimista, a coda com urros selvagens.

Pedi tanto coacervados e placodermos no lugar dum coração apaixonado, mas 750.000 Anni Fa... l’Amore?, balada pianística cheia de sofrência em rasgada articulação operística, nos traz os tormentos dum coração apaixonado. De novo mesmo só a espécie humanóide de coração apaixonado, um Creep troglodita, Homo erectus boladão de amor. Miserere alla Storia tem grandiloqüência sinfônica (e rufares de tímpanos). De fato impressiona que tenham conseguido textura tão pesada sem orquestra. Aqui um outro cantor irrompe em recitativo bastante sinistro com inflexões que lembram às de Peter Gabriel. Ao contrário do que miserere poderia dar a entender, a letra não retoma o Salmo 51 nem mesmo o tom penitencial, antes parece um enigmático deboche à Humanidade pelo próprio capiroto gritando desdas profundas do inferno. Esse trecho é sinistro. Sinistro. Já falei que é sinistro? Sinistro. Também se destaca em Darwin! por um raro solo de guitarra. Para empregar os conceitos mais sofisticados da musicologia, Misere alla Storia é do caralho. Para encerrar o álbum, uma curtinha, em ritmo de valsa: Ed Ora Io Domando Tempo al Tempo ed Egli Mi Risponde... Non Ne Ho!, o título tão grande que poderia dispensar letra. A roda do tempo (ou da fortuna) aparece concretamente com som de roda por azeitar. De longe, é a música mais fraquinha de Darwin!

O altíssimo nível da produção do álbum anterior, aqui se eleva mais ainda. Os três primeiros discos do Banco foram produzidos por Alessandro Colombini e lastimo ainda não ter conseguido recolher informações suficientes sobre esse profissional. Um dos pontos fracos de Darwin! é a voz de Giacomo. Quando mais restrita e em registros mais graves, como no começo de La Conquista della Posizione Eretta, ela soa excelente, mas se torna quebradiça, quase afônica nos agudos passionais (vejam-se as últimas notas das estrofes de L’Evoluzione). Como já mencionei, essa articulação decerto deriva das próprias tradições do canto italiano, profundamente enraizado na ópera, mas acaba colidindo com nossos ouvidos acostumados, no universo roque, quer à articulação visceral, suja, quer à natural, quase parlando.

3. Io Sono Nato Libere, de 1973, tem ligeira inflexão ao folque, donde a maior presença do violão e certo som curiosamente abrasileirado. Como no álbum anterior, é a faixa inicial, Canto Nomade per un Prigioniero Politico, que se apresenta como a mais complexa, a ponto de nas primeiras audições ser difícil desentranhar os liames estruturais que as diversas partes mantêm entre si. Embora eu não tenha conseguido ver a conexão pela letra, é possível que o título seja alguma forma de comentário ao período sanguinolento e zoadaço que a Itália vivia naqueles Anos de Chumbo. Os primeiros sete minutos compõem-se duma canção melodiosa, basicamente centrada nos teclados. À canção segue-se uma seção jazz-funk, com o baixo bem gruveado. A partir de 09:30 a música abjura dos sintetizadores para se focar nos instrumentos acústicos esparsos, com violão e congas, por vezes dedilhando-se a melodia do canto, o resultado bem Egberto Gismonti. Por volta do décimo quarto minuto, a seção jazz-funk retorna e encaminhamo-nos para o fim. A canção também pratica a pintura musical ao comentar logo após a primeira aparição do violão “Lamenti di chitarre sospettate a torto” (“Lamentos de violão suspeitos sem razão”).

Em Non Mi Rompete, o violão junto com a voz dominam; no refrão, o canto se resume ao vocalize e lá está o violão, todo feliz, fazendo a batida. Tirante intervenções de sintetizador e da percussão, é isso aí, para cantar em roda mesmo. Em La Città Sottile a banda embrenha-se com a literatura não só pelos recitativos, que obviamente deslocam a letra do domínio da música para o da poesia, mas pelo próprio título que nos leva a presumir referência ao romance de Calvino Le Città Invisibili, publicado no ano anterior. Aqui se notam trechos com uma sonoridade bastante próxima à dos mineiros do Clube da Esquina (ouça-se o canto loborgesiano a partir de 02:30). Em Dopo... Niente È Più lo Stesso (como você deve ter percebido, o Banco curte títulos com reticências tal qual este autor gosta de parêntesis) também há partes onde a melodia vocal, esparramada, em graus disjuntos e saltos dinâmicos, lembra pacas Milton Nascimento, até no timbre (p. ex., entre 02:35 e 03:54). Traccia II é instrumental curtinha que começa bem despretensiosa no piano e vai crescendo contrapontisticamente em várias texturas sintetizadas até explodir uma bateria. Se Bach pudesse tocar um Moog, teria composto algo assim – só não sei se aprovaria a bateria.

A sonoridade episodicamente abrasileirada de Io Sono Nato Libero, diga-se, sem dúvida decorre menos de influência direta dos artistas tapuias do que por evolução convergente. Em ambos os casos, as influências primaciais devem vir do jazz fusion. Mas esse é interessante via a se investigar.

Gravados esses três discos em menos de dois anos, a proeminência de Darwin! sobre os outros dois não se pode explicar por guinadas técnicas ou artísticas da banda; o melhor arrazoado é mesmo formalista: para a sensibilidade progressiva – eclética, polistilista por natureza –, negando a estrutura básica da canção popular, o meio mais seguro para manter a unidade na diversidade era o apelo a um norte extramusical, programático, que permitia, embora subconscientemente, enformar a fantasia criativa, que, doutro jeito, tendia a descambar no amorfo, no rapsódico, ampliando o fosso de ininteligibilidade com o público, por mais disposto que este estivesse a ter rupturas constantes de expectativas. Talvez forçando a barra – mas só um pouco... –, a questão seja similar aos percalços pelos quais passam inúmeras outras vanguardas. Uma das grandes dificuldades do dodecafonismo na sua primeira década foi conseguir criar peças de fôlego. Quando Berg compôs Wozzeck, a primeira ópera atonal, a inovação técnica teve de ser escorada em cada cena por uma forma bem convencional (rondó, passacalha, sonata, fuga, etcétera).

Os três primeiro álbuns do Banco del Mutuo Soccorso oferecem não só um ótimo cartão de visita ao rico roque progressivo italiano como também a reflexões sobre forma, música de programa, pintura musical, condicionantes à criação artística, dós-de-peito e corações apaixonados do Homo erectus.


[1] ELIAS, Norbert. Mozart: Zur Soziologie eines Genies. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, pp. 38-39. [2] VAIL, Mark. Vintage Synthesizers. São Francisco: Miller Freeman, 1993, p. 63.








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