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Imperialismos Imperializados – "Imperium" de Christian Kracht

  • Foto do escritor: Álvaro Figueiró
    Álvaro Figueiró
  • 8 de ago. de 2020
  • 13 min de leitura

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Há certos livros que fui ler por razões que me escapam de todo. Em parte talvez seja sintoma da caquexia terminal, em parte talvez da erudição desse maquiavel da primeira ditadura planetária, o Google. Sem dúvida, mais jovem quando a informação se obtinha a duras penas, retinha até os percursos para se chegar a ela. Como tanta gente, meu interesse por literatura não foi despertado pela escola, cujos paradidáticos só serviam para confirmar que ler é um saco (formalista-mirim, a única coisa que li que me impressionou foi o conto Circuito Fechado, de Ricardo Ramos, filho do Graciliano), mas por autores detetivescos ou fantásticos. Entre esses, claro, sobressaía-se o troncho Lovecraft. Pelos meus treze anos tudo o que descobria sobre o escritor de Providence eu decorava. É verdade que as fontes eram escassíssimas: um verbete sumário na Barsa, uma menção no artigo sobre “ficção científica” dessa mesma enciclopédia, um artigo em exemplar pré-histórico da Planeta. À internete só tinha acesso no estrondosamente batizado multimedia centre da Cultura Inglesa, onde respigava informações em saites especializados e copiava os contos em disquete para penosas traduções. Não satisfeito me engalfinhei com a sinistra base de dados da biblioteca do meu colégio, a qual se dizia a maior da Zona Oeste. Só encontrei um título que, dalguma forma, mencionasse Lovecraft. Entesourava tanta a informação que foi nesse livro que aprendi que Monteiro Lobato escrevera também ficção científica, O Presidente Negro, de que se muito falou quando da eleição do Obama.

Mas não vou tratar hoje de Lovecraft.

Vou tratar, como consta no título, de Imperium de Christian Kracht.

Vendo minhas notas de 2015 reparo que tampouco então entendia como deparara com esse livro: “Lido Imperium de Christian Kracht. Nem sei como na internete topei com esse romance, talvez a capa de fita do Mega Drive me tenha cativado, sem falar do tema colonialista. Na biblioteca do Goethe berlinense não folheava um alentado Deutsche Kolonien: Traum und Trauma e aqui no carioca não peguei Geschichte der deutschen Kolonien dum Winfried Westphal? Fosse mais pragmático e menos burro, em vez desse tremedal senhorio rural baixo-medieval brandenburguês, teria proposto como projeto de doutorado algum tema sobre essas colônias teutônicas, muito mais simpático às agências de turismo acadêmico e à consciência pesada dos alemães (só falar em militarismo prussiano, relações raciais e prelúdios nazistas, seria eu a escolher os orientadores).”

Endosso tudo o que escrevi em 9 de agosto de 2015, a incompreensão de como cheguei ao livro, a capa igualzinha às de fita de Mega Drive (vide supra), o tema colonialista, o desencanto acadêmico, minha ineptitude ao carreirismo, o cinismo.

O tal do romance Imperium do tal do Christian Kracht foi publicado em 2012 causando rebordosa livresca que a tal da Alemanha não conhecia desde 2010 com o ensaio Deutschland schafft sich ab de Thilo Sarrazin, que, em supersíntese, defendia a tese de que o país estava indo pro saco por conta da imigração muçulmana. Do seu canto, Imperium foi reputado preconceituoso por mimese de olhar colonial e, ainda por cima, na voz dum narrador onisciente e sacaninha. Na Alemanha, qualquer banana aos bons costumes, faz logo temer braços aprumados em Sieg Heil ou quebrados em suástica. Como constataria Pavlov, “Cachorro mordido por cobra tem medo até de salsicha”. Que o autor tenha vezo para fuzuê, livresco ou não, vemos logo no primeiro texto de New Wave, coletânea de reportagens, contos, roteiros e outras bagaças, publicada em 2003. Aí Kracht escreve uma reportagem sobre coisa nenhuma no Djibuti e a única razão da sua presença jornalística no minúsculo país africano parece ser arranjar briga de bar com milicos alemães. Kracht é suíço, logo sem muitas oportunidades de confusão em sua pátria.[1]

Imperium romanceia, com generosa liberdade, o bávaro August Engelhardt, esquisitão que, cansado do provincianismo europeu, trocou o Velho Mundo pela Melanésia em 1902. Engelhardt era considerado esquisitão por praticar o nudismo e o vegetarianismo. Andar com os bagos e as peitcholas balangandando logo viria a se tornar coqueluche alemã na década de 1920 (muito antes da Merkel aparecer peladinha); e vegetarianismo, por mais que ainda cause desconforto ocasional até hoje nos churrascos de família e amigos, é uma trivialidade. Engelhardt queria, porém, uma utopia vegetariano-nudista. E, como todos os planos dos redentores da Humanidade, a utopia era esquisitona pacas. Não bastava andar com os bagos e as peitcholas balangandando nem causar escândalos os churrascos de família e amigos. O nudismo de Engelhardt tinha como premissa um culto solar, ao qual, inclusive, fundou uma ordem religiosa. O vegetarianismo não tardou a se subsumir à adoração do sol. Após refinar o vegetarianismo em frutivorismo, percebeu existir, entre as frutas, um alimento perfeito: o coco, que dá de comer e de beber, a palmeira erguendo-se sem floreios e rameios direto para o adorado sol. O leitor não precisa ser climatologista nem botânico para saber que a Alemanha, além de pouco ensolada, não dá coco, então Engelhardt comprou um coqueiral na ilha de Kabakon, na costa nordeste da Papua Nova Guiné, uma das miçangas, espelhinhos e penduricalhos do breve e esquecido raquítico império colonial teutônico. Aí sob a equinocial, Engelhardt viveu dezessete anos peladão à base de coco, nada mais que coco, só coco, coco no café-da-manhã, coco no almoço, coco no lanche, coco na janta, coco cozido, coco assado, coco frito (com óleo de coco), sempre apetente ao contrário daquele náufrago do Pica-Pau. O alemão conseguiu tornar o coco mais redundante que o insigne “coqueiro que dá coco” do nosso segundo hino nacional. Quem quiser emagrecer, siga essa dieta do cocovorismo, pois nas fotografias Engelhardt é filé-de-borboleta (sem capa de gordura). O coco era bem vindo para as autoridades coloniais, pois, administrado nu ou não, o fruto tinha diversas aplicações industriais, entre as quais, sobretudo, a produção de lubrificantes. Era o cerne dos negócios alemães na África Oriental e nos Mares do Sul, razão secundária à busca histérica do cáiser por prestígio internacional.[2]

Esse de cima é, mais ou menos, o Engelhardt histórico, morto em 1919 em meio a seu coqueiral divinamente ensolarado. O de Imperium vive até o fim da Segunda Guerra. Por aí já se vê a liberdade que se tomou com o material histórico. No romance, a decisão de emigrar tem muito a ver com surra da polícia que o pegou nu numa praia báltica. Embora delicado e nada inculto, comparado mesmo a Cristo, a utopia cocovorista paz-e-amor revela neurose, misantropia, egocentrismo, messianismo e até psicopatia. Em Kabakon, Engelhardt desinteressa-se pelo destino dos nativos, que lhes cultivam os coqueirais, a modo de fazendeiro rípster, exceto por tentativas de lhes infundir sua mundivisão, a modo de missionário lado-bê. Mal desembarcado, dá um esbregue vegetariano, ou melhor, cocovoriano contra a caça de javali que quase lhe custa a vida. Só não aliena um nativo, Makeli, quem acaba alienando a si próprio ao esquecer o idioma materno em favor do alemão após incontáveis récitas de Goethe e outros poetas. Também Engelhardt aliena os próprios simpatizantes à causa cocopelada, como um discípulo que se descamba lá da Alemanha para ingressar na Ordem Solar. Fica por se esclarecer se o discípulo morreu de coco regido pelas leis gravitacionais ou criminais. Tampouco Engelhardt se avém com um pianista hipocondríaco e, na Austrália promovendo o sol e o coco, desentende-se mesmo com um adventista empenhado em inventar substituto vegano para a manteiga. Se o apóstolo do coco (Kokosapostel) ignora os confrades e até correligionários, evidentemente também vai ignorar o médico na capital colonial, mesmo quando já cacarecado, todo confeitado de pústulas, chagas e pus, subnutrido, aos pandarecos, na capa-do-bátmã. A culminância dessa espiral de alienação é, no fim do romance, Engelhardt tornar-se antissemita, sendo que, em passagens anteriores, mostrara simpatia aos judeus.

Em termos de técnica, o romance todo é em discurso indireto. Não há um único travessão nem duas aspas de diálogo. Embora o alemão seja idioma à vontade em frases centopéicas, subordinada enganchada em subordinada, Kracht esbalda-se nessa possibilidade. O resultado é tom algo professoral, ainda mais pelas freqüentes expressões latinas, a maioria sem nenhuma justificação conceitual (in realitas, per pedes, stante pede). O foco narrativo em Engelhardt é deslocado às vezes para outros personagens e certos capítulos adotam uma cronologia retrospectiva.

O tema histórico propicia por si a abordagem metaficcional e há um enxurro de referências literárias: livros que Engelhardt lê (Dickens, Hoffmann); alusões ficcionais pelo narrador (Queequag); a presença na ação de escritores reais ou de personagens ficcionais (o anagramático Botkin nobkoviano aparece como agente alemão); ou ainda por personagens que são modelados por paralelismos (o capitão Slütter, incumbido de matar o insano Engelhardt, ecoa obviamente Marlow d’O Coração das Trevas ou antes seu avatar vietnamita, Willard em Apocalypse Now). Como se vê nesse sumário, a metaficção manifesta-se em diversos planos. Os resultados vão desdo tosco e mesmo banal (a referência conradiana em Slütter ou a Hastur e Azathoth, deidades lovecraftianas, sempre ele) até o enigmático nas pontinhas por escritores famosos, nunca nomeados. Assim Engelhardt topa com Hermann Hesse e um dos cupinchas do protagonista patola ninguém menos que um juvenil Kafka. O romance termina, circularmente finniciorevindo, com uma projeção cinematográfica hollywoodiana das aventuras de Engelhardt, cuja primeira cena em celulóide é a primeira cena em celulose, a chegada do vapor transoceânico, descrita pelo narrador na esteira finneganiana das mesmíssimas palavras que haviam aberto o livro. E qual o nome do soldado americano que, ao ouvir a história do ermitão, exclama que aquilo tem tudo para virar esse filme de lupe infinito? Kinnboot, variante óbvia de Charles Kinbote, o narrador da narrativa sobre a narrativa por excelência, Pale Fire de Nabokov. Essa circularidade prefigura-se perto do desfecho quando Engelhardt conclui que, mais puro que o coco, é o canibalismo, pelo qual o Homem comendo aos outros come Deus, e, mais puro que o próprio canibalismo, é a autofagia – então nhaque no próprio polegar! (O leitor inteligente sente-se ofendido por Kracht, quem, reproduzindo o arrazoado do protagonista, tem o mau gosto de jogar uma fita de Möbius na nossa cara, sempre ela.)

Se o apelo metaficcional deixa um travo de amadorismo (uma coisa é metaficção na mão dum Nabokov, Kinnboots e Botkins não obstantes...), há certo brilhantismo em desvios para aquilo que chamo de “infinitesimais narrativos”, isto é, a narração de episódios que pela sua dimensão microscópica escapam à percepção humana e, todavia, determinam nosso destino. Se quiserem, são as moiras que nos legaram Newton e Pasteur. Um desvio do antropocentrismo vulgar sempre será bem-vindo. Esses infinitesimais narrativos aparecem nas longas e minuciosas descrições de como um grãozinho de areia se formou e se alojou dentro do mecanismo do relógio, como o bacilo da lepra foi parar no piano entre o dó central e o sol, como o governador foi picado por mosquito e contraiu leishmaniose (cf. infra a minha tradução desse trecho). Interessante também é acompanhar-se o destino de objetos, como as cartas que Engelhardt despacha no Cairo são esquecidas durante décadas numa mesa burocrática até um trapeiro copta as recolher. Esses intermezos não acrescentam nada ao enredo em si, mas conferem pontos de vista mais amplos para ação, em certa medida mitigando nossa inescapável ilusão biográfica de controle.

Nestes tempos de se catar chifre em cabeça de viróide, ai do escritor que ousar repisar o colonialismo! A meu ver, uma das controvérsias mais absurdas da história da literatura – mais descabida que a Querela dos Antigos e dos Modernos – é aquela em torno d’O Coração das Trevas, atropelando duma só vez o texto, a obra de Conrad e até a biografia do polonês, cuja nação foi submetida a imperialismo tríplice durante quase toda sua vida. (Aliás, em certos meios hoje, presumo que esse tipo de afirmativa implique em que o emissor seja o próprio capataz encarregado de ir cortar mãos no Congo Belga.) Se gongaram como racista o escritor que denunciava, em língua estrangeira, o colonialismo enquanto acontecia, que dirá então desse suíço Kracht em pleno beiçudo Terceiro Milênio vindo recuperar o chinfrim e esquecido imperialismo (extramuros) alemão? Provavelmente prevendo o rolo, com o gosto de quem se mete em briga de bar (a forma mais excitante de violência), Kracht decidiu entrar nesse tema colonial e tratá-lo com certa ambiguidade. Como já mencionei, o fato de o romance ser todo em discurso indireto e ter um narrador debochado dificulta estabelecer um ponto de vista moral – tou falando isso em benefício de quem se importa com essa firula em arte. Entretanto, como já nos ensinava Catulo naquele pornográfico poema XVI (“Pedicabo ego vos et irrumabo”), por que caralha o autor tem de produzir obras morais, ó Aurélios e Fúrios mileniais? Obras moralmente boas não produzem pessoas boas nem a recíproca é verdadeira. O Novo Testamento, martelado feito carro da pamonha durante dois milênios até surtiu alguns efeitos morais, porém ínfimos quando comparados à sua alta rotação. Saramago estava certo quando desmascarava como mintão quem lhe vinha dizer que tal ou qual livro tinha mudado sua vida. Arte não tem esse poder todo, não, minha gente. Fecho parêntese.

A escolha narrativa de Kracht parece-me produzir mais problemas é na ordem estética do que na moral, afinal fica difícil destrinchar o que é clichê, o que é ironia, o que é fidedignidade à época. O governador Hahl põe um disco d’A Cavalgada das Valquírias. Que é isso? Realismo histórico, pois era de se esperar alto funcionário alemão em começos do século XX como cultor de Wagner? Outra referência a Apocalypse Now na famosa cena dos helicópteros? Deficiência imaginativa, tão caricata por inepta quanto aquele vilão de Allan Quatermain e as Minas do Rei Salomão? No escritório do governador, há uma reprodução d’A Ilha dos Mortos de Böcklin, pintura admiradíssima durante a Belle Époque. O próprio narrador dá um enquadramento de época à gravura ao lhe reconhecer como “ubíqua”.[3] Não percebemos aqui clichê por a referência exigir certa arqueologia conceitual? A essas indagações tenho uma resposta simples e óbvia, em duas palavrinhas: sei lá.

Se o narrador de Imperium não é neutro, tampouco demonstra entusiasmo pela empreitada colonialista – aliás, se demonstrasse, é possível que os resultados artísticos fossem superiores, pois bancar o advogado-do-diabo, quanto mais infernal a causa, exige marombas neuroniais (para citar outra vez Nabokov, uma das obras-primas da literatura do século XX, Lolita, é narrada, costumamos esquecer, por um pedófilo). Logo nas primeiras páginas a hélice do vapor que conduz Engelhardt tritura uma canoa que se aproxima para vender comida; os fazendeiros são apresentados como grotescos (“A palavra ‘lavrador’ não lhes convinha, pois esse conceito pressupõe dignidade, uma conta equilibrada com a natureza e com a sublime maravilha do crescimento, não, em sentido estrito dever-se-ia falar em ‘administradores’”)[4]; a gestão do Congo Belga é esculachada; e as pretensões coloniais alemãs são ridicularizadas ante imperialismos mais robustos (“Herbersthöhe [a capital colonial] não era Singapura”).[5] Que mais o autor tinha a fazer? Pôr a canoa nativa para abalroar o vapor imperialista? Vindicar o passado pela ficção? Em certa medida, o autor faz isso, abalroando partes da narrativa. Há evidentes derrapadas no didaticismo quando, p. ex., se compara o fanatismo do protagonista com o de Hitler. Mais desastrada ainda é a explicação do acesso antissemita por Engelhardt. Sem grandes malabares intelectuais, o leitor entende sinédoque da atmosfera mental doentia que logo, logo levaria uma das mais cultas nações não só a ver o judeu como fonte de todos os males cósmicos, mas também a elevar essa alucinação a razão de Estado. Tanto a riporongagem de Engelhardt quanto sua virada antissemita se entendem, portanto, como caso particular das vulnerabilidades psíquicas entre os alemães a discursos cuja meta é a redenção radical da Humanidade, mas pelo ódio e pela destruição. Até quem tem QI de temperaturas polares entenderá essa mensagem, ainda mais porque Engelhardt no seu faniquito convence o hesitante assassino de que fora títere nas mãos da poderosa conspiração judaica. Mas o autor, como se sentisse ter ido muito longe aí, explica-nos o que se passara na cuca do personagem para se produzir essa fala conspiratória e antissemita, fazendo assim pouco caso da nossa competência textual e, por conseguinte, anulando o efeito artístico.

Menos pelo conteúdo, menos pela forma, o principal interesse despertado por Imperium parece ser a reflexão para além do romance sobre uma série do que considero falsas problemáticas, hoje com enorme centralidade. Sem negar que tenham alguma pertinência (mas quase tudo tem pertinência), elas derivam, em boa medida, da maré montante antirracional e tribal, paradoxal conseqüência do individualismo perante um mundo onde os papéis sociais não são mais rigidamente predeterminados e onde as hierarquias não se verbalizam. Essas problemáticas têm afetado e continuarão a afetar as artes no futuro visível. Com o entendimento algo ingênuo do lugar de fala, voltamos ao subjetivismo romântico – o primado do vivido sobre o conceptualizado, aliás um dos maiores caôs impingidos pelos artistas, que, nos casos mais tóxicos, produz arte capenga, mas, quando transposto para as ciências sociais, é trem-bala para derrota política (digamos, construção de mitos autocongratulatórios que, cedo ou tarde, vão dar com os cornos nos murros dos oponentes guiados por saudável Realpolitik). No caso da literatura pós-colonial, tais problemáticas mal postas, se não determinarão, ao menos interferirão fortemente na legitimidade não só temática e perspectiva, mas sobretudo autoral. É de se presumir forte demanda por escapismo, fantasias empoderadoras, simplificações quadrinhescas. Como rotineiro, os grandes criadores cagarão olarias para o bom tom, o bom senso e o bom preço.

Em todo o caso, voltarei a ler Conrad com tresdobrada atenção...



Nota: Para o leitor interessado no vasto catálogo de bizarrices do Homo sapiens, na seção frutívora recomendo Os Caçadores de Frutas de Adam Leith Gollner, quem, todavia, demonstra esse desapreço pela verdade e até pela verossimilhança de que só o jornalismo profissional é capaz.



Tradução livre de KRACHT, Christian. Imperium. Colônia: Kiepenheuer & Witsch, 2012, pp. 51-53.

Ainda em Herbertshöhe, poucos minutos antes que o mosquito com seu aparelho picador ereto injetasse no sistema sanguíneo do governador o patógeno (enquanto simultaneamente o sangue carmim do governador, corpúsculos açucarados, pulsava no sistema nervoso do inseto), sua irritante existência ceifada por um tapa, Hahl acabara de mandar trazer o jantar para que pudesse trabalhar comendo tarde da noite na mesa de mogno. Sem apetite, empurrado com o garfo para lá e para cá as batatas-doces e o peito de frango no prato de porcelana, passava Hahl os olhos pela correspondência e pelas sentenças judiciais, e outra vez foi ler a jovial carta do seu amigo Wihelm Solf, o governador da Samoa, enquanto bebia copo e meio de vinho branco, quente como o trópico. Ele pôs um disco de cera no gramofone, a agulha sobre seu trecho favorito e, enquanto ressoavam pelo salão os primeiros compassos dos metais d’A Cavalgada das Valquírias de Wagner, assoou-se algumas vezes, limpou o nariz no guardanapo, então esticou as pernas e desatou a gravata e exatamente nesse momento o inseto veio zumbindo por uma fresta na porta e, por conta do intenso cheiro de ácido lático emitido pelos poros de Hahl (cuja dispersão fora favorecida e intensificada pelo vinho branco quente), absolutamente faminto, o mosquito ainda durante o voo projetou o probóscide para, doido de desejo, pousar no pescoço limpo, escanhoado, do governador e penetrá-lo com uma picada catártica em crescendo, antes de sucumbir num Crepúsculo dos Deuses à palma aniquiladora de Hahl. E assim a leishmaniose foi introduzida no governador.

E Engelhardt? Ou ele esqueceu de aparecer no Clube Alemão ou a idéia nem lhe passou mais pela cabeça, pois não tinha a menor vontade de travar contatos pessoais com aqueles fazendeiros boçais, alcoólatras, que compunham a maioria dos membros do clube. Ainda instalado no Hotel Príncipe Bismarck, onde o Sr. Diretor Hellwig lhe garantiu estadia grátis durante a primeira semana pois este atuava como intermediário na transação com Engelhardt na expectativa de certas vantagens pela Rainha Emma (as negociações de compra dum coqueiral não constituíam de forma nenhuma fato corriqueiro no Protetorado), Engelhardt escrevia uma dúzia de cartas à terra natal e aos parentes, nas quais com palavras floreadas e efusivas louvava a cativante beleza da colônia e urgia aos seus correligionários a virem lhe visitar o mais rápido possível.


[1] Para bom sumário do barraco e das propostas de Kracht, cf. KORFMANN, Michael. “Imperium (2012) de Christian Kracht e a questão da auto(r)encenação”. Pandaemonium, São Paulo, v. 17, n. 23, Jun. /2014, p. 83-99, disponível em: http://www.revistas.usp.br/pg/article/view/84039. O autor não emprega “cagarão” e “caralha”, mas aplaudo o “embananamento”. [2] WESTPHAL, Wilfried. Geschichte der deutschen Kolonien. Munique: C. Bertelsmann, 1984, p. 94. [3] “ali estava pendurada numa moldura de mogno atrás do vidro a ubíqua reprodução da Ilha dos Mortos de Böcklin” “(dort hängt im Mahagonirahmen hinter Glas die ubiquitäre Reproduktion von Böcklins Toteninsel”. KRACH, Christian. Imperium. Colônia: Kiepenheuer & Witsch, 2012, p. 211. [4]Das Wort Pflanzer traf es nicht richtig, denn dieser Begriff setzte Würde voraus, eine kundige Beschäftigung mit der Natur und dem hehren Wunder des Wachstums, nein, man mußte im eigentlichen Sinne von Verwaltern sprechen”, p. 13. [5]Herbersthöhe war nicht Singapore.”, p. 16.

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