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Etimopalpitológicas: feijão-amigo e estar de chico

  • Foto do escritor: Álvaro Figueiró
    Álvaro Figueiró
  • 29 de dez. de 2021
  • 7 min de leitura

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Inspiração é como caganeira: tu nunca sabe quando ela vem. Numa tarde de verão em Bangu, você acabou de virar um feijão-amigo, de sobremesa crepe de Nutella e sacolé de iogurte de jaca, e pára na cômbi do Samonella’s prum caldo de cana... e então o teu estômago estranha. É a caganeira – inesperada, a bolt from the blue diriam os anglófonos.

Lendo os Estudos de Lingüística Histórica Galego-portuguesa do romanista alemão Joseph-Maria Piel preocupado como problemas de onomástica ibero-visigótica (tema que aflige e assanha a família brasileira), vieram-me, de inopino, duas etimologias, uma quase certa e outra bem palpitosa.

1. Feijão-amigo. Você já parou pra pensar por que diabos esse feijão seria amigo? Que gesto de amizade o feijão já fez por ti? Já te emprestou dinheiro? Já ajudou a desatolar teu Chevette Tubarão? Já te ajudou a suprimir evidências de crime hediondo? Tu ao menos já comeu esse feijão de graça (amizade-colorida)?

Receitas para o tal do feijão-amigo não faltam, mas a essência da iguaria consiste num caldo de feijão engrossado. O preparo neste Terceiro Milênio tecnificado bate os caroços no liquidificador junto com condimentos. Algumas receitas mencionam a farinha de mandioca para dar consistência ao caldo. Esse é um ponto importante. ATENÇÃO!

A primeira edição do Dicionário Caldas Aulete, de 1881, traz um verbete amiga como brasileirismo, mais precisamente pernambucano: “caldo de feijão engrossado com farinha peneirada”. O étimo remete-se a uma forma protética (isto é, com acréscimo da vogal a) de miga (< lat. mica), palavra hoje, no Brasil, já suplantada pelo diminutivo migalha (a rigor, migalha é, portanto, migalhazinha). Em Portugal, migas significa sopa de pão condimentada. ATENÇÃO!

Aparentemente os principais dicionários brasileiros desde então só fizeram chupinzar a definição dada no Caldas Aulete, inclusive registrando amiga como pernambuquismo. A única diferença importante é que o Aurélio, de 1975, e o Houaiss, de 2001, remanejaram a definição para a entrada abarcada pelo étimo amica, “amiga” em latim. Apesar duns palpites viajandões, Piel inferiu que era possível haver a conexão etimológica com miga.[1] Nem o Aurélio nem o Houaiss registram “feijão-amigo” ou mesmo “feijão amigo”.

Consultando Bluteau, o mais antigo dicionário português, de começos do Setecentos, não há nada de gastronômico no verbete amiga nem na forma masculina, mas sim no de migas, “Bocadinhos de pão, molhados em caldo”. Idem para Morais Silva, na edição de 1831, que vem a ser o primeiro dicionário por brasileiro, portanto, presume-se, mais receptivo a brasileirismos. Aí migas é “sopa de pão sem caldo”, o que creio ter sido um descuido do dicionarista.

Embora não seja factível vasculhar periódicos atrás de amiga a fim de estabelecer a cronologia, pesquisei na Hemeroteca Digital em jornais pernambucanos e fluminenses por “feijão amigo”. Os registros mais antigos são cariocas e datam de meados da década de 1950. Em Pernambuco as menções a feijão amigo só se tornam recorrentes a partir de 1980 (a primeira menção é de 1974 e a subseqüente surge dez anos depois). Feijão amiga só retorna uma entrada em Pernambuco e provavelmente é gralha tipográfica.

Parecem coexistir três matizes semânticas em feijão amigo entre as décadas de 1950 e 1980:

a) uma reunião de confraternização em que se come feijão:

Diário Carioca, 26/04/1964, p. 2: “No restaurante do Ginásio Caio Martins, foi realizado o primeiro almoço do Saci, clube de jovens dinâmicos, que esperam receber, brevemente, em sede própria. Foi um sábado alegre para a moçada da novel entidade e, muita gente de fora, convidada para participar do ‘feijão amigo’.”

Diário da Noite, Rio, 01/02/1961, p. 16: “O bloco Eu Sei Namorar, do bairro de Guadalupe, vai oferecer domingo um ‘feijão amigo’ aos jornalistas. Início às 13 horas, seguindo-se um ‘toque’ dos seus passistas e pastoras.”

Diário de Pernambuco, 03/06/1984, p. B-3: “O Clube do Feijão Amigo é uma entidade fundada em São Paulo com o objetivo de realizar, periodicamente, almoços de confraternização, reunindo elementos da área de turismo, hotelaria, imprensa e aviação comercial. A característica principal é o cardápio, exclusivamente com pratos de feijão. Agora o projeto será aplicado para outras cidades.”

b) um prato com feijão:

Diário de Noticias, Rio, 28/09/1974, p. 7: “Alguns curando ressaca com nova cervejinha. Outros saindo do regime: um feijão amigo cheio de breguetes dentro ou um cozido curtido.”

Diário da Noite, Rio, 28/07/1955, p. 6: “De qualquer maneira conseguimos os nomes de alguns ‘brotos’, que em última análise ajudaram a liquidar todo aquele feijão amigo, com couve e o mais, mandado preparar, se não nos enganamos, pelo casal José Augusto Bezerra de Godói”

c) um drinque alcoólico:

Cruzeiro, Rio, 15-11-1972, p. 120: “e ainda o Feijão-Amigo (batida de feijão, lançada no Rio)”,

Diário de Pernambuco, 12/09/1974, p. 7: “A grande palavra em bebericação no Recife é o ‘feijão amigo’, que faz muito sucesso junto a paulistas e cariocas. Consiste num cálice de boa pinga, que é tomado com um cálice de feijão.”

O que aconteceu nessa feijoada de ariranha?

Originalmente, nalgum ponto do século XIX, o prato se chamava feijão à miga, isto é, feijão engrossado com farinha de mandioca ao feitio de sopas engrossadas com migalhas de pão. A preposição pode estranhar num primeiro momento, mas é comum para especificidades culinárias, subsumindo-se a locução à moda (leitão à pururuca, frango à passarinho, arroz à grega etcétera). A palavra miga reportar-se-ia a um tempo de maior influência lusitana, sobretudo nortenha, no falar e na culinária, mesmo de pratos “tipicamente” brasileiros, a começar por ela, a feijoada. É possível mesmo que primitivamente se engrossasse o feijão com pão e a receita fosse portuguesa, adaptada no Brasil, talvez no Nordeste, com a mais acessível farinha-da-terra. A locução à miga foi entendida sob duas formas. Isolada, como substantivo amiga, donde a dicionarização como vocábulo já em fins do Oitocentos. A recorrência, entretanto, na qual à miga aparecia após feijão determinou outra leitura da loução como o adjetivo amiga. A flagrante discordância de gênero com o substantivo masculino feijão – solecismo que não ocorre em variedade nenhuma de português popular – conduziu à normalização do suposto adjetivo feminino amiga no masculino amigo. Posteriormente, talvez em meados do século XX, perante uma expressão cujo étimo deixara de ser transparente, abriu-se o campo semântico, mediante processos analógicos, para se encarar feijão amigo menos como um prato específico do que como uma ocasião de convivialidade, donde os sentidos de comezaina e mesmo de drinque, inovação que deve ter acontencido no Sudeste. Se esses sentidos festivos sumiram (rodam ainda feijoada) e perdurou o de caldo de feijão engrossado, isso se explica por ter sempre persistido, em parte dos falantes, um entendimento de feijão amigo como prato com traços palpáveis – ou antes, palatáveis. Fecha-se o ciclo. Daí se infere que o caminho etimológico que sugeri não deve estar muito longe da verdade.

2. “Estar de chico”. Como muitas funções corporais, sobretudo as tabuizadas, existem diversas perífrases e sinônimos para a menstruação, uns eufemísticos (regras), outros disfêmicos (pingadeira), uns jocosos (paquete), até quase decalques (volta-da-lua). Um que jamais entendi foi “estar de chico”, aliás dos mais usados. É como uma dessas expressões como “deu bigode”, “deu zica”, “frangar” que me parecem ser claras (ou terem sido) para certa coorte etária: referência ao Bigode que marcava Ghiggia em 1950? ao Zico pé-frio perdedor de pênalti? à escultura de Prometeu e o abutre no Palácio Capanema que o povo chamava de Batatais Agarrando um Frango? Metáforas tão mais plausíveis, penso eu, pela centralidade do futebol no imaginário coletivo do brasileiro.

Até pouco o Chico menstrual soava-me algum ente folclórico, vampiro hemofílico lobisômico. De fato, o Aurélio coloca-o como hipocorístico de Francisco. Esse étimo é bem ruim porque, exceto por rigorosa arqueologia da metáfora, se torna impossível entender como um nome próprio, para piorar masculino, transitou para o sentido de “mênstruo”. Duplos tuístes carpados com ganache de pitaia semânticos podem acontecer – aliás, a semântica é o aspecto mais variado e imprevisível na diacronia –, mas o filólogo, mesmo o amador, tem de evitá-los quando não se pode estabelecer a sólida conexão documental. Bráulio tornou-se gíria para “pênis” (cientificamente conhecido como “piru”) graças a uma campanha em prol da camisinha promovida pelo Ministério da Saúde em 1995. Sem topar com esse fato histórico preciso, método filológico nenhum vai conseguir deduzir, senão por generalidades, como o antropônimo se generalizou como gíria pirocal.

Palpito que a explicação de chico esteja num regionalismo português para “porco”. Se você estranha a possibilidade de se ter difundido no Brasil essa palavra, recordo que ela é a raiz de chiqueiro. Em diversas culturas, a mulher menstruada é tida como poluída, donde não seria passo muito largo associar a menstruação ao animal sujo por excelência, o porco. No Alentejo, “menstruação” diz-se também chica, feminino que faz até mais sentido. O raciocínio, que desenvolvi independentemente, parece corroborado pelos lexicógrafos do Houaiss, que, embora pondo o verbete no étimo do hipocorístico, apontaram para uma possível conexão com o sentido de porco (que, aliás, como o francês cochon, deve ter origem onomatopaica).

Para ter certeza, só mesmo estabelecendo a cronologia da expressão. Conviria chafurdar nas nossas publicações saidinhas da época quando trisavovó D.ª Engrácia era semivirgem, como o Rio Nu.[2]


[1] PIEL, Joseph-Maria. “Sobre alguns aspectos da renovação e inovação lexicais no português do Brasil”. IN: Estudos de Lingüística Histórica Galego-portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1989, p. 259.

[2] De fato, pelo caráter safardana da publicação é onde, com maior probabilidade, devem achar-se as primeiras atestações não só de várias palavras e expressões chulas, mas também gírias menos sacaninhas. Olhando bem rápido por alto um único exemplar (nesse não tem foto de Gibson Girls peladas...), encontrei dois registros para reconstruir a lexicologia da putaria lusófona. Na edição de 15/01/1916, p. 8, uma coletânea de “contos rápidos” anuncia O Tio Empata. Estando onde está e, ademais, no meio de colegas como A Mulher de Fogo, O Consolador, Na Zona..., Roçando..., Família Moderna, O Tio Empata presume a existência da expressão empatar foda e talvez mesmo da palavra composta empata-foda. Na p. 4, outro romance que se anuncia tem para nós, hoje, título autoevidente: 69. Nessa mesma página, bem ao gosto da época, embora heptassilábico, há um soneto (A Roça) que já prefigura o chavão de que, na falta de televisão (no caso, cinema), só resta mesmo fazer filho.

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