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A Prótese Peniana de Silicone como Objeto da Ficção Científica

  • Foto do escritor: Álvaro Figueiró
    Álvaro Figueiró
  • 11 de set. de 2020
  • 8 min de leitura

Atualizado: 12 de set. de 2020


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Os ambientes que suportam minha presença por alguns dias tornam-se tão caóticos que exige sherlockiana perspicácia encontrar objetos sutis como rinocerontes anabolizados, plataformas petrolíferas albanesas ou polvos tocadores de tuba. No antecessor deste meu Covil, a Trincheira, um amigo espantou-se com um objeto saliente: um livro. Primeiro lhe espantou a capa, mão empunhando pistola lêiser energizada por cápsula radiativa, ao fundo crepuscular uma palmeira e, mais ao longe, uma construção encarapitada com feitio de capacete de conquistador espanhol. Depois lhe espantou o título, com aquela tipografia safadamente anoitentista. Enfim lhe espantou o nome do autor. Ficou boquiaberto, olhando para a capa, repetindo o título e o autor, olhando para a capa, repetindo o título e o autor.

Que livro era esse que tanto espantou meu amigo? O Necronomicon? Um catálogo encadernado da revista Hermes especializado em moda infantil de couro sadomasô? Uma edição revista de A Bíblia e os Dinossauros? O livro-denúncia A Vida Secreta do Tio Patinhas? A Tabuada Atualizada 2001 que se vendia no trem (só os ferrountes estavam a par que a tabuada fora atualizada)? Aquele clássico culte de Erich von Däniken, A Cor Vermelha que Caiu do Espaço: indícios astroarqueológicos de trotskismo? A monografia A Menarca da Menina Brasileira (realmente havia esse estudo na Trincheira, mas isso é uma longa história)?

Vejamos alguns trechos do embasbacante livro:

“Sua famosa pica de silicone podia ficar dura uma semana seguida, mas era insensível como um osso morto.” (p. 138)

“Pepe viu a impotência chegar como alguém vê despontar lá longe, na curva da estrada, um inimigo ancestral. Ela se infiltrou no seu pensamento nalgum ponto da subida do elevador quando beijava a loura e se flagrava pensando em Isadora. Aí pensou: Vou brochar. E não deu outra.” (p. 50)

“Enquanto comia Isadora, deixou-se, pela primeira vez na vida, penetrar por Valentino. Sentiu uma tesão indescritível quando a vara do érobo invadiu suas entranhas no justo momento em que gozava dentro de Isadora.” (p. 32)

É história de sacanagem? Fotonovela pornô? Revistinha sueca? Catecismo do Carlos Zéfiro? Mas quequié então “érobo”?

“O inspetor ficou absorto com seus papéis, laudos, relatórios. Apesar dos seus computadores, a Polícia Metropolitana ainda não se conformara em dispensar a prosaica figura do escrivão catamilho nem as montanhas de papelório, manchadas de café entre cinzeiros transbordantes de guimbas.” (p. 22)

Neonuar? Policialiesco casca-grossa?

“Um daqueles braços peludos e fortes voa em direção à pasta e retira uma pistola negra, reluzente, com um cano grosso e um buraco pequeno, parecida com uma arma de tiro ao alvo calibre 22, mas com uma alça de mira estranha e uma série de minúsculas luzinhas vermelhas e verdes na coronha. Dispara um jorro de luz.” (p. 34)

Arma lêiser? Ah! A tal pistola lêiser da capa! Saiberpanque então?

“Dali o aeromóvel seguia para a Praça XV e depois para o Flamengo, Copa e demais praias da cidade velha. Lili não pegou a calçada rolante da Presidente Vargas”. (p. 47)

No Rio?! Sim, no Rio, sim. Na capa você enfim entende que a construção encarapitada jaz afinal sobre o Morro Dois Irmãos. Então boquiaberto você repete o nome do livro e o nome do autor.

O nome do livro: Silicone XXI.

O nome do autor: Alfredo Sirkis.

Para dissipar dúvidas, sim, é o mesmíssimo Sirkis que você conhece como político do Partido Verde, recentemente falecido em acidente rodoviário. Aparentemente Sirkis era dos poucos representantesdopovobrasileiro com os quais seria possível trocar um papo mobilizando mais de trinta sinapses sem medo de termos a carteira tungada. Que, ao contrário da maioria dos nossos parlamentares, Sirkis conseguisse combinar as vinte e seis letras para produzir arrazoados além de “Vovó viu a uva”, “Dez por cento” e “Cadê a caixinha?” já se conhecia das suas memórias sobre quando andou seqüestrando embaixadores. Os Carbonários forma com O Que É Isso, Companheiro?, de Gabeira, uma das obras maiores sobre a luta armada durante a Ditadura Militar, aquele romântico período quando a função da guerrilha urbana era libertar os guerrilheiros que tinham sido capturados na última ação para libertar os guerrilheiros que tinham sido capturados na penúltima ação e por aí vai.

Apesar de assassinatos de travestis, grupelhos de nacionalistas machochôs querendo fazer a limpa no Brasil, público admirando o maníaco antiestabelecimento e picas de silicone anorgásmicas, Silicone XXI é ficção e ficção científica saiberpanque neonuar pornochanchadesca. A influência de Blade Runner – lançado em 1982, três anos antes de Silicone XXI – só escapará mesmo a quem não tiver assistido ao filme – até o ano da ação é o mesmo, 2019. O cenário é que é diferente: sai Los Angeles, entra a Cidade Maravilhosa, inclusive nossas caixas-pregos Santa Cruz e Pedra de Guaratiba como figurantes (participações especiais da garoenta São Paulo e da nuclear Angra dos Reis). No lugar de Deckard, o caçador de andróides (cortesia de Herbert Richards), entra José Balduíno, o caçador de maníacos sexuais patrioteiros atomistas. Nesse futuro do pretérito, atendendo às demandas do mercado nacional, em vez de andróides para trabalhos pesados nas minas, a cibernética tupiniquim de Silicone XXI especializou-se em “érobos” (robôs eróticos) e “robetes” (empregadas domésticas). Para completar o escrete da robótica brazuca, à imaginação de Sirkis só escaparam o ascensorô (robô ascensorista), trocadobô (o robô trocador de ônibus) e robelô (robô camelô).

A ação de Silicone XXI envolve a sinistra trama por trás do assassinato dum travesti (e o escangalho da pobre robete Marivalda-3) no Olympus aerotel, a fornicativa construção encarapitada no Morro Dois Irmãos, conjunto que o poliça Tatau vê como “uma xoxota dourada entre dois seios grandões, disformes”.[1] O homicídio e o robocídio foram cometidos pelo disparo da pistola L (L de lêiser, tchã!), arma de uso exclusivo das Forças Armadas, como sempre nos lembra o jornal quando alguém é baleado. Numa seqüência de acidentes, contratempos, deduções, transas, perseguições, voos de helicóptero, tiroteios e jogos de sinuca, o inspetor Zé Balduíno, a telerrepórter Lili e o juiz Paulo Wolf desvelam a organização secreta Filhos da Luz, dissidência dos Filhos de Plúton. Inconformados com a extinção do programa nucelar brasileiro, que não cultivou sequer um insípido champinhom atômico nesta terra pitsaiola, convertidas em museu as usinas de Angra 1 e 2 – as mais feias instalações nucleares da história, incluídas as maloquices iraquianas e líbias e as ruínas de Chernobyl e Fukushima –, os Filhos da Luz pretendem resgatar as “raízes sadias do atomismo” e propagar a “eutanásia sociopolítica, moral e demográfica” – em suma, uma cruza de General Newton Cruz com Wilson Leite Passos e doses de Bolsonaro. Seu líder é o celerado ex-milico Estrôncio Luz, assassino de travestis, a identidade por trás do homem da prótese peniana de Scott, acionada por bombadas no testículo direito. Num raciocínio sem muito nexo, para promover o programa renovador nacional, Estrôncio e seu grupelho pretendem atacar o reservatório de lixo radioativo em Angra e poluir o Guandu com plutônio (como se as suas águas já não fossem tóxicas o suficiente por giárdia e cocô).

Embora hoje as grandes pinceladas dessa trama soem esdrúxulas, Silicone XXI foi publicado em plena rebordosa do caso Alexandre von Baumgarten, jornalista assassinado em 1982 junto com a esposa e um barqueiro. Baumgarten vinha denunciando a venda de urânio enriquecido para o Iraque, com o qual, aliás, a indústria bélica urânio-canarinho fazia bons negócios durante a década de 1980. Em 1985 as negociatas radioativas apareceram romanceadas em Yellow Cake. O romance, como explicava o frontispício, era atribuído postumamente a Baumgarten e alguns capítulos teriam sumido. Ignoro o que seja verdade, o que seja golpe de márquetim, o que seja desinformação. Seja como for, Silicone XXI ecoa lateralmente essas transações escusas nos Filhos de Plúton que não passam duns filhos de Pluto e da Puta traficando combustível nuclear para qualquer bandoleiro internacional que trouxesse verdinhas. Ao contrário das denúncias por Baumgarten, que envolviam o Serviço Nacional de Informações (SNI, precursor do Serasa), Sirkis procura pegar leve com a milicada. Nesse 2019, o Brasilzilzil é um parlamentarismo social-democrata verde que chegou ao consenso de que lugar de farda é no quartel. Foi gesto de boa vontade, passou, tá passado, afinal em 1985 estava-se na reta final da redemocratização e Sarney ia assumir o pudê (observação futurológica: os eventos dos últimos doze anos asseguram que, no seu funeral, enfim Sarney será reconhecido como grande estadista).

Silicone XXI assume com gosto um ar farsesco. A esculhambação é provavelmente deliberada. Não falta humor fescenino. Os personagens tendem à caricatura e ao estereótipo, como o policial boçal Tatau ou o vilão bobão Estrônico. Até o protagonista, Balduíno, com alguma profundidade psicológica – complexado por ser negro, pressionado pela resolução do caso, atormentado por pulsões de violência e morte – acaba adquirindo num brechó todo o figurino policialesco: mora sozinho num mufuá de apartamento, é másculo, é comedor, é bom de lábia, é alto (só não sabemos se tem os mesmos seis pés de Sam Spade e Philip Marlowe). A esculhambação definitiva, contudo, são os nomes dos personagens. O construtor da bomba atômica brasileira chama-se Celsius Mabuse; seguindo a tabela periódica, temos Estrônico Luz; o líder dos vendilhões Filhos de Plúton é Próton Nogueira (↔noz↔nux↔núcelo?). Isso é levar o Nomen est omen demais a sério. Em todo o caso, é preciso admitir o talento de Sirkis, quase ombreando com Dickens, em criar nomes bizarros e incisivos: General Prudêncio Prates; coronel Heitor Aquiles; o magnata das comunicações Luben Petkov; Dr. Plutarco Vaz, chefe da Polícia Metropolitana. As intenções mais leves de Silicone XXI revelam-se também pelas tabelinhas entre livro e gibi graças às ilustrações do quadrinista franco-brasileiro Al Voss. Voss foi responsável por algumas capas d’Os Mutantes, mas aqui me calo porque de quadrinhos não entendo xongas, eu que parei na Disney e no Carl Barks.

Mesmo feitas tais concessões, há absurdos narrativos que clamam o brilhantismo teorético dum Pirandello para se sustentar, como o estupro de Lili pelo arquivilão Estrônico. Primeiro a vítima tem a pachorra de dirigir tais palavras ao seu algoz: “Pera aí, Estrôncio. Já que você vai me estuprar, vê se passa um pouco de vaselina nesse troço. Cuspe, pelo menos...”[2] Nalgum lugar do nosso aglomerado galáctico, tal advertência já deve ter sido proferida, mas as estatísticas não favorecem os idiomas terráqueos. Após o estupro, Lili consegue dopar o algoz e fugir, boiando no mar durante horas, mas, mal pisa terra, a telerrepórter supera o trauma dando uma nhecada intempestiva com o Dr. Paulo Wolf, assim sem compromisso, só prum rilex.

Apesar da narrativa tosquinha, o tom pastelão poderá agradar ao bobo-alegre. Encontrei pelo menos dois motivos para me entreter com o livro. A primeira é a linguagem. Por sua natureza especulativa, a ficção científica tem certo vezo para o neologismo. Sirkis cunha não só palavras novas como “aerotel”, “érobo”, “picólogo”, como também se esbalda em gírias e coloquialismos. Como até pouco – e talvez até hoje – as dublagens e as legendagens dos filmes, nosso útero onírico, se pautavam por grande formalismo (He-Man moralizava com mesóclise), mesmo clichês ganham frescor aos nossos ouvidos cucaratchas: “Sempre tinha achado esse negócio de érobos uma escrotidão” ou “Pô, também, com uma arma daquelas, qualquer um se cagava de medo. Ou não se cagava?”[3] Isso, reitero, é certo sintoma do nosso subdesenvolvimento ficcional. O segundo atrativo, também jequinaldo, é ver o cenário saiberpanque por essas ruas onde nos criamos. O prazer torna-se mais mórbido ainda nas referências aos grotões, que só o suburbano pé-de-barro conhece: quando o andrologista (ou picólogo) Dr. Naguib Carvalho toma um boa-noite-cinderela, é largado em Japeri. Há trechos de que talvez só poderá fruir o carioca (ou cariocaguaçu): “Chuchu não transava com érobos. Casado e tijucano, não se permitia tais deslizes.”[4] Presumo que em muitos cariocas, como a mim, a imagem de calçadas rolantes na Avenida Presidente Vargas cause engulhos. À gente de fora do Grande Rio a imagem é pálida.

Bem, pelo menos, no final o mocinho não fica com a mocinha.

Nota: Sempre no meu louvável esforço de elevar o nível cultural do brasileiro, que estupidamente me levou até a ingressar no magistério municipal e estadual, registro aqui um artigo que esclarece um invento muito importante para a trama de Silicone XXI: MOBLEY, David F. “Early history of inflatable penile prosthesis surgery: a view from someone who was there”, Asian Journal of Andrology, v.17, 2015, pp. 225–229.

[1] SIRKIS, Alfredo. Silicone XXI. São Paulo: Círculo do Livro, 1985, p. 16. [2] Op. cit, p. 138. [3] Op. cit, p. 37 e p. 85. [4] Op. cit, p. 51.

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