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Praça para a Massa

  • Foto do escritor: Álvaro Figueiró
    Álvaro Figueiró
  • 28 de abr. de 2024
  • 9 min de leitura

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2021. Papo-cerveja.

– Se tu fosse um político, como gastaria nove milhões de reais em diversas favelas pra fazer campanha eleitoral?

Queima-roupa perplexo, mas o amigo lembrou onde trabalho ou finjo:

– Sei lá. Inaugurando campinho de futebol?

– Muito bem! Quase isso.

2024. O RJTV e o G1 noticiaram há pouco sobre tema há muito: o desvio da Repartição para fins eleitoreiros, agora construindo praça – praça com nome de vó de deputado, faixa com nome de deputado, diretora com nome da esposa do deputado. A praça é do povo como o curral é do eleitor. Bovum nomenclator olim ego...

O desvio data de quando a água ficou molhada. O Órgão sempre foi bolinado por interesses eleitoreiros. Na década passada, quem mandava era a poderosa família Picciani, que controlava a Alerj, a Secretaria de Habitação, a Fifa e talvez o Hades. A então presidente da Autarquia fora chefe de gabinete do capofilho Raffaelo.

Há zilhentas razões para que o Instituto seja gatossapatado para a politicagem mais filé-miau. A principal é que facim, facim. A noção sem-noção da regularização fundiária como política social tem o lustre estaladinho de filipeta de puteiro. É chamado público à sacanagem. Geral projeta fantasias sobre a regularização fundiária.  O pobreta crê, bocó, que escapará ao risco de remoção no seupedacinhodechão. A militância, bocó, fetichiza a precariedade do agro e da urbe como lutaeresistênciaantissistêmicaecontraagentrificação. O burocrata, sonso-bocó, transmuta incompetência em habitaçãodeinteressesocialeagriculturafamiliar. O político, mais sábio que todos, olha a trouxitude e manja o voto facim, baratim. A própria mudança de foco, do campo para a cidade, teve muito menos a ver com o peso relativo, econômico e demográfico, de ambos os espaços no Rio de Janeiro, do que com as perspectivas de maiores ganhos eleitorais – e, nas atuais circunstâncias, o custo unitário por eleitor no assentamento rural (ele quer insumos!) é bem superior ao da favela e do bairro popular, que só quer, às vezes, um papel que o afirma dono da casa que construiu, tijolo sobre tijolo, a zaralho, sem cota, afastamento e abcissa. Como disse um colega, “somos uma grande impressora.” Fazer praça até que é insumo.

A urna pode encher-se: a) prometendo-se regularizar a comunidade; b) fazendo-se um trabalho preliminar, de preferência com mobilização de muita gente vestindo colete e indo de casa em casa (cadastramento p. ex.); c) refazendo-se o trabalho preliminar, pois o último, de anos atrás, já caducou; d) entregando-se um título de mentirinha, título dinheirinho-mabel (promessa de concessão de uso, promessa de doação, termo provisório de ocupação); e) entregando o título definitivo, o título que vale, o que dá para registrar em cartório, de preferência só para parte da comunidade; f) mantendo tutela sobre a comunidade, de preferência com certo arbítrio na fiscalização (donde o predomínio da concessão de uso sobre a doação – os beneficiários continuam presos ao Outorgante para transferências imobiliárias, sucessões, desmembramentos e demais rebordosas imobiliárias, complicadas entre os pobres amiúde por rocambolescas relações familiares). Isso é o percurso corriqueiro, a regularização fundiária tântrica. Há outros truques. Durante as décadas de 1980 e 1990 em áreas particulares litigiosas, o Estado costumava assinar sucessivos decretos expropriatórios e dar calote – pra falar o juridiquês, nunca se imitir na posse. Cada decreto era um tamos-juntos, nova chance de explorar a esperança alheia. Num assentamento rural da Baixada Fluminense, entre 1984 e 1996, houve quatro decretos expropriatórios burros-n’água. Fazer praça até que é uma inovação na nossa trajetória.

Repetir é tão vulgar, é tão ugh, é tão ahhh, é tão antiflaubertiano, mas, ó caralho sifilítico, aí vou eu de novo, Jerônimoooooo: regularização fundiária é controle pelo Estado. É um RG e um CPF da terra. E uma das funções do RG e do CPF é facilitar tua prisão ou pôr teu nome no Serasa. Não existe regularização fundiária na Suécia – isso eles fizeram num treco chamado storskift (grande remembramento) a partir de meados do XVIII em meio às reformas fiscais que pipocavam pela Europa. Num país onde a autoconstrução domina e as saúvas praticam a melhor lavoura, a regularização fundiária, sem política fundiária, só chancela urbanismo pandemônico e agricultura neopaleolítica. Se há um campo de impostura no Brasil, país impostor, é o da regularização fundiária.

O que se deveria priorizar é o que diz a lei que criou o Instituto (art. 5º, Lei N.º 1.738 de 05/11/1990): 

 

I – desenvolver estudos sobre a propriedade e a estrutura fundiária do Estado do Rio de Janeiro;

[...]

III – desenvolver estudos e fixar critérios para a utilização das terras sejam públicas ou privadas, e identificar terras abandonadas, subaproveitadas, e reservadas à especulação;

IV – organizar serviços e documentação cartográfica, topográfica e cadastral, bem como de estatísticas imobiliárias, necessárias para atingir os objetivos da política agrária ou fundiária;

 

Regularização fundiária aparece no quinto inciso. O Decreto Nº 2.328 de 27/06/1997 não mudou substancialmente os propósitos.  Seguir a lei implicaria, contudo, esforços desumanos, a começar pelos piores de todos – pensar e ceder.

A Baiúca só teve um concurso em 2012 e isso por exigência do Banco Interamericano de Desenvolvimento que avalizava empréstimo para o Estado. Antes só havia comissionado, em graus variados de competência e/ou venalidade. O espectro profissional ia desdo cabo-eleitoral segura-placa-estica-faixa-empina-galhardete até o engenheiro se-desviar-meio-milímetro-o-planeta-sai-de-órbita. Na média, como usual na burocracia fluminense, o nível era chinfrim, algo que se refletia em poucas diretrizes e estas, mesmo assim, com a colaboração de neurônios nenhuns (p. ex., nossos títulos desqualificam como agricultor familiar quem tenha mais dum empregado permanente, sinal de que nunca viram um horti- ou floricultor remediado). A partir de começos da década de 1990, a queda técnica, refletida pelos relatórios e pela caligrafia, é patente. Seja como for, a natureza precária do cargo comissionado predispõe a vícios, seja o cara bom ou rũi: a subserviência ao dono do pedaço, as redes de proteção, a necessidade de sempre estar em evidência, a malocagem de informações triviais, o bizantinismo do simples, a cegueira para o complexo, a incapacidade de autocrítica, a visão rotineira sobre o trabalho. Alguns dos comissionados conseguiram sobreviver a múltiplas gestões e, em nota de prestígio, passaram a se intitular “quadros históricos”.

Ninguém queria os concursados. Na cara-dura, os comissionados advertiram que estavam ali antes, muito antes, argumento que os dinossauros devem ter dado aos mamíferos quando notaram no céu o asteróide. Em parte colou, porque brasileiro, diante de crachá, é mais frouxo que musaranho diante de tiranossauro. E assim, desdos primeiros dias, os concursados foram alijados dos trabalhos. Quando muito, advogado batia ofício ditado, doutor recolhia assinatura, arquiteto era constrangido a laudo favorável a prédio menos seguro que globo-da-morte. Recentemente um colega voltou de doutorado na gringa sobre climatologia. Sua gerente, graduanda ainda, só o incumbiu de entregar notificações – e nem são avisos de chuva. Obviamente nenhuma pessoa que assumiu o cargo por concurso (e não por favor), fruindo de estabilidade, bom salário e amor-próprio, vai se sujeitar a converter a mesa de trabalho em puxadinho do gabinete do deputado Dr. Bumbum ou da vereadora MC Suellen do Posto, com todo o respeito aos representantesdopovobrasileiro. É exatamente para não ocorrer isso, mesmo se considerando as ineficiências intrínsecas que as mordomias tendem a acarretar, que existe o servidor público estatutário.

Acreditasse num Grande Plano Cósmico, diria que minha presença na Trapizonga me serve material para ópera-bufa. A maior qualificação profissional de certo gerente, chefe dos engenheiros, era o ofício de didjei. Passista já foi chefe de gabinete. (Quem disse que Marx sonhou errado?) Durante anos, o coroa que fumava meio enfisema por dia não só era o único candango com acesso ao sistema de pagamento, mas também exclusivo conhecedor da senha. Bastava passar mal, acordar tarde, pegar engarrafamento e Órgão não movia um níquel. Fulana foi sucessivamente Diretora de Cadastro e Cartografia, Assessora de Planejamento, e Gerente de Atendimento Comunitário – mulher renascentista se do Renascimento descontarmos as ciências e as artes, porque entende tanto desses temas quanto um repolho entende de astrofísica, com o perdão, outra vez, pela comparação ao repolho, um vegetal com muitas folhas mas uma só cara.[1] 

Essa gestão esquete Trapalhões só reforça a opacidade dos protocolos e dos processos de regularização fundiária. Não há a menor clareza sobre quais comunidades serão atendidas, por qual razão, qual a ordem de prioridade, qual o fluxo de trabalho, qual o prazo, quais as políticas a adotar, onde buscar os recursos, se a Caxanga tem condições de assumir a responsa, quais os riscos representados pela milícia e reticências até a Nuvem de Oort. As informações mais triviais são entesouradas e armam-se hierarquias a partir delas. Reuniões com associações de moradores raramente produzem atas. Muita coisa que deveria estar no papel só se recupera de boca, porque “Beltrano é quem sabe”. A lista de comunidades atendidas disponível no saite é incompleta. (A Renascentista detém a lista boa, mas queria, na chinelagem dos pequenos poderes, que eu fosse buscá-la na sua sala...). É comuníssimo, na hora de pedirem a ajuda aos saberes arcanos de certos profissionais (p. ex., pesquisa histórico-fundiária), não enviarem de prima o processo inteiro, só uma ou outra folha. Além de produtos sub-amadorescos, o esconde-esconde facilita a malversação, uma vez que faltam argumentos técnicos para resistir à politicagem mais sacana (tipo a esposa do deputado mandar fazer praça com nome de vó de marido com faixa agradecendo ao marido). Perdi a confiança nos sedizentes “quadros históricos” por nunca terem buscado apoio nos concursados para blindar a institucionalidade. Pelo contrário, ¿quantas vezes não ouvi advertências para não prejudicar a comunidade nos meus laudos históricos (o que trazia implícita a idéia de que sou incompetente ou filho-da-puta – prefiro ser filho-da-puta, defeito mais facilmente reformável)? Quando cheguei, minha diretoria tinha, como analistas concursados, oito advogados, duas arquivistas, dois historiadores, dois antropólogos – desses só ficou uma e fora da função. Ninguém agüenta, mas dizem que não queremos trabalhar. Ao anularem os concursados, a presença técnica mínima, veraz ou ficta, dos “quadros históricos” confere legitimidade a um monte de putaria.

Mas é aquilo que cantava Rogério Skylab: “A bosta bate na água / E água bate na bunda”. Os comissionados que escanteavam os concursados passaram a ser escanteados por estagiários. É brilhante. O poder é sempre inteligente, mermão. A situação foi favorecida por 82 milhões de mangos (Processo Sei-330020/00946/2021) para “Contratação de empresa especializada nos serviços de levantamento topográfico planialtimétrico e cadastral georreferenciado urbano, cadastramento socioeconômico, pesquisa fundiária e consultoria para fins de regularização fundiária no Estado do Rio de Janeiro”. Quer dizer, um contrato que terceiriza as atribuições do Aparato, inclusive, como de rigor, a gestão do contrato. Os nove milhões para praça só estão pensando nas crianças e nos idosos numa alegre tarde de domingo.

Em suma: a) a visão fantasista sobre a regularização fundiária, enraizada sobre conceitos tão carregados como “moradia”, “terra”, “luta popular”, “resistência”, mobiliza grande elenco (o pobre por interesse direto, a militância e a academia por expectativas sociais amiúde infundadas ou mesmo só perfórmance, o burocrata por mascarar a falta de políticas públicas fundiárias ou por chance de se capitalizar pelo engajamento); b) ao se travestir em política/projeto social as soluções precárias que os pobres encontraram para acesso à morada e à terra, os custos da instrumentalização são ínfimos (só é ou foi caro para o pobre), sobretudo para a instrumentalização eleitoreira; c) a gestão opaca e mesmo amadoresca impede que se criem barreiras aos desvios eleitoreiros mais explícitos e, de fato, convida que a Máquina seja usada para tal fim.

Tanta esculhambação seria talvez mitigada caso: a) a Estrovenga abandonasse o foco operacional na regularização fundiária e passasse a se centrar no planejamento da política fundiária, em diversas escalas; b) se separasse com clareza a política de Estado, de médio e longo prazos, daquela de Governo, de curto prazo; c) fossem propostas mudanças legislativas e administrativas para tornar a política fundiária mais eficiente e, por conseguinte, também a regularização fundiária; d) se estabelecessem protocolos claros para o processo de regularização fundiária, a começar por ordenar as comunidades a se atender; e) se definisse percentual mínimo de cargos de direção e gerência a serem ocupados pelos concursados; f) houvesse maior transparência no acesso aos dados como meio de liberar as comunidades da dependência duma só instituição. E mais letras do alfabeto latino, grego, cirílico e rúnico (na nota técnica elaborada na minha diretoria em 2018 batemos no aa – e tudo explicadinho).

Descreio mudanças. Em quase quarenta anos de Brasil, a única coisa que vi mudar para melhor foi a dentição do geraldino. Como já escrevi à vera e à brinca, as instituições fundiárias pindorâmicas não funcionam porque não são para funcionar – o mínimo de ordem, mesmo capitalista, já atrapalharia a forma favorita de acesso à terra: a violência.  A relação dos concursados entre si é péssima e a bunda-molice, de rigor. Qualquer tentativa de perspectiva crítica da regularização fundiária leva, a depender do caso, a epítetos como “prussiano”, “cartesiano”, “elitista”, “stalinista”, “bolsonarista infiltrado”, “prima-dona”, “quer aparecer”. Outros órgãos estatais raramente buscam lidar com os técnicos, preferindo antes a intermediação com quem manda (aqui se inclui a própria Defensoria Pública, com a qual, há pouco, me vi engalfinhado num arranca-rabo brabo sem jamais ter visto defensor ou ouvidor falar grosso com cabo-eleitoral ou esposa de político).

Não à toa há colegas que torcem pela extinção. De fato, em 2016, no ápice da pindaíba fiscal, a Alerj propôs nossa extinção. Em todo o caso, alguns futuros já parecem paleontológicos. Na vertente dodô, a extinção vem na paulada: as empresas privadas de regularização fundiária – filão que não se explora como financiamento suplementar por pudores pseudossocialistas apesar de a lei prever venda de serviços. Na vertente celacanto, provável, submergimos nas águas profundas da burocracia, uma Seção de Telégrafos que tenta persistir sem chamar a atenção. Na vertente líquen, perdemos de vez a especialização e o bolor das nossas idéias se funde a um político de estimação, marromenos como hoje. Mas existe um futuro de protagonismo. É a vertente Homo sapiens pós-gargalo. É o futuro em que evoluímos para Corretora de Imóveis da milícia e viramos donos da porra-toda, regularizando a Avenida Rio Branco, Wall Street, Avenue Montaigne, Friedrichstraße e Rua Vala do Sangue. (Às vezes, desesperado de não ver idéia nenhuma acontecer, me sonho intelectual orgânico da milícia, o Carl Schmitt miliciano – sempre achei o nosso mau-caratismo muito anti-intelectual, sabe?)

Fazer praça e pendurar faixa talvez até seja coisa boa. Praça para a massa menos mal que bala na cara.



[1] Uma me vez me contaram que ela viera doutro órgão:

– Acho que ela fazia algo lá na Pecuária.

– Pastava, né?

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