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Demagogia Fundiária

  • Foto do escritor: Álvaro Figueiró
    Álvaro Figueiró
  • 20 de fev. de 2022
  • 9 min de leitura

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Estupidez não merece cortesia, mas os tempos exigem boas maneiras: não sou monarquista, seus arrombados! A recente tragédia em Petrópolis quer também arrastar prà vala a dinheirama que a família imperial arrecada com foros e laudêmios. Na Câmara dos Deputados, já tramita projeto de lei para extinguir a “taxa do príncipe”, que não é taxa nem é do príncipe.

No Centro petropolitano e arredores, toda transferência imobiliária (venda, herança, doação etcétera) paga 2,5% sobre o valor da transação para a Companhia Imobiliária de Petrópolis. Esse é o laudêmio. Os imóveis também são onerados com um foro anual, relativamente baixo em face do laudêmio, também em favor da mesma companhia. As mordomias fundamentam-se no instituto jurídico da enfiteuse. É uma espécie de aluguel do tempo-do-ronca. A relação entre senhorio (quem recebe a grana) e o enfiteuta (quem usufrui do imóvel) não é temporária, nem mesmo vitalícia, mas perpétua, isto é, perpétua até o Sol se apagar ou o Putin e o Biden começarem a brigar. Por outro lado, o senhorio não costuma ter o poder de interferir no imóvel do enfiteuta (como o teu senhorio que não te deixa pintar de verde-mafagarfo o teto da cozinha). Assim como o sexo nas coxas, a enfiteuse caiu em desuso pelo caráter arcaico: o próprio senhorio só pode reaver o usufruto do imóvel se convencer o enfiteuta a transferi-lo de volta. A enfiteuse persistiu ainda no Código Civil de 1916 sem grandes empregos práticos e o atual Código Civil, de 2002, aboliu-a de vez. Só valem as enfiteuses anteriores.[1]

A família que se insiste imperial (minha família também é imperial, descendente de Carlos Magno, como geral com pezinho na Zuropa), bem, como dizia, a família imperial, mesmo com cento e blau anos de república, papa a bolada enfitêutica, porque a região central petropolitana não era um bem da Coroa, portanto público, e sim particular da dinastia. Mais ou menos como meu imperial tio César e o seu Opala em 1978, em 1830 D. Pedro I comprou a Fazenda do Córrego Seco com o que sobrou das farras. Com o baita patrimônio pertinho da febril-amarelenta Corte carioca, na década seguinte sugeriram ao de-menor D. Pedro II lotear a fazenda: a galera fugia do calorão e a duranga bolsa bragantina ficava mais cheinha. Assim nasceu Petrópolis, um empreendimento imobiliário, que hoje seria Peter’s Heights ou Les Résidences Alpines. Claro, pode-se argumentar que, em última instância, o pecúlio se formou a partir de impostos, mas, no fim das contas, após 1889 nem todos os bens adquiridos a título pessoal pela família imperial foram confiscados. Aprenda-se esbulho com os milicianos ou os narcotraficantes: ou é banimento eterno, ou é cerol-fininho.

Juridicamente o direito enfitêutico dos cafonas Orleãs e Braganças é tão sólido quanto o do Zeca Pagodinho realizar churrascos seja com Brahma, seja com Antártica, até com Schincariol no seu sítio em Xerém. No atual contexto, a proposta de extinguir a enfiteuse é mera presepada, enganação, frioleira e demagogia. Caçam-se culpados com RG e CPF para enlameá-los com o enxurro que matou centenas e desabrigou milhares. É mais fácil demonizar uns semi-ricaços presunçosos que, para piorar, majestaticamente sem-noções tostam o próprio filme oferecendo, em vez de donativos, apenas orações no melhor protocolo real à Maria Antonieta: distribuir saco de doce de Cosme e Damião, inclusive com geléia bicolor, ajudaria mais. Em todo o caso, escrotice e presunção não são crimes. No barata-voa das responsabilidades, uma rede de cumplicidade vai acabar diluindo o protagonismo do poder público na tragédia. Político que levanta extinção da enfiteuse petropolitana como meio de proteger o município de desbarrancamentos e enchentes é o enxurrado falando do limpinho. Só me aterei à discrepância que há no âmbito do controle fundiário, para não entrar naquelas que são de alçada estritamente públicas como políticas habitacionais, urbanísticas e ambientais, essas sim geradoras da desgraceira toda, junto, claro, com o toró do capeta.

A gestão patrimonial pela Companhia Imobiliária de Petrópolis e instituições anteriores possui raro nível de organização. Em 1854, já havia levantado planta dos lotes (ou, como chamam, “prazos”). No Arquivo Público do Estado (Aperj), há algumas fichas de fins do século XIX (fig. 1) com informações registrais elementares sobre os lotes, inclusive considerando-se a declinação magnética da bússola. Pode não parecer muita coisa – partes da Suécia têm carta cadastral desde 1630[2] –, mas para a realidade brasileira impressiona. O cuidado da Companhia explica-se por um truísmo: para cobrar laudêmios e foros, o senhorio deve conhecer o seu patrimônio.[3] É a mesma lógica que deu aos mapas dos pôlderes holandeses seiscentistas uma precisão inovadora. A única coisa preocupante na gestão da Companhia é o vício personalista, aliás recorrente nas administrações brasileiras: a responsável pelo arquivo é uma anciã, quase centenária, embora lúcida e ativa, mas que exerce mão-de-ferro sobre a papelada. A última vez que fui à Companhia para consultas fundiárias quem me atendeu foi a velhinha em pessoa. Há quem tema o que vai acontecer com as informações quando ela morrer, falha ao qual os humanos, conforme já constatei, são bastante propensos.



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Fig. 1


O esmero da Companhia Imobiliária de Petrópolis contrasta com a esculhambação fundiária do poder público. Até hoje inexiste cadastro rural abrangente no Brasil. Pior ainda, o fuzuê afeta até as propriedades públicas. Seja no nível federal, estadual ou municipal, ninguém tem cadastro completo sobre o seu patrimônio imobiliário. Pra quem não entendeu: o Estado brasileiro desconhece o que lhe pertence. Não estou nem falando de imóveis como meia saleta nos fundos do mictório da antiga rodoviária de Miracema, mas de grandes glebas em grandes cidades. Em 1956, cerca de 250.000 m² da gleba da favela do Jacarezinho foram permutados em favor da Prefeitura carioca. Ninguém sabe onde está o registro imobiliário. Juridicamente falando são 25 campos de futebol fantasmas. O Hospital de Curupaiti tem uns 200.000 m² que se presumem pertencer ao Estado fluminense basicamente porque o terreno sem certidão imobiliária está murado. Anos atrás teimaram que haviam grilado em Barra do Piraí quase mil hectares (o que, no Rio, é coisa pacas), porque a área da antiga fazenda de Vargem Alegre atualmente controlada pelo Estado era muito inferior ao que aparecia na escritura de compra lavrada em 1896. A base patrimonial estadual ignorava, porém, que, poucos anos após a compra, a maior parte da fazenda foi loteada num núcleo colonial. Essa “descoberta” não apenas não foi inclusa na base patrimonial como tampouco o laudo fundiário, no processo administrativo... O caso das terras devolutas é mais crítico ainda. Ao contrário dos Estados Unidos, entre nós se pressupõe que a terra que não é particular é pública. Se o Estado esquece as terras que adquiriu, que dirá o patrimônio das caixas-pregos que ninguém, em tese, nunca reivindicou. Boa parte do meu batente como historiador-barnabé, além de ofender a repartição inteira, consiste em bancar o Phillip Marlowe das terras públicas desaparecidas.

Órgãos para sanar a balbúrdia registral, pública e privada, não faltaram. Em 1926, criou-se o Instituto de Fomento e Economia Agrícola do Estado do Rio de Janeiro. Entre suas atribuições, estava a implantação nas propriedades rurais dum tipo mais sofisticado de registro cartorial, o Torrens, exigência que remontava, por decreto federal, desde 1890. O Instituto planejava obrigar todos os proprietários rurais que transacionassem com o Estado (insumos, subsídios, assistência ecétera) a ter suas herdades conforme o Torrens até 1930.[4] Significativamente o Instituto foi extinto nesse ano sem cumprir o propósito.

Entre 1959 e 1964, funcionou o Plano de Colonização e Aproveitamento de Terras Devolutas e Próprias do Estado, mais conhecido como Plano de Ação Agrária. Uma das metas era identificar as terras devolutas para reforma agrária, subsidiando a venda de lotes aos camponeses. É difícil avaliar quanto avançaram os trabalhos, porque os documentos burocráticos se escafederam. Na década de 1980, alguns historiadores, como Mário Grynszpan, chegaram a consultar materiais que o gestor do Plano, Irênio de Matos, conservou por conta própria, ou melhor dizendo, malocou.[5] Essa papelada também acabou saindo pra comprar cigarro – por acaso recentemente a encontrei toda amarfanhada em sacos de plástico, feito lixo. Eu sou mermo o Phillip Marlowe fundiário.

Em 1989, a Constituição Estatal fundou uma autarquia, o Instituto Estadual de Terras e Cartografia (Iterj), incumbida de levantar as terras devolutas para orientar a política fundiária e agrária fluminense (art. 247 a 250). A lei orgânica que regulamentou a autarquia ainda concedeu competências suplementares como gestão do patrimônio fundiário estadual e estabelecimento de diretrizes para o uso do solo (Lei Nº 1738 de 1990, art. 3º, e Decreto Nº 23.289 de 1997, art. 4º). Alguma coisa de concreto, ao menos, foi feita. Em 1991, publicou-se um excelente Atlas Fundiário. Contudo, os trabalhos preparatórios e os documentos recolhidos também foram comprar cigarro. Tirando uns fichários enferrujados que encontrei, o último paradeiro deles é que, há muitos anos, estavam encaixotados num banheiro da Faculdade de Direito da Uff. Desde então o Atlas não foi atualizado e os projetos de retomá-lo foram sabotados em várias frentes.

O campeão em nanicolina documental é o seguinte. Em 1946, criou-se o Departamento Geográfico, da Secretaria da Viação e Obras Públicas, com metas tão amplas quanto o estabelecimento de nova carta estadual, linhas divisórias interestaduais, colonização de terras devolutas[6] e laudos técnicos para questões urbanísticas. Bonito. Para a nova carta, foram usadas 2.500 aerofotografias trimetrogon, abrangendo quase toda a Flumínia.[7] A trimetrogon empregava três câmeras, uma diretamente perpendicular ao solo, as outras duas afastadas desse eixo em 30º ou mais, gerando imagens estereoscópicas para traçado de curvas de nível. Introduzida logo após a Segunda Guerra Mundial, representava o estado-da-arte em aerofotografia. Maneiríssimo. Chique e moderno. Paz, amor e tecnologia. Pergunta de dez milhões de cruzados novos com corte de nove zeros: cadê as 2.500 fotografias? É mais fácil descobrir onde está a Jules Rimet ou o aicebergue que gongou o Titanic. Já procurei em todos os arquivos, inclusive debaixo da minha cama. Sacanagem. As aerofotografias permitiriam estudos sobre evolução de formas de ocupação fundiária e de alterações na vegetação. Fica na imaginação aí, cientista.

As leis que regem os órgãos públicos que lidam com questões fundiárias são as seguintes, em ordem decrescente de generalidade:

1. O trabalho não é feito.

2. Se o trabalho é feito, ele é mal feito.

3. Se o trabalho é bem feito, ele some.

4. Se o trabalho bem feito não some, ele é usado para eleger alguém que não tem nada a ver com o trabalho ou para dar crédito a quem atrapalhou a execução do trabalho.

Há causas primárias e secundárias para a dificuldade de o poder público exercer controle registral sobre as propriedades imobiliárias. Entre as secundárias – neoinstitucionalistas para os teoréticos – estão mecanismos jurídicos, técnicos e administrativos toscos (p. ex., historicamente a falta de gente escolada para a faina de agrimensor). Entre as primárias, o desejo em conservar disparidades sociais dificultando o acesso à terra ou, pelo contrário, facilitando o acesso por meios extra-econômicos (grilagem, esbulhos, expulsões ilegais). O poder público também atua nas causas primárias na medida em que a indefinição registral permite ser instrumentalizada na forma de regularização: um pressuposto do próprio poder burocrático é transmutado, na bela alquimia da safadeza, em política social. Fundindo causas institucionais e estruturais, outra razão do descontrole fundiário repousa no fato de que, mesmo na fase agrária, o Estado brasileiro nunca ter conseguido assentar o fisco no imposto territorial – diferentemente do que ocorreu na Europa onde a terra financiava o erário e onde, por conseguinte, a elaboração de cartas cadastrais precisas era vital para a sobrevivência estatal: em começos do XIX, impostos fundiários respondiam respectivamente por 68% e 88% das receitas da Bavária e de Brunsvique.[8] Brasil foi ter imposto territorial rural em 1891 e mesmo assim só no papel: na década de 1960 é que o imposto começa a engrenar, mas até hoje a alíquota é uma mixaria, não dá nem prà sojinha. Em 2018, as cinco milhões de propriedades rurais brasileiras recolheram um miserento bilhão e meio de reais, 0,1% da carga tributária federal. Até em bolão da Megassena se recolhe mais grana. Plutão me livre de imposto, mas esse é um dos que faz sentido.

Se o Estado não tem idéia nenhuma sobre quem é dono da terra – inclusive da própria –, como diabos vai traçar uma política urbana, habitacional e ambiental eficiente? Como vai definir onde há riscos para a moradia? Como vai impedir a expansão de construções irregulares? Como vai remanejar de forma adequada os moradores? É mais fácil guilhotinar o coroca cacura pequeno príncipe que cuida bem do seu patrimônio.

Espero ansioso – nunca assisti a uma execução pública. Vai sair três vezes mais cara que a execução privada, a guilhotina vai falhar na hora-agá e o príncipe vai ter de morrer na paulada, mas o povo vai ficar com pena e vai coroá-lo Imperador Defensor Pérpetuo e Constitucional do Brasil. E eu vou ser princesa da Disney servindo bolinhos de lama.

[1] Se você não pescou o rolo enfitêutico, leia o artigo do Presuntinho cruzado com Yamandu Costa que é dono do Diário do Rio, onde também debocha do merdelê que andam falando sobre a taxa do príncipe: https://diariodorio.com/a-verdade-sobre-foro-e-laudemio-em-petropolis-entenda/

[2] KAIN, Roger J. P. “Maps and Rural Land Management in Early Modern Europe”. IN: WOODWARD, David (org.). The History of Cartography, v. 3, pp. 710-711.

[3] O que não implica que não tenham acontecido algumas invasões de terrenos nas sobras dos lotes, mas esse é um problema que reverte para o enfiteuta ou para a prefeitura. É o caso da comunidade da Rua Luís Winter, no bairro de Duarte da Silveira, nas imediações da fábrica da Carl Zeiss. Corresponde ao Prazo Nº 3.633 Bis, no quarteirão Woerstadt.

[4] Estatutos do Instituto de Fomento e Economia Agrícola do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Comércio, 1926, Art 5º, d.

[5] Cf. GRYNSZPAN, Mário. “Mobilização Camponesa e competição Política no Estado do Rio de Janeiro (1950-1964)”. Mestrado em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1987.

[6] O Jornal, 28/04/1948, p. 4: “Do planejamento de Sodrelândia, Pinheral e Barra Mansa, incumbiu-se o Departamento Geográfico estadual, dirigido pelo engenheiro Luís de Sousa, que, fornecendo-nos os primeiros dados sobre a iniciativa, ressaltou que possui o Estado vastas áreas de terra ainda não perfeitamente delimitadas, invadidas por intrusos e "grileiros", os quais estão fazendo criminosa derrubada de matas para venda de madeira, dando, aliás, prejuízos de milhares e milhares de cruzeiros ao erário.”

[7] Boletim Geográfico, Conselho Nacional de Geografia, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, set. de 1948, ano VI, Nº 66, p. 640.

[8] KAIN, Roger J. P.; BAIGENT, Elizabeth. The Cadastral Map in the Service of the State: a history of property mapping. Chicago: The University of Chicago Press, 1992, p. 146.


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