Papais Noéis da Casa Alheia
- Álvaro Figueiró
- 28 de out. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 25 de abr. de 2024

Meu celular é um Moto X de 2013 que comprei usado faz uns seis anos. Cheguei a manter um namoro por ano e meio sem celular – foi meu romance mais longo, talvez por isso. Tem muito grupo de WhatsApp – trabalho, pesquisa, piada e mesmo a Rifa Pataxó – que só visualizo por esbarrão. Estava lendo aqui Naipaul quando sem querer toquei num desses grupos bissextos. Trombei com o cartaz aí acima, obviamente escoimado da minha pontuação.
Trapicheiros é uma pequena favela tijucana, vizinha ao Salgueiro. Em 2018, tomei contato com ela mediante uma ongue, vinculada ao Rio On Watch, que queria implantar um novo título fundiário de matriz coletiva. Sempre cínico e cético quanto ao ideal coletivista, ainda mais em versão b r a s i l e i r a, continuei colaborando com a ongue e com a comunidade, até porque fui incumbido da pesquisa fundiária para desempacar o processo administrativo no Iterj mula-manca. Como comum em favelas, ninguém encontrava o registro imobiliário de Trapicheiros. Fucei no Museu da Justiça inventários do Barão de Itacuruçá, vasculhei na Secretaria de Patrimônio da União, explorei a magra literatura microrregional sobre a Tijuca, oficiei a uma meia-dúzia de cartórios, catei os aerolevantamentos de 1928 e as cartas cadastrais da década de 1930, conferi os recibos de aluguel e, após muitas bolas-foras, fechei o quebra-cabeça. Para padrões da Repartição, foi eficiência nipônica. E, como sempre fiz questão de reconhecer e enfatizar, o problema resolveu-se rápido porque tive um cartógrafo plotando os mapas e documentos que ia encontrando.
Era uma das minhas especialidades. Há quase dois anos não me aparece esse tipo de trabalho.
Continuei pesquisando alguma coisa sobre Trapicheiros, recolhi mais recibos de aluguel para construir uma série estatística, escrevi um desses meus muitos artigos que nunca termino de polir. Esta semana mesma mencionei a favela numa apresentação sobre aerofotografia e carta cadastral.
Eu sou egocêntrico. Mas depois do Instagram descobri que todo mundo é egocêntrico também. Ao menos, não acho minha bunda essas coisas todas.
Mas mais egocêntricos são o Governador Cláudio Castro, o Secretário de Cidades Uruan Cintra e o Deputado Estadual Jorge Filipe Neto que acham que fizeram alguma merda útil ou mesmo caquinha inútil pralguém.
O caso de Trapicheiros é bastante ilustrativo do acanalhamento da nossa política de regularização fundiária de interesse social. Como um deputado estadual mauricinho como Jorge Felippe Neto aparece do nada num cartaz de regularização fundiária em favela na Tijuca? A resposta mais direta seria que a sua esposa, Mariana Vasques Nogueira Felippe, foi nomeada por Decreto Estadual de 17 de junho de 2021 para Diretora de Regularização Fundiária do Iterj (cf. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, 21/06/2021, p. 3). É uma mocinha de vinte e poucos, portanto sequer tarimbada para tal cargo, pela cara sequer tarimbada para se locomover sozinha numa praça de alimentação de xópim. E, ainda assim, dizem que a presidente é só uma testa-de-ferro dela.
Mas, para além das ligações matrimoniais, envolvam atração sexual mútua ou não, a apropriação politiqueira da regularização fundiária tem muitas etapas. Em primeiro lugar, a ofuscação sobre quais são as comunidades a atender, por quê e em qual ordem. A gestão do Iterj sempre se pautou por aquilo que se chama de mushroom management – keep them in the dark and feed them shit. Quem sabe o que está acontecendo são os sedizentes “quadros históricos”, todos comissionados, uma das quais ela própria também ex-exposa de vereador niteroiense. A falta de transparência é recurso de sobrevivência, sem dúvida, para os comissionados, que se tornam indispensáveis ao entesourar informações triviais – a ponto de o técnico que resolveu a pendenga cartorial sequer saber que a comunidade ia ser titulada. Entretanto uma das mais óbvias conseqüências dessa tática é anular qualquer tentativa de organizar o trabalho conforme um fluxo técnico. Sem isso, o político chega, aponta o dedo no mapa e lá vão os barnabés atuar como cabo eleitoral, uns mais conscientemente, outros menos. E há nesses “quadros históricos” inúmeros que fazem a intermediação com a politicagem: afinal como o deputado estadual poderia saber tão rapidamente duma comunidade prestes a ser titulada, mesmo com a amada (ou não) esposa na Diretoria de Regularização Fundiária?
A politicagem fundiária não vem de hoje e é um constante. Um das principais razões – e nisso nossa esquerda tem culpa – é tratar o registro fundiário como política social. Celebrar uma certidão imobiliária é o mesmo que julgar um RG ou um CPF como conquista. É só um apanágio do controle estatal sobre a propriedade imobiliária. Contudo, esse aspecto burocrático é diversas vezes espetaculizado nos conceitos de “luta”, “resistência”, “batalha”, “herói” e o escambau. Esse léxico leonino tem sua contraparte ovil. Quando entrei no Iterj, a primeira coisa que pressenti de sinistro ali estava na página inicial do saite: a fotona dum sujeito beijando um título, provavelmente um desses molambentos inúteis termos provisórios de ocupação. É o pé-rapado grato pelo Dr. Fulano ou pelo nosso nobre deputado Sicrano que lutou pela comunidade.
As comunidades sabem que devem jogar o jogo da politicagem para obter as mais óbvias benesses. Mas esse jogo que todos querem levar vantagem é de soma-zero: acadêmicos e militantes passam por aqui só para bombar currículos e cevar sonhos de alta burocracia; “quadros históricos” afogam os técnicos a fim de boiar na sua toda importante incompetência; concursados cansados só querem sombra, salário e água fresca como se estivessem numa repartição nelsonrodriguiana (eu já sou assim, só não uso gravata, nem fumo três maços de cigarro, nem tenho amante em Cascadura, nem me suicidei com um tiro no peito); políticos espertalhões caem do céu como Papai Noel da casa que o fodido construiu sozinho, sozinho.
Volto ao Naipaul... Índia... Era melhor ser como lá: com castas. Quem é o nosso pária? Quem busca a verdade através da verdade, quem diz as coisas como elas são.
Eu vou é começar a fumar três maços por dia.
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