Desomenagem à Homenagem
- Álvaro Figueiró
- 4 de mar.
- 8 min de leitura

Um texto misantropo fadado à incompreensão,
graças à burrice pretensamente politizada
e ao moralismo performático,
pelo que esta advertência covarde
Eu gostcho mũitcho do R$, mesmo sendo essa coisa entre o $€£ e o inferno-mabel. Não só porque
1) me permite adquirir, sem recurso ao sangue e ao cérebro, quase tudo de que preciso,
mas também porque
2) matou o Dragão da Inflação; e
3) não homenageia ninguém, figurão ou figurinha, fodão ou fodido, forte ou fraco. Quem é celebrado nas notas de real são os verdadeiros donos do Brasil, os seus mais dignos gestores, os originários originais: os bichos! Tilápia, onça-pintada, lobo-guará, arara, tartaruga, beija-flor (†). Até a abstrata República, rosto vago de estátua níger-minóica arqueopescada, parece, em verso à bicharada, um papagaio-de-pirata, ou melhor, pirata-de-papagaio. O esculacho é esquecerem os invertebrados neotropicais, que têm lá suas fofices (ah, as perninhas da lacraia!). As moedas é que cagam no inox.
Antipatizo muito com a idéia de homenagem e a recíproca é verdadeira. Homenagem é uma dessas palavras que nos foram legadas pelas meiinhas feudo-vassálicas. É literalmente se tornar o homem dalguém, seu vassalo, “menino” em celta – uma jura de subordinação. E assim continuou sendo, tempão, quando o sentido já se deslocara para “celebração”, “reconhecimento”, “memorialização” e blablablá. Com o individualismo burguês, o gênio romântico, o herói popular, o líder político, o batalhador pelas causas justas, o bom médico, o abnegado cientista, então aí as homenagens despirocam. Pra tudo quanto é lado, medalha, rua, prêmio, estátua em praça, mausoléu, cara em selo. A chave vira: cada vez mais, o homenageador é quem quer tirar uma casquinha do borogodó do homenageado, um deixa-eu-dar-um-teco-aí-no-teu-sacolé-de-prestígio. De condescendência régia à beija-mão reles. Na Repartição, uma promissora bambambã ralou sem nos deixar xongas dos grandes projetos de reforma institucional, exceto, de última hora, uma placa no auditório com nome de defensor público “com muita história”, aliás ainda servidor da baiúca. Ela foi pruns órgãos federais, agora o Lula a escolheu no terço constitucional pra desembargadora. Cursus honoroum adulationumque.
Várias vezes a homenagem só exalta nos outros o pior em si: patrioteira, patoteira, pusilanimidade, projeção, pretensão. Borges conta que, em Buenos Aires, um guarda o parou para dizer que torcia pelo seu Nobel. O ceguim exultou. Imagine escrever o que Borges escreveu e ser admirado por guarda. Não deve ter alegria maior prum artista. Borges se aprumou e então perguntou:
– Porra, viado, então tu curte minhas paradas à vera? É a poesia, o conto ou o ensaio que tu gama, tchê?
– Não, coé, mané. Só queria que um filho da puta boludo argentino ganhasse a boluda bolada.
Criança, fuçava tabelas e listas atrás dos nossos compatriotas: Nobel, Olimpíadas, prêmios, recordes, rânquins. Numas, não aparecíamos nunca (o mais doído era o Nobel, datas de lançamento de satélite e de bomba atômica). Noutras, em bissextos (medalhas olímpicas, inventores e cientistas que descobriram alguma joça digna de nota, Bartolomeu de Gusmão, Santos-Dumont, Carlos Chagas, César Lattes). Numas raras, até liderávamos, no mais pela força da natureza (favela, estádio de futebol, gols, biodiversidade, jazidas de alumínio, floresta). Recuava para uma trincheira genealógico-patriótica. Portugal tampouco tinha muito de comendável. O Nobel era pela lobotomia. O mundo é mesmo dos americanos, ingleses, alemães, japoneses, franceses, soviéticos, holandeses, sul-africanos e até argentinos. Sniff, sniff... Podia ser pior. Podia ter nascido em Tonga. Bem, pelo menos, Tonga é perto da praia...
Certo fez o Grigori Perelman em recusar não só a Medalha Fields, mas até a autoria da solução. Façam as crianças andarem no salto-alto das próprias pernas.
O que nos leva, se terminar este texto a tempo [não terminei], à clubística torcida pelo Oscar prà Fernanda Torres. Quando ela papou o Globo de Ouro, foi dureza. Um monte de adulto de cinco anos. Me recordou o Brasil tirando A+Parabéns da Tia Standard and Poor’s, isso à bananeira do abismo bancário de 2008. Pior ainda, não veio só uma onda patrioteira; veio uma onda patrioteira tijucana por ela buzinar suas origens tijucanas, como se isso não fosse o próprio estereótipo da tijucanice – o tijucano, o mais nojentinho entre os cariocas, só não tanto quanto o morador do Méier, cujo sonho é ser tijucano.[1] Uns dirão que é vitória da resistência à Ditadura, da Comissão Nacional da Verdade, da Dilma e tals. Pruns pode ser. No geral, é mais mermo a excitação de ser visto pelo Grande Irmão do Norte, patrioteira vira-latesca em suma. Me produz mais júbilo narcísico ver as ruas do bairro bem calçadas, bem drenadas, bem arborizadas, com imóveis bonitos. Os prêmios sempre são dos outros, seja tuvualano ou tijucano. As ruas são minhas. A alegria é ou deveria ser o ir e vir do trabalho. Isso o brasileiro não atingirá nunca, ele que, desde Jericó e Ur, vem caprichando em erguer as mais feias cidades. Esse patriotismo que joga lixo no chão e ignora o nome das árvores na rua nunca entendi.[2]
Quem homenageia, por implícito, se arroga acúmen crítico. Arrogar é o verbo. Compare-se a literatura do século XX com o rol de nababos bonobos bobos nobéis. Nabokov não tá lá. Nem Borges. Nem Cortázar, Calvino, Joyce. (Kafka, Kaváfis, Pessoa, postumeiros, não contam.) Na Academia Sueca, pelo menos os jurados são literatos. Foda é na Sapucaí.
LOCUTOR (quadro de notas na tela e figurinha do jurado): Vamos agora ver o quesito har-mo-ni-a. Olha aí, as notas do jurado Miguel Tavares Galvão. Ele é engenheiro sanitário e funcionário da prefeitura do Rio. [...] Passando agora para o quesito a-de-re-ços e as notas da jurada Carmem Rosa Freiburg. Carmen é formada em psicologia e tem especialização na área de transtornos compulsivos obsessivos. Trabalha há trinta anos do Hospital Geral de Bonsucesso e também é pesquisadora da Fiocruz.
Olhando por uma bola de gude, a homenagem aparece colorida e grotesca, a evidente bobice de tudo que se toma por sério para quem se afasta dois, três passos da búlica. A desomenagem é que desmascara a brincadeira como bruta, de mau-gosto, balas de gude. Nela, o pior na homenagem é elevado ao cubo. A desomenagem, quando enxota um mané pra trazer outro, revela isto: que, em certos círculos, se valoriza mais uma seringa de heroína. É, porém, ainda a bajulação costumeira, paparicar quem ficou mais graúdo.[3] A desomenagem do cancelativismo é mais perversa. Não só vampiriza o viço do novo herói como também crava uma estaca no coração do vilão mortinho-mortinho. Te babo quando tu poderoso e aquiagora vivo ou renascido em toda a glória; te cuspo quanto tu asqueroso e lá na puta-que-te-pariu-do-além-judas.
Fulminam o baita escroto que foi o desomenageado, outrora tão festejado, mas ninguém pergunta:
CADÊ A RESPONSABILIDADE DO HOMENAGEADOR?
¿Batizaram escola com nome de torturador? Mantenham. Mostrem até onde se agacha quem pretende exaltar. Ponham placa também com os nomes de quem propôs o mimo. O puxa-saco também deve ser execrado. ¿Não derrubaram a estátua do ditador quando o regime caiu? Então deixem o colosso de ferro-concreto-bronze de sete metros apontado o futuro do pretérito. Ensinem que a arte serve também à opressão e, tantas vezes, a melhor arte.
Virão falar de disputa pelo passado como projeto de futuro e tralalá tralalá. O debate é tão velho quanto cagar pra baixo. Igrejas dilapidadas na Revolução Francesa, monumentos explodidos pelo Ira, Lênins tombando em 1989, talibã dinamitando budas, Pushkins removidos na Ucrânia... Valeu a pena? O que é política, fanatismo, vandalismo, farofice? Qual é a hora certa? Não é instrutivo que certas escolhas – mas só as simbólicas – persistam pra nos vexar e hesitar? As desomenagens turvam a chance de caraminholar que, afinal, talvez a placa recém-inaugurada tampouco seja supimpa, que o bacana subindo ao palco não seja gente-fina. Historia docet, sobretudo pelos maus exemplos. E a História, meus amiguinhos, a História da Humanidade inteirinha é um trubufu de feia do caralho. A História é irreversível. Nesse sentido, sou bem conservador.
O espírito do tempo, porém, parece que recuperou o gosto parnasiano pela palavra rara; às vezes, pela palavra mágica. Avante autoritarismos, irracionalismos, neuroses, concentração de renda, precarização do trabalho, saibervigilância, mas, deste lado, o fronte são palavras e nomes certos. Aliás, a direita louca performática (amigona da esquerda louca performática) descobriu o truque: Gulf Oil of America, Mount Mountebank Back Again McKinley. Enquanto se briga por pico e praça, esqueça o fisco e o paço. Vamos discutir à exaustão sobre os escravistas e eugenistas a serem riscados dos logradouros como quer a Defensoria Pública da União[4] em vez de nos focar naqueles que abusam o poder hoje. Quando não restar mais nenhuma viela com nome feio, a DPU possa dar um confere no que andam fazendo, talvez, ¿quem sabe?, nossas tão gentis polícias ou, talvez, só sugerindo, nosso tão modesto judiciário ou ainda, talvez, com todo respeito, exigir dos órgãos competentes um cadastro fundiário para deter grilagem, milícia e desmatamento. Cada um apaga o passado a seu jeito; no presente é que é difícil melhorar a caligrafia.
Alice Munro, Gaiman, Eric Gill, Neruda, Céline, Woolf. Toda hora alguém, morto ou vivo, cai em desgraça – fato, boato, calúnia. Exposições canceladas, prêmios retirados, contratos rescindidos, placas obliteradas, estatuetas trocadas, damnatio memoriae. Nada mais breve que a imortalidade. Lembrem-se dos que foram destruídos, em vida, por aquilo que hoje é firula: Wilde, Sócrates, Semmelweis, Boltzmann. Nos meus melhores dias, penso que a Humanidade inteira tinha de ser cancelada.
Come carne? Come porco? É ateu? Monoteísta? Trepou antes do casamento? Lava a bunda com a mão direita? Não pratica a mutilação genital na filha mais velha? Daqui a 500 anos quase todos, senão todos, seremos bestiais. E por motivos que nos são incognoscíveis, incompreensíveis até. Há sim um mínimo moral racional. Mas a moral sempre se quis superior à razão... Quinhentos? Do jeito, quinze. Aguarde já já essa geração que concluiu a evolução moral em vociferos às avessas. O que geral quer é uma causa pra oprimir o próximo. Sinto saudades de quando, vintaneiro, me xinagavam de “iluminista de merda” ou mesmo “kantiano de merda”... O certo, sem xiliques, pela razão...
A única forma de amar *eca!* a *blergh!* Humanidade é desprezar mulão, passado, presente e futuro, mais ou menos por igual. Como a vida, ninguém presta.
Melhor que desomenagear é não homenagear mais ninguém.
Nem o pôr-do-sol no Arpoador merece palmas.
No meu mundo, ninguém batizaria nada. Rua A, Rua B, Rua C. Avenida Hélio, Av. Hidrogênio, Av. Lítio. Hospital Nº 45, Creche Azul, Escola Dois Triângulos, Colégio Tetraedro, Universidade Hipercubo, Fórum dos Ipês, Auditório da Senóide Maneira. Estátua nenhuma, só abstrata, bicho ou molécula. Prêmios extintos. Campeonatos idem. Sem homenagem. Por conseguinte, sem desomenagem. O único Homem bom é Homem nenhum.
O meu mundo existe. Chama-se Zórdon XL-486 e fica pegando a esquerda naquela rotatória antes da Galáxia de Andrômeda.
[1] Claro, há exceções. Eu posso me dizer um cara de sorte, porque tenho muitos bons amigos tijucanos, uns sete, quer dizer, quase a metade dos tijucanos maneiros.
[2] Atualização! O anti-americanismo evaporou. Só bastou a associação máxima da indústria cinematográfica mais cinema comercial dos Estados Unidos validar um filme nosso. Viva o primeiro Oscar brasileiro!
[3] Tem também a sobreposição de homenagem, que é uma forma mais gentil de chega-pra-lá. Me lembra o causo dum departamento de História aí. Morreu figurão que fazia uma história bem 1870 com alguma estatística sociológica 1950 e de quem muita gente não gostava, mas era figurão, então bora batizar sala com o nome do maluco, foda-se. A sala, porém, já tinha placa com nome dum ex-figurão, já esquecido, porque defunto antigo só tem força pra mover copo e isso em mesa espírita. Pelo que entendi, a sala ficou mesmo binominal.
[4] https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2025/01/27/defensoria-quer-retirada-de-homenagens-a-figuras-historicas-com-ideais-racistas.ghtml#:~:text=A%20Defensoria%20P%C3%BAblica%20da%20Uni%C3%A3o%20(DPU)%20publicou%20uma%20nota%20t%C3%A9cnica,que%20celebram%20escravocratas%20e%20eugenistas
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