Calvino e a Predestinação das Obras
- Álvaro Figueiró
- 15 de mai. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 16 de mai. de 2023

Da série “Textos Escritos para Outros Lugares”
Quando Ulisses foi publicado em 1922, a literatura entrou numa bede braba. Nem o próprio Joyce se recuperou. Até hoje tá todo mundo de ressaca, em volta do bueiro procurando a chave de casa.[1] Os becos das letras reduziam-se em velocidade alarmante: Seis Personagens à Procura dum Autor de Pirandello é de 1921; Manhattan Transfer de Dos Passos, 1925; O Som e a Fúria de Faulkner e Berlim Alexanderplatz de Döblin, 1929; Murphy de Beckett, 1938; Finnegans Wake de Joyce, 1939 [acrescente aqui o teu paleomodernista favorito]. Na meiúca do século, não só formalmente as possibilidades da literatura pareciam estar esgotadas como também ideologicamente a perspectiva da arte como transformadora da sociedade soava mais trololó que nunca.
Foi nessa era apocalíptica pós-Ulisses que Italo Calvino nasceu em 1923. Italiano de Cuba, aonde o pai fora trabalhar, Calvino voltou moleque prà Bota e, crescendo no par-ou-ímpar fascismo/comunismo, virou militante comuna, ingressou no popestar PCI, desiludiu-se com o partidão, aquela velha chorumela. Após começo no realismo-socialista que não tinha nada de realista nem de socialista (saca o título, I Giovani del Po, “Os Jovens do Rio Pó”...), a obra de Calvino se transformou quase toda num laboratório para sublimar a pepinosa estético-política
As décadas de 1950 e 1960 enfim refrescaram o mormaço modernista. Por um lado, a começar pela música e, em menor grau, pela pintura, pipocaram nas artes processos criativos formalistas – seriais (Boulez), estocásticos (Xenakis), aleatórios (John Cage, Pollock), analíticos (música eletrônica, op-art) fora o tudo-junto-e-misturado (Stockhausen) – enquanto nas ciências sociais a onda era o estruturalismo e a semiótica. Quem ficasse intimidado em produzir arte com transferidor, régua e calculadora, tinha, ainda fresquinha de trasanteontem, a metanarrativa, cujo gênio maior continua sendo Borges.
Em Calvino, podemos pinçar O Castelo dos Destinos Cruzados e Se numa Noite de Inverno um Viajante como dois romances onde se percebe bem o formalismo e a metanarrativa. O enredo d’O Castelo dos Destinos Cruzados é determinado por seqüências de cartas de tarô que o narrador tenta interpretar não como prospecção, como futuro, mas como retrospecção, passado, isto é, história. O próprio autor, no prefácio, caracterizou o livro como uma “machina narrativa combinatoria”, liberando-o do esforço abstrato de encadear eventos com base só na cuca (o cínico fica em dúvida se Calvino interferiu na disposição aleatória do tarô). Durante a década de 1960 e começos da seguinte, a aposta no formalismo foi tão grande que Calvino integrou o Oulipo, uma patota baseada em Paris cujo grude era a escrita a partir da observância estrita de regras: os exemplos mais célebres dessa literatura emperrada são La Disparition de Georges Pérec, romance sem nenhuma única letra é, e Exercises de style de Raymond Queneau, onde a mesma historinha banal é repetida 99 vezes, só se variando a técnica narrativa. Do seu canto metanarrativo, Se numa Noite de Inverno um Viajante é um jogo de livros-espelhos: livros dentro de livros, paródias de livros, livros sobre a leitura, eternas interrupções de livros (a começar pelo próprio título do romance-raiz) – um livro sobre livros que se referem a livros que nunca terminamos de ler.
Há fusão de formalismo e metanarrativs nos contos conhecidos como cosmicômicas que Calvino começou a publicar na primeira metade da década de 1960. Trata-se na verdade da designação genérica para histórias reunidas em diversos livros, dos quais os mais importantes são As Cosmicômicas e T Zero. Aqui na Floresta Tropical, conhecendo as dificuldades mentais da freguesia, a Companhia das Letras publicou o trambolho como Todas as Cosmicômicas, que você pode comprar no Beco das Letras, que, pela segunda propaganda neste texto, agora de forma explícita, espero me dar um chocolate extra pro meu expresso duplo habitual (você também pode lalar o livro do Beco das Letras, modalidade aquisitiva, porém, que não me rende chocolate extra, presumo).
A quase totalidade das cosmicômicas abre com uma constatação estritamente científica sobre biologia ou cosmologia para tratá-los como reminiscências do narrador em clave cotidiana. Assim o velho Qfwfq vai relembrar o surgimento dos dinossauros, dos cristais, do Sol, da Lua como peripécias da juventude: quando emergem os dinossauros, um tio caturra mas assanhadinho prefere ficar na água passando cantada nas novinhas com pernas saurópodes à mostra; em Jogos sem Fim, os elementos químicos são formados por partidas de gude com átomos de hidrogênio entre Qfwfq e seu rival palindrômico Pfwfp. Não dá para falar que se trata de narrativa mítica, porque a ciência nos está dada (a despeito da cloroquina) enquanto o mito é uma forma de explicação cósmica pré-científica. É muito mais que isso. Cosmicômicas é uma singular síntese de ficção científica, fantasia, humor absurdo, sátira social, poesia – em certo sentido se aproxima da new wave de J. G. Ballard. Considerando o convencionalismo TFP da ficção científica, o gênero que deveria explorar as fronteiras do cérebro, a esculhambação de Calvino é fascinante e imperiosa. E, mesmo assim, alguns contos pressupõem para a plena fruição, certos conhecimentos científicos como naquele que trata do cabo-de-guerra dum casal sobre pureza e impureza nos cristais. O vezo cientificista de Calvino, que vinha já da família (pai agrônomo, mãe botânica, irmão geólogo), só pode ter sido aguçado pela experimentação formalista. A escolha da temática científica, ainda mais os macroprocessos cósmicos, não pode ter sido casual: permitia derivar a narrativa a partir de premissas – o humor vem justamente do choque entre as premissas científicas e as derivações antropomorfizadas.
Em certo sentido, a narrativa vem predestinada nas cosmicômicas. Esse é um nível que talvez não seja tão aparente à primeira vista. Enquanto a metanarrativa é mais explícita – geralmente pela paródia, mais raramente pela emulação doutros meios narrativos (n’A Origem dos Pássaros boa parte da narrativa não aparece como pura ação, mas como descrição duma história-em-quadrinhos) – os elementos formalistas são mais atenuados exceto num ou outro conto. Em Priscilla, Qfwfq recorda suas experiências românticas, inclusive na fase da reprodução assexuada – o conto acaba reduzindo-se a uma reiteração retórica de amar a si amando o outro e vice-versa e versa-vice. Em T0 tudo se baseia nas múltiplas possibilidades que o caçador pondera sobre as trajetórias convergentes ou não duma flecha e dum leão. Esse dobrar e desdobrar das premissas narrativas produz às vezes origâmis, às vezes um fluxo de consciência neurótico à Thomas Bernhard, às vezes só tédio. Nem sempre a misturança das cosmicômicas funciona – de fato, a qualidade dos contos é muito irregular, o que talvez seja o preço a se pagar pelo experimento. Mas vale o ingresso.
[1] Exceto os bruzundangas que continuam como capitão-do-mato Cobra Norato a mando do Coronel José Olímpio Prestes atrás do Brasilprofundo, que fica logo depois do Eldorado, contornando a Atlântida e embicando à esquerda na casa da mula-sem-cabeça.
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