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Arco-íris Preto no Branco

  • Foto do escritor: Álvaro Figueiró
    Álvaro Figueiró
  • 22 de set. de 2023
  • 7 min de leitura


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Minha mais recente mania é recolher sobras de sabonete e moldar jóias venusianas. Além de prazeres visuais, produz odores complexos. P. ex., ao se misturar o sabonete de enxofre com o Lux, você triplica as sensações, porque o ovo podre ganha o frescor da lavanda e a lavanda ganha a nhaca do ovo podre. São experimentos drásticos, quase tão bizarros quanto Dove com banana que a perfumaria da minha mochila já (em)bolou. Agorinha mesmo estou matutando sobre os efeitos hipotéticos do combo sabonete de enxofre com o Phebo, que deveria se chamar Phedo (não só cheira a cecê, mas tem cor de asa de barata cascuda). Ainda assim, são experimentos menos perigosos que freqüentar banheiro na Repartição. Dia desses, não bastasse ter um cagão cagalhão caga-mal e o bostalhão não dar descarga, haviam acabado de besuntar o banheiro com Pinho Bril. Foi abrir a porta e ser estrangulado por uma jibóia de cocô: caganeira de gambá com pungência de Pinho Bril, um verdadeiro mata-leão nasal. Quão merdel é a vida do barnabé!... Isso foi quase tão rũi quanto planilha no Word. Ou meta de 10.000% em ano e meio.

Enfim, hoje quero só falar de cores, não de cocô – por mais que o cocô também tenha lá seus arcocôs-íris.

Então, tava também no banheiro. O meu, onde, mesmo caga-mal, dou descarga. No banho, ao fundir um naco rosa com um naco roxo, o mix rosa–roxo me cafungou sacanagem tamanha que até me desconcentrei da bronha pós-repartição (“vespertina” classificava um amigo da Oxford Fluminense na liturgia tríplice da punheta). Rosa–roxo é roça-roça entre vulva e glande! Minha mão é rosa, mas nem tanto... Menos sacaninha, rosa–roxo propõe algo orgânico e zoado. É fácil entender: músculo e veias. Informe e grandalhão, vira monstro de ficção científica, hipertrofia de tecidos sencientes, fase final de Flashback, cena final de Akira. O mal-estar dos quadros de Francis Bacon se produz em parte pelo emprego sistemático de vermelho com manchas de branco e marrom: fraturas expostas, buchos rasgados, períneos rotos, merda sanguinolenta e, pior, tudo apenas sugerido.

Nossa própria memória sentimental é afetada por combinações de cores. Algumas foram enfiadas pela tradição, outras pelo márquetim. Vermelho, verde e dourado, tão natalinos que olho para a bandeira portuguesa e lembro menos do país que do Papai Noel. Abóbora, preto e roxo significam ralouím, já quase tão brasileiro quanto a pitsa de suxi. Branco, verde e filetes vermelhos são as cores do pavilhão por se coser do Reino Unido da Subúrbia e Favelônia. Remetem não só aos saquinhos de doce de Cosme e Damião, mas também, no subconsciente, a algum time de várzea que vimos perder no Estádio Ítalo del Cima ao lado do nosso pai, meia-dúzia de gatos-pingados e um ou outro bode.

Existem, porém, combinações cujo sentido é personalíssimo. Até hoje me fascina a mistura entre anil e verde-musgo – a micha azulzinha é das minhas flores favoritas. Mais do que mero cacho de uva, anil–verde-musgo é o raiar do dia, 1987: um frízer do Skylab onde assomava um cacho de uva contra o fundo branco descascando e um enfeite de sisal colorido imitando cacho de uva no apertamento, logo acima do bar. O cacho de sisal é só uma lembrança, mas o cacho do frízer até hoje vejo como uma dessas belezas improváveis e, portanto, raras, únicas até, belezas que você não sabe se vai conseguir algum dia transmitir para alguém (meu travesseiro espera há quase vinte anos quem talvez deveria ouvir...).

Uma época pode definir-se por estilemas, que, muitas vezes, são dados por combinações cromáticas. O arnuvô ficou famoso por ousadias dentro da paleta ocidental: amarelo e branco, amarelo e violeta, azul e verde (não à toa o pavão foi alçado a bicho-emblema). No icônico cartaz de Tropon por Van de Velde, de 1898, para além da sobreposição entre dois tipos de abstração radical, geométrica e orgânica, a composição insiste em choques entre tons de amarelo–laranja e rosa–roxo – o preto e branco, os opostos por excelência, pintam tão indistintos quanto as gêmeas Alice e Alícia. Combinações como essas do cartaz só voltariam em fins da década de 1960 quando a psicodelia recuperou tanta coisa do arnuvô: não só a tipografia gorducha e malemolente, mas a própria predileção por paletas estapafúrdias como rosa, laranja e verde-limão. A diferença é que o arnuvô só dispunha de absinto.

Movimentos posteriores ao arnuvô se contentarão com o contraste elementar preto-branco e uma nota de cor. A Bauhaus insistirá nas cores primárias subtrativas – vermelho, azul e amarelo. Nos seus piores momentos, como no mobiliário de Rietveld, lembra paus-de-arara para jardim-escola, cadeira-de-dragão bai Mondrian. É de se imaginar o que a escola de Weimar/Dessau teria bolado na linha brinquedo erótico – adianto, um cintaralho de seção quadrada de dez centímetros de lado, longitudinalmente pintado de preto, branco, azul, vermelho e amarelo em escalas racionais de prazer decimetrais (grande forrobodó entre Gropius, Mies van der Rohe, Klee e Moholy-Nagy sobre a ordem racional das cores, mas terminou com Gropius passando o módulo nas esposas de geral). As composições mais bem sucedidas na estética bauhasiana, vamos convir, se restringem a preto, branco e vermelho, mais precisamente fundo branco, algum preto e realces vermelhos (como a Catarina Stephanopoulos fez no Lesma no Saleiro). O trio preto-branco-vermelho acabou integrando também a gramática fascista – naziflamenguismo incluso – não só por razões históricas (eram as cores prussianas, logo da Alemanha guilhermina, contra a tricolor liberal), mas também pelo puro esteticismo (Sontag, “Fascinating Fascism” etcétera, etcétera). Preto e branco é o mais brutal dos contrastes com a mais berrante das cores e, não à toa, o nazismo inverteu a cor do fundo do branco para o vermelho (o montão-de-vermelho–toquinho-de-amarelo comunista também pretendia despertar nosso bufos taurinos contra El Sistema Matador; o azul liberal só quer apelar à nossa bunda-molice de feliz proprietário de casa, carro e família).

O ardecô, tão próximo do modernismo porém menos viajandão (seus cintaralhos eram aerodinâmicos), às vezes encorpou o branco em creme e, como regra, substituía o realce vermelho bauhausiano, sobretudo, pelo dourado.[1] Às vezes, o realce é todo-cheguei (p. ex., as portarias dos edifícios Itaí e Itaoca em Copacabana com matizes de verde-piscina) ou mesmo policromia, geralmente em interiores monumentais (saguões, salão de baile, clubes). Preto e dourado também é um estilema cromático ardecô, mais limitado ao ornamento. Ainda assim, alguns prédios embarcaram na extravagância preta-dourada, como o American Radiator Building em Nova York. Não conheço prédio assim no Rio, que é uma das cidades mais ardecôs do mundo, embora a combinação seja bastante comum, aliás até hoje, na serralheria. O clima explica.

Não raro é difícil saber se certas combinações se explicam por questões técnicas e econômicas. A Baixa Idade Média amava azul, a cor mariana, e realces dourados, mas não esbanjou tanto quanto gostaria porque os pigmentos eram caros bagarai – ouro porque ouro, azul porque azurita e lápis-lazúli vindos dos canfundós-da-caixa-prego nos beleléus do Putaquepariustão. Les Très Riches Heures du Duc de Berry, clientela assídua dos livros didáticos, lambuzavam sim vastos céus azuis, bem, porque eram do Duque de Berry – funciona como cordãozão de São Jorge de ouro de bicheiro, devocional também mas pergaminho e baixo-medieval. O maço de Lucky Strike deixou de ser verde e dourado durante a Segunda Guerra porque o exército americano catou outros usos para cromo e cobre. Por motivos que ignoro, em fins da década de 1970 até começos da de 1990, a indústria gráfica passou a imprimir muita coisa, num bege alaranjado fosco. Texto nessa cor, chute de data certeiro. Menos que estilo matreiro, palpito que as razões estavam no custo das tintas.

Por vezes, ocorre a transposição de estilemas restritos. A década de 1980 ora e vez aparece aos meus olhos em fundo preto e linhas verde-garrafa. A referência são as telas de fósforo dos computadores. Aliás, sou bastante sensível à paleta dos anos 80. Creio que seja o período com mais combinações cromáticas. Afinal, foi quando me apresentaram às radiações da luz visível. Só a força da memória me impede de recordar o pôr-do-sol sempre como pura estilização, persiana de degradês duros de violeta e laranja. A década de 80 também me aparece em bege, porque havia fetiche por eletroeletrônico bege. Qualquer coisa com mais de dois transistores, tinha 50% de chance de ser pintada de bege. Até as câmeras de vigilância eram beges. Quem duvidar, visite a Santa Casa de Misericórdia e admire o empoeirado futuro Vigitronic. Existia também outro futuro, futuro bem longínquo, futuro 2019, futuro preto, azul e violeta, o futuro saiberpanque. Videogueime, coisa de criança (o futuro 2019!), nunca era bege. Mas o futuro imediato, comprável no crediário e no consórcio pelo papai e pela mamãe, era bege: ventilador bege, moedor de carne bege, geladeira bege, liquidificador bege, fogão bege, a linha branca se chamaria melhor linha bege. Aqui e ali, um toque de preto, branco e cinza metálico, porque bege sobre bege é ilegível. (Outra vez, como fiz para a indústria editoral, é de se perguntar se não havia uma explicação econômica, economicista até, para o frissom bege – não sou marxista; só sou vulgar mermo.) Em termos de luminância e saturação, privilegiavam-se os tons pastéis. Na ressaca da década de 1980 que foram os começos da seguinte, cheirou-se um teco mais e os pastéis brilharam em fluorescência: rosa shocking, ou melhor, rosa-choque colore 1990, 1991, 1992...

Agorinha, no Buraco do Lume, vi um rapaz com camisa de listras verticais rosas, pretas e brancas. É combinação excêntrica e familiar, um Bauhaus que fica de recuperação em matemática. A primeira lembrança é camisa de futebol, mas isso é menos reflexão que reflexo. Rosa, preto e branco é mais coisa, muito mais coisa, coisa velha mas não antiga. O quê? Me deixa pensar... Algum livro didático dos anos 1960? Livro infantil? Papel de pipa? Jornal dos Esportes? Açougue? Capa do Jefferson Airplane? Um sorvete-napolitano fracassado? Embalagem de doce? (O pirulito Zorro era bauhausiano, até no formato.) Sem saber, sei o que significa rosa-preto-branco, isto é, que é significante com significado. Mas a simbologia das cores é sempre arriscada, até quando calculada (que digam os mintões esquemas Gilbert e Linati).[2]

Ainda assim...

Vermelho-tijolo e preto-fuligem – Revolução Industrial.

Rosa-tijolo e branco – Segundo Reinado.

Muito preto, muito roxo, algum rosa, algum laranja – Saiberpanque anoitentista.

Vermelho, dédalos dourados, toques de preto – China.

Cone lilás e melequeira verde – monstro ferido de filme bê.

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Caçar padrões é como recolher sobras de sabonete, classificar cheiros, bronha, pintura, arquitetura, lembrar de flores, medievalística, zanzar pelo Centro, discutir Ulisses, escrever

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passa

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tempos

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Rosapretoebranco....................................................




[1] Quando se usava o vermelho, geralmente em socos, portadas e ombreiras, tratava-se de pedra, cuja cor é, por óbvio, menos coesa e berrante. Um exemplo carioca que me ocorre agora é o Edifício Sulacap, na Rua da Alfândega.

[2] Joyce quis fazer crer que, no primeiro capítulo, as cores dominantes são branco e dourado. De fato, já nos primeiros parágrafos, os dentes de Buck Mulligan são descritos assim (“his even white teeth glistening here and there with gold points. Chrysostomos.”). Contudo, o capítulo abunda noutras cores, inclusive a primeira menção diegética a uma delas é ao snotgreen. Na minha memória, o verde ficou mais presente que o branco e o dourado. Verde é o mar, verde é o vômito da mãe moribunda, verde é a pedra na cigarreira cinza do inglês Haines (entenda-se a Irlanda nas mãos inglesas, senhora dos mares). Moral: não acredite no autor!


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