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Space Invaders, Versão Alfa, Meio bite

  • Foto do escritor: Álvaro Figueiró
    Álvaro Figueiró
  • 15 de mai. de 2021
  • 7 min de leitura

Atualizado: 16 de mai. de 2021


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Como nos ensina o coach ou o pastor ou o psicólogo ou a caneca de café ou o otimista do grupo de Whatsapp, você tem de monetizar os teus talentos. O talento de George Adamski era fotografar disco-voador e fazer camaradagem com venusiano. Em 1953 publicou o primeiríssimo bestesséler da ufologia, Flying Saucers Have Landed. A primeira tiragem saiu em setembro e em dezembro já estava na sexta reimpressão. Isso é que passar o pires voador. Flying Saucers Have Landed é a culminância nas virtudes ufoatrativas de Adamski, uma Visconde de Mauá bípede. Freqüentador dos meios ocultistas da Califórnia, talvez Adamski achasse a concorrência em sintonizar espíritos, almas penadas, deuses esquecidos e planos astrais algo muito complicado e assim se voltou para os tangíveis discos-voadores. E nisso teve tanto sucesso que, em 1947, avistou uma revoada de 184 óvnis, fora os não-pagantes. Alegou ter tirado fotografias. Jornalista não encontrou. Como tanta gente levada de roldão por um deslize, por uma bravata, por uma impostura, por um desejo de fama ou mesmo de atenção, Adamski persistiu e elaborou. Num crescendo documental, apresentou fotografias dos discos-voadores, relatos de contatos imediatos, moldes de sapato venusiano, em livro posterior até plantas da espaçonave na qual pegou carona.

Os começos da década de 1950 e a década de 1990 foram a alta temporada do turismo alienígena com destino à Terra, o Planeta Côte d’Azur. Hoje quando, exceto as faixas mais indigentes, a Humanidade toda carrega no bolso uma câmera digital de alta resolução, os é-tês ficaram assustados com o assédio paparásico e foram buscar resortes menos craudeados. Ademais nesta Era de Aquário a paranormalidade em que geral anda fissurado é a política. Os tempos, pra variar, mudaram. Na década de 1950, caçar disco-voador era escapismo aos incertos temores da Terceira Guerra Mundial; na década de 1990, saudade do mundo ordeiro onde era possível uma Terceira Guerra Mundial. O sucesso pioneiro de Flying Saucers Have Landed, portanto, não se deve a nenhuma sofisticação narrativa, técnica, mitopoética – pelo contrário. Muito antes de Fox Mulder, as pessoas já queriam acreditar.

No mundo mágico da lenga-lenga, existem incontáveis truques para facilitar a digestão das amanitas e dos duendes que as infestam (p. ex., manipular crenças já estabelecidas, como a macumba veterotestamentária da Igreja Universal). Flying Saucers Have Landed celebrou o bem-sucedido casamento não só infantil, mas também incestuoso entre a ufologia e o misticismo. Compre um, leve dois. A parte mística é a primeira, escrita pelo inglês Desmond Leslie. É um copão de destilado de astralidade envelhecido em barris de ocultismo para derrubar os céticos mais abstêmios. Alguns títulos da bibliografia darão idéia dessa primeira parte: The Lost Continent of Mu, The Fairy Faith in Celtic Countries, The Popul Vuh, The Chakkras, The Problem of Atlantis, The Pyramids and Stonehenge. Nem Indiana Jones se aventurou a tanta erudição.[1] Trêbado de mistérios da antiguidade, fontes desaparecidas, deboches contra a prepotência da ciência, elencos em textos antigos, documentos obscuros, o leitor está faminto para degustar o tira-gosto, o barquete de maionese sideral que é a historiografia do disco-voador. Para quem acredita em chacra e fada, o disco-voador tem uma corporalidade até vulgar, de pátio de loja de carro usado. Não à toa, por contraste, o relato de Adamski adquire certo candor, afinal apenas se limita a explicar como fotografou diversos ufos no quintal de casa durante as folgas e como trocou umas idéias mímico-telepáticas com um venusiano de passagem, nórdico e andrógino, no meio do deserto californiano. Bastante razoável, confesso.

O que particularmente me espanta não é ter gente que tomasse o relato de Adamski à vera. A nossa perspicácia lógica é, sem muletas analíticas, muito mixa: basta um supercombo de negações para tiltar o cérebro mais cartesiano. É fácil, portanto, desconsiderar os maiores descarrilhamentos narrativos, sobretudo quando nossa fé só quer ouvir reiterações da estação de chegada, como boa historinha de ninar. É possível estar retorcido em meio às ferragens e insistir que o trem está em movimento... O que me assombrosa é como tanta gente pôde ter ignorado que certas fotografias de Adamski eram forjadas. Admito algumas tão vagas, meros rabiscos luminosos, que pela abstração até seriam engolíveis para quem insistisse nas virtudes ufoatrativas de Adamski, mas outras, as mais célebres, em close, lembram uma cúpula de luminária. Nessas fotos é até difícil explicar quais elementos não fazem o disco-voador parecer senão ridículo: o reflexo que supõe uma diminuta superfície esmaltada, as proporções inadequadas nos ângulos, o anel no topo obviamente para pender luminária – não digo nada sobre o próprio formato do disco-voador, que tinha afinidade estranha com o desaine terráqueo dos anos 50. Quando vi essas fotos aos treze, quatorze anos, intriguei-me como poderiam ter sido levadas a sério. Até agora não sei direito. E sequer se pode atribuir uma ignorância do meio, pois a fotografia já existia há mais dum século.

O fato é que não faltam embustes cujo sucesso choca. No contexto mais ingênuo da Primeira Guerra Mundial, em 1917 duas meninas inglesas mostraram fotos junto a serelepes fadinhas e dançantes duendes. Até um cegueta percebe que são figuras coladas, não muito melhores do que aquelas que se espalham derredor bolo de festa infantil. O engodo das fadas de Cottingley é de constranger o gênero todo dos primatas, quiçá fulminando todo o filo dos cordados: ninguém menos que Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, acreditou nos serelelepes dançantes elementaizinhos de cola, papel e cartolina. Durante décadas, teve gente discutindo as fadafotos. Foda.

Arrentequesomostudoescolado pode até erguer um sobrobolho (cuidado, não o do monóculo!), muxoxar, balançar a cabeça e bebericar o chá, mas temos de nos fazer três perguntas, até porque somos primatas ou, pelo menos, cordados:

1) qual o limiar do verossímil?

2) como explicar a variação desses limiares do verossímil numa dada sociedade?

3) quais os limiares do verossímil nos diversos meios (boato, narrativa, fotografia, vídeo etcétera)?

Povos neolíticos entram em pânico perante fotografias de si e os parisinos finisseculares saíram fugindo quando viram se aproximar o trem luminargênteo dos Lumière. Para nós um retrato e um filme em preto-e-branco é só um pouco mais real que um coelhinho de sombra. Não imagino, contudo, qual seria minha reação diante dum Figueiró holográfico – talvez ajoelhar e implorar pra papai-do-céu me livrar desse Döppelgänger cramunhão. Não é preciso esperar um encontro casual com as mais avançadas tecnologias venusianas para se embasbacar com a nossa própria lesice. Um dos maiores sustos que tomei na vida foi num museu trombando, absolutamente despreparado, com um enorme mastim, olhos vidrados – e empalhado. Essa foi uma ilusão breve e o susto, mero instinto (fosse cachorro de verdade, estaria morto, pois calei o grito e aleijei a fuga). Há ilusões que sustentamos por muito tempo ou, ao menos, esquecemos de que as toleramos como simulacros. Vendo reprises televisivas da nossa infância choca a péssima qualidade do áudio e som. As fotografias de revistas da década de 1960 e 1970 têm matizes que parecem só ter existido naquela época. Os efeitos especiais que se tomam como realistas depois aparecem sub-amadorescos (curiosamente, a animatrônica e a computação gráfica comedida de começos da década de 1990 parece-me muito superior a boa parte do que se pretende por efeito especial até hoje). E, contudo, somente quando transpomos um intervalo de tempo, quando nos afastamos do verossímil duma época, é que nos apercebemos quão artificial era a reprodução, quão fajuto era o cromaqui, que a rua no filme era estúdio, que a noite soturna estava cheia de holofotes e filtros, que a câmera deixava uma rastro de luz ao se mover, que o áudio era incompreensível, que o Super-Homem estava preso por uma corda, que os violinos soavam como gato escaldado no cio, que o real tem um verniz de época – percebemos enfim a reprodução literalmente como puro artefato, nalguns casos, como as fotografias, vemos até uma deliberação nos tons, quase tintas, pincéis e paleta. Mesmo, na sincronia, demonstramos estranhas tolerâncias para com as limitações de cada meio: a tela do cinema, a tela da tevê e a tela do celular, cada qual tem suas limitações admitidas. Uma projeção pixelada comprometeria a apreciação dum filme no cinema. Por outro lado, a taxa de projeção convencional no cinema, a 24 quadros por segundo produz uma imagem que só nos aparece veraz porque ainda não estamos acostumados com as taxas superiores (a televisão projeta ligeiramente acima disso). Quando padrões como o Showscan, a 60 quadros, se impuserem, os filmes atuais terão movimentos tão desengonçados quanto o das multidões andando no cinematógrafo.

A fenomenologia histórica é uma das arqueologias mais desesperadoras. Os dois acordes de sétima encadeados que abrem a primeira Gymnopédie de Satie, hoje degradada àquela massagem auricular na qual mixam até a chuva, causaram frissom pelo inesperado – o ouvido de 1888 só é recuperável pelo encéfalo, jamais pela epiderme. Poderíamos dizer o mesmo d’Uma Piada Musical, de Mozart, que só aqui e ali produz gargalhada, pois quase todas as barbeiragens composicionais, que, no classicismo apenas os mais ineptos cometeriam, há muito foram incorporadas como procedimentos rotineiros (p. ex., fraseado em número ímpar de compassos). Como então recuperar como outros tempos lidavam com os simulacros? Até onde ia a susceptibilidade a tomar o artefato como o real? (Não entro nos simulacros que envolvem uma orquestração sinfônica dos sentidos, como, p. ex., nas sessões mediúnicas).

Quando pintores renascentistas representavam figuras bíblicas vestidas como europeus renascentistas em meio a prédios renascentistas, alguém tinha a percepção de que se tratava dum simples artifício? Quando se pintavam vistas citadinas onde cada prédio tem um ponto de fuga próprio e as dimensões variam fora das regras perspectivas, os medievais supunham estar diante duma proeza hiper-realista ou apenas duma convenção, da mesma forma como vemos as criancinhas pintadas sob solzinhos ridentes nos muros das escolas? Uma história da fotomontagem e da recepção das contrafações teria algo a nos ensinar...

Nestes tempos de fake news e deep fake – novos nomes para manipulações tão velhas quanto cagar pra baixo – entender os limites do verossímil, as causas de suas oscilações, suas correlações com as mídias disponíveis, o nível técnico dos simulacros é entender até onde afinal podemos ser tapeados de maneira honesta. Isto é, para os que não se alistaram na quinta-coluna da vontade. Infelizmente vivemos uma nova era da fé – e, logo, do rito e da crença. Para certas coisas, Adamski nem precisaria de fotografia e livro para ludibriar geral. Bastaria guache, grude, giz-de-cera, tesoura sem ponta, um solzinho rindo e uma frase de coach.


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[1] Antes que se tome Leslie como um charlatão qualquer, é preciso advertir que se tratava dum charlatão especial. Parente próximo de Winston Churchill, inventou uma máquina que funcionava de verdade, nada menos que a primeira mesa de mixagem multicanal.

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