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O Real Gabinete como Bolo de Festa

  • Foto do escritor: Álvaro Figueiró
    Álvaro Figueiró
  • 20 de jan. de 2022
  • 6 min de leitura

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Sou constantemente vigiado, espionado, estalqueado. Por toda a parte, indícios de que bisbilhotam minha vida. O Pinterest vive sugerindo-me imagens de briófitas, móveis arnuvô, estampas japonesas. Isso tudo faz sentido e demonstra o grandirmanesco poder das modernas tecnoxeretagens. Mas como explicar edículas com churrasqueira e Netflix na cama? Entre as pinacotecas que não busquei, mas me interessaram está a de bolos. Há algumas obras de confeitaria que – glutão e ansioso, jamais pensei pudesse dizer isto – me dão o espírito contemplativo de briófitas, móveis arnuvô e estampas japonesas. Golfinhos saltam de glacês azuis-marinhos salpicando gordas gotas douradas. Ursinhos tímidos viajam pelo céu estrelado dentro da cesta de biscoitos-palitos. Explosões whistlerianas de sacarose colorida lambuzam bordas. Uma das coisas mais lindas são os bolos-ilhas, artísticos confeitos com gelatina turquesa, Polinésia comestível. Esses bolos-ilhas, caráculis, são duca pacas, ô caralha!

Recordando minha infância, nada perrengosa, quando vejo tais lordismos pergunto-me se o brasileiro não ficou fresco antes de ficar rico. O ápice da confeitaria em 1990 era, na festa do irmão caçula, um bolo com esquemático Mickey de ameixa passa e de glacê branco. No meu próprio aniversário de três aninhos, em 1987, a foto mostra-me sorridente com camisa do América atrás dum campo de futebol comestível onde bonequinhos batem bola. Os primos roceiros, nessas ocasiões anuais, serviam a mais pobretona torta salgada, as uvas passas do escudo alvinegro emergindo de procelosa maionese. Tudo retangular. Tema: futebol ou Disney ou futebol. Três garrafas de Coca-Cola, uma de guaraná (em Seropédica, o Simba monopolizava), dúzia de brigadeiro, meia-dúzia de cajuzinho e de beijinho-de-coco (o cravo, luxo que se cuspia fora), punhado de balas-de-coco e todo mundo estava feliz, até as cáries. Às vezes, tinha aquela bomba biológica que estouravam para a criançada se agredir atrás de bala Juquinha ou Banda enquanto o cuspe de quem encheu a bexiga ia assentar, junto com talco, em granizo sobre a mesa do bolo. Era tão eficiente quanto vacina. Medo de mãe naquela época eram os germes e o sereno; aerosol de catarro e pancadaria, oquei.

Recentemente, graças ao Pinterest, descobri algo muito mais decadente do que retirar os camartelos para pôr saco de confeitar na mão dos Fídias, Canovas e Aleijadinhos hodiernos. Pior que erguer um Davi de glacê, é o Davi que não dá pra comer – claro que o Davi original tampouco dá pra comer, mas ele não te induz a gulas de sobremesa, a não ser que você não tenha almoçado direito. Enfim, coma-se ou não um bloco de mármore de cinco metros, o fato é que inventaram um bolo que não é pra comer. Nesta Era da Fajutice ninguém mais emprega adjetivos como “cenográfico”, “fajuto”, “postiço”, “impostor”, “falso”, então o tal do bolo cenográfico fajuto postiço impostor falso é bolo fake. Confesso que de prima não entendi o que significaria bolo fake – palpitei mostruário para confeitarias. Taí um simulacro admissível como expediente de o confeiteiro pavonear suas habilidades escultórias sem riscos de encalhe. Mas não, a fajutice já exorbitou do racional. O bolo fake é um bolo bonitão, todo papagaiado, ave-do-paraisado até, mas que ninguém come, nem os cupins, nem as formigas, nem as baratas, porque de isopor e eva. Só faltam acrescentar à receita césio-137 cristalizado ou crispes de arsênico. Agora existe o bolo de corte, que é o que você realmente come e pode ser simplão, inclusive retangular e com Mickey sofrendo de sífilis terminal com cancros de ameixa passa e pus de glacê branco.

Quando o bolo ostentatório e o bolo de corte eram a mesma entidade, calhava de ter alguma firula ornamental que inquietava certos comensais – “É pra comer mesmo isso aqui, ó?” – enquanto alguém mais afoito (também conhecido como eu) já tinha trincado os dentes na rosa de bisqüi suposta glacê ou na pérola de plástico presumida jujuba (como sempre detestei jujuba, era um alívio morder plástico). Apesar da lerdeza em jiboiar o conceito de bolo fake, não me tardou muito para entender as causas dessa impostura: o Instagram. As pessoas não se contentam mais com a festa em si, que, afinal, já é um simulacro de alegria: tem decoração, tem guloseimas, tem visita, tem cantoria coral, tem palmas. Em meio a essa hipocrisia toda, elas precisam falsificar até a única coisa na festa que concorre em importância com o celebrante, isso quanto não o supera: o bolo. O bolo que, por assim dizer, era a cereja do bolo que era a festa tornou-se, ele todo, tão fajuto quanto a cereja, que, no Brasil ao menos – tchantchantchã! –, sempre se fez de chuchu. Pare, leitor, e considere a perspectiva Fermento Royal na última frase. (Entrementes componho um raicai pro chuchu em flor.)

Em toda sociedade, presente, passada e futura (além de historiador e sociólogo também sou cartomante), tem gente que procura mostrar-se mais bela, mais inteligente, mais poderosa, mais rica, em suma mais fodona do que realmente é. Uns passam maquiagem, outros colocam cocares de penas exóticas, uns pintam carpintaria como mármores, outros enchem a casa de ouropéis, uns seguem as modas acadêmicas, outros falam a nova gíria da rua, uns bravateiam com palavras, outros bravateiam com grifes, uns esculhambam os inferiores, outros se amigucham com os superiores. Há não muito tempo os papéis sociais e as hierarquias eram bem rígidos – três filhos de boa família em Patos de Minas, o primeiro é advogado, o segundo médico e o terceiro padre. O liberalismo porra-louca triunfou – que bom! – e hoje você faz da tua vida o que você quer, ou soando menos comercial de Free (baixos teores), você faz da tua vida aquilo que você consegue fazer dela. É prospecto tão aliciante quanto a beira dum precipício vista em se plantando bananeira. Para uma minoria crescente, o horror da consciência individual resolve-se no identitarismo. Minha vida agora faz sentido depois que descobri que 2,3% do meu DNA vem do Mianmar, vou até esticar o pescoço com argolas, escrever o nome em caracteres birmanos. Para uma maioria, crescente também, o horror da consciência individual resolve-se no mais dérmico egocentrismo – todo extroversão, nula introspecção. Existir vira colecionismo de instantes para que o cartório da fé pública não espeça a certidão de óbito após dois dias sem atualização no Insta. A fixação pela boa foto nada tem a ver com o medo de esquecer (afinal amnésia e despersonalização são no fundo a mesma coisa – ensina-nos qualquer filme de ficção científica). Pelo contrário, a maior parte das pessoas demonstra grande desinteresse pela memória, inclusive de si. Nessa toada já decaíram outras formas mais saudáveis de solipsismo e de herborização do quotidiano, como um diário íntimo; mesmo do excepcional que, cada qual conforme seu tino, tentávamos fixar por poemas, músicas, aquarelas, metáforas, suvenires ou simplesmente vivência atenta.

O bolo fake não cria, como um palacete novo-rico, ilusões para os desavisados; o bolo fake não intensifica pelo falso fausto a memória dum evento excepcional; ele só serve para tornar mais vistoso o porrilhão de fotos que geral vai tirar da festa a ser esquecida no meio da semana. Não duvido de que o bolo fake tenha aparecido não para contribuir na representação social fajuta do celebrante, mas para não decepcionar os convidados privando-os da possibilidade de boas fotos, isso sim o que seria um demérito social do anfitrião.

Eu, que sou bastante egocêntrico, fico chocado quão vaidoso o cidadão médio se tornou. Duas circunstâncias despertaram minha atenção para a egofotomania. Anos atrás, na Ilha Grande, uma cazaque juntou-se ao grupo que veraneava comigo. A turista centro-asiática, sem demonstrar nenhum pendor alpinista ou mesmo atlético, empoleirava-se em alturas de dar vertigem a condor, tudo por uma boa sélfi. Quando me pediu para fotografá-la, saiu trepando num pedregulho tão everéstico que eu, pelo visor, na verdade, recolhia evidências para laudo cadavérico. Francamente não sei como não morreu ali e, tragédia pior, destruiu minha vistoria anual ao mar.

Um local que conheci como biblioteca e foi gurmetizado em bolo fake é o Real Gabinete Português de Leitura. Comecei a freqüentá-lo em 2005 e durante muito tempo, só costumava haver três leitores, a saber:

1) um coroa pançudo que fazia do palito-de-dente lenho ulisseu ponderando problemas de xadrez diante dum tabuleiro portátil;

2) um leitor variável;

3) e eu.

Turista, quando muito, eram dois casais ao longo de todo o dia – e, mesmo sussurrantes, incomodavam. Hoje, em qualquer quarta-feira, o salão de leitura é menos relaxante que o saguão da Central, tomado por uma turba que conversa, grita, assovia, gargalha, cacareja e, claro, fotografa. Leitor é que hoje não tem mais quase nenhum. Leitor no Real Gabinete ficou igual a geraldino no Maracanã. Mais duma vez quase tropecei no fulano agachado para fotografar a namorada, toda caras e bocas, torso torto, como se estivesse num ensaio da Vogue diante do Caribe e não diante do busto do Camões caolho. O salão de leitura do Real Gabinete realmente é impressionante, mas certos lugares já foram tão fotografados que é perda de tempo insistir em mais um registro: o Google poderá refrescar bem tuas memórias. Mas as pessoas não metralham cliques no afã de registrar um detalhe arquitetônico, fixar uma referência para pesquisa posterior – o importante é a moldura para si. Pelo que colijo nos meus questionários semi-estruturados (método sociológico também conhecido como fofoca), a própria diretoria do Real Gabinete – mas não os funcionários – acha ótima a balbúrdia fotomaníaca por dar visibilidade à biblioteca – embora a visitação seja gratuita, logo é o mesmo tipo de popularidade de ser bolinado em transporte público. Uma importante instituição cultural carioca foi degradada a estúdio fotográfico. Quem fruía do espaço, já fugiu.

Qual a moral disso tudo?

Eu vi e exijo no próximo meu aniversário um bolo de navio pirata montado em cima dum bolo-ilha! Como não amar os piratas?! Onde vai ser a festa? No Real Gabinete. Se você não for convidado, não se chateie. Prometo postar no Instagram.

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