Música na Feira Livre (séculos XVIII-XIX)
- Álvaro Figueiró
- 22 de jan. de 2023
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Um raro texto do Dr. Jekyll em meio ao espólio literário do Sr. Hyde (com revisão parapsicológica por Stevenson)
O século XVIII marca uma etapa decisiva na história: emergem na Inglaterra as primeiras conjunções de técnicas, investimentos e trabalho que, sem hesitação, podemos caracterizar como capitalistas. Ao atrelar as fontes de energia química (carvão) a maquinismos, a Revolução Industrial catapultou as possibilidades de produção de mercadoria a patamares inimagináveis.[1] Embora até hoje tenha perdurado certa “aura” da arte infensa à sua reprodutibilidade técnica[2], é também no Setecentos que se observa com clareza a música ingressando nos mesmos circuitos mercantis de tecidos, colheres e ferramentas.
Por sua própria natureza, a música tardou mais que outras artes a atingir uma massa crítica no público consumidor capaz de fazer o valor de uso pender para o valor de mercado. Se o artista plástico pôde emancipar-se na Itália do Alto Renascimento graças à concorrência entre comitentes[3], se a difusão da imprensa permite escritores no século XVII viveram só de literatura, até o século XVIII não havia espaço de consumo público para a música como pura fruição estética, salvo raríssimas exceções (Veneza inaugura uma casa de ópera pública em 1637 e terá outras oito até fim do século).[4] A música sempre era acessória a uma função social precisa: liturgia, festa, celebração cívica, dança. Somente no restrito âmbito das aristocracias existia o consumo da música como prazer estético em si. Isso era possível, pois, entre a vasta criadagem dos palácios, todo nobre que se respeitasse mantinha ao seu dispor uma orquestra e um compositor. Como observou o sociólogo Norbert Elias, embora houvesse acentuadas hierarquias entre os músicos (como, aliás, em toda a sociedade do Antigo Regime), mesmo o mais talentoso compositor não passava dum serviçal, equiparável a um cozinheiro de mão-cheia.[5] E, da mesma forma que o patrão impõe o menu ao cozinheiro, era o patrão quem impunha o programa musical ao compositor. A carreira de Haydn é bastante ilustrativa. Ao ingressar como Vicekapelmeister da casa húngara de Esterháza, uma das mais nobres da Áustria, entre suas muitas tarefas, tinha de disciplinar os músicos, guardar as partituras, zelar pelos instrumentos e treinar os cantores.[6] Para o baryton, uma espécie de viola da gamba que nunca foi popular, Haydn compôs nada menos que 175 peças não por qualquer afinidade pelo instrumento, mas simplesmente porque seu amo o tocava.[7]
O acesso aos concertos de Haydn dependia de contatos com os nobres de Esterhaza, o que, em síntese, implicava no pertencimento à aristocracia. Com a ascensão da burguesia, fomentou-se nela a ambição de também acessar às formas musicais consumidas pela aristocracia, de preferência as mais aparatosas – sinfonias e óperas. Como uma orquestra exorbitava dos mais prósperos bolsos privados, o público burguês passou a organizar-se em sociedades de subscritores de concertos. Por meio de pagamento de anuidades, contratavam-se os músicos, alugava-se um espaço para a execução e, mais raramente, comissionava-se uma peça. É significativo que o sistema de subscrição tenha surgido pela primeira vez justamente na Inglaterra, a pátria do capitalismo, onde as pessoas também se cotizavam em sociedades acionárias na Bolsa de Valores. Embora o sistema de subscrição pudesse servir aos interesses de parte do público, ainda em fins do século XVIII não se havia consolidado a ponto de assegurar ao compositor a independência perante o patrono. Mozart tenta, por diversas vezes, romper com o mecenato aristocrático, bancando-se mediante subscrições, nunca com grandes sucessos financeiros. O caso de Beethoven pode ser tomado como paradigmático das transformações do Handwerkkünstler (artista artesão) em Künstlerkünstler (artista para artistas). A carta de ruptura com o Príncipe de Lichnow é eloqüentemente romântica (“Príncipes sempre haverá; Beethoven só haverá um”), porém o magro número de sinfonias é mais eloqüente, sobretudo quando comparado com seus dois predecessores do classicismo vienense: Beethoven compôs nove sinfonias; Mozart, 49; e Haydn, mais de cem. Menos que um esvaimento criativo, o que se percebe de Haydn a Beethoven é afirmação do controle autoral. Como observou o sociólogo da arte Arnold Hauser, cada sinfonia beethoviniana, sobretudo a partir da Heróica, é a afirmação poderosa e deliberada duma nova fase artística do compositor. Essa maior autonomização foi possível em começos do século XIX graças ao consumo burguês ter evoluído para a dimensão do concerto público, isto é, aberto mediante compra de ingresso. Hauser considera que a existência desse público mais vasto, anônimo, propiciaria que uma mesma obra pudesse ser repetida várias vezes, o que significava a possibilidade de o compositor ganhar mais dinheiro com um único trabalho e de se esmerar mais com a criação.[8] Por outro lado, a ampliação do público significava que o compositor poderia encontrar ouvintes mesmo rompendo com as expectativas estéticas da maioria. O compositor romântico teria obtido enfim o tempo (e os meios) para exprimir suas mais profundas emoções; o barroco só podia almejar conseguir terminar outra cantata até o domingo seguinte. A meio caminho entre o Barroco e o Romantismo, um dos filhos de Bach, Phillip Emmanuel, já reputava suas melhores obras aqueles que compusera livremente, sem comissão alguma.
Por chocante que pareça, uma obra-prima como A Paixão de São Mateus só foi tocada três vezes durante a vida de Bach e permaneceu esquecida por quase cem anos até 1829 quando Mendelssohn a reapresentou.[9] A prática dos tempos de Bach, contudo, ainda era da música ligada à função pública, ao ritual, donde esse caráter paradoxal de reiterado ineditismo e repetição formulaica que nele ouvimos. Ao mesmo tempo, na necessidade de cativar a atenção do público anônimo, os compositores clássicos e sobretudo românticos teriam superado as formas barrocas – mais estáticas, nas quais um mesmo andamento e um mesmo afeto dominam todo o movimento – graças à introdução da sonata, um drama musicado pela exposição e pelo desenvolvimento de dois temas contrastados. A música instrumental sofre assim a mesma teatralização que a ópera já conhecera. Trata-se de excelente exemplo da influência do mercado sobre o aspecto estrutural: o romantismo persistirá na busca de efeitos por diversas vias, com a expansão dos efeitos orquestrais (Berlioz), apelos ao nacional (Dvořák) e ao exótico (Rimsky-Korsakov), à integração de múltiplas artes na Gesamtkunstwerk (Wagner), à liberdade rítmica (Chopin), à música programática (Richard Strauss), à crítica social (Verdi). A expansão da orquestra também foi uma conseqüência da necessidade de se tocar em espaços mais vastos que as câmaras dos palácios. Para compensar desequilíbrios nos naipes, acrescentaram-se mais instrumentos ou introduziram-se novos (p. ex., o flautim veio reforçar as madeiras perante a expansão dos metais). O processo ocorreu numa dialética entre exigências acústicas e demandas artísticas.[10]
O mercado concertante permitiu a especialização profissional. Ainda em começos do século XVIII, o músico era quem tinha o dever de fazer música para atender às circunstâncias. Inexista a figura do compositor separada do intérprete – e o próprio intérprete era multi-instrumentista. Antes de se especializar na flauta transversa, Johann Joachim Quantz (1697-1773) começou no violoncelo, mas apreendeu oboé, trompete, corneta, trombone, trompa, flauta doce, fagote, viola da gamba, instrumentos que, diz ele sem tom de bravata, todo bom artista deveria saber tocar.[11] A divisão de tarefas foi relativamente rápida. Haydn só sabia tocar cravo e violino e não era tido como habilidoso em nenhum deles. Um dos primeiros nichos de mercado musical foi também um dos mais bem pagos, o das celebridades musicais: divas do bel-canto no século XVIII e instrumentistas virtuosos como Paganini e Listz no XIX, emulando o sexapil dos popestares (a passagem da diva Anna Zamperini por Portugal na década de 1770 teve ecos no longínquo Brasil, onde zamparina significa um tipo de dança, um tipo de doença e um tipo de caimento de chapéu). Outro profissional surgido no contexto da mercantilização da música foi o crítico.[12] No período anterior, todo melômano possuía tanto o conhecimento musical quanto a posição social para aquilatar com segurança o valor duma obra. Embora decerto apócrifa, a anedota do imperador Leopoldo II criticando O Rapto do Serralho (“Notas demais, Mozart, corte algumas e ficará bom”) ilustra bem a posição do aristocrata como o melhor juiz da obra, mais conesser até que o próprio artista. O que tinha valor artístico era o que se conformava às expectativas da aristocracia – o arrazoado só soa circular por conta da presunção de sermos capazes de julgar objetivamente o mérito estético intrínseco duma obra livres da nossa posição social. No contexto burguês, perante a oferta musical crescente e, ademais, sem o ócio aristocrático para o estudo diletante das artes, o público precisava ser orientado sobre qual obra valia seu tempo e seu dinheiro. A tarefa do crítico é exatamente esta e a linguagem na qual exprime seus juízos será tão mais ou menos técnica conforme o público a que se destina (no nível mais primário, restringir-se-á a valorações positivas ou negativas, em suma “consuma” ou “não consuma”).
O crítico é apenas uma faceta da importância da imprensa para a difusão na música. Libretos das óperas venezianas já eram vendidos no século XVII.[13] Embora se publicassem partituras e tablaturas desda invenção de Gutenberg, os resultados técnicos só foram aperfeiçoados em fins do século XVIII com avanços na gravura em metal que asseguraram maior legibilidade e durabilidade nas placas de impressão. A partitura impressa permitia que o compositor lucrasse com a venda da obra a um editor embora o direito autoral só viesse a ser formalizado em 1886 pela Convenção de Berna. A partitura torna-se mercadoria avidamente consumida no século XIX, porque ela permite a música dentro do ambiente doméstico, sobretudo graças àquele que é o instrumento por excelência do lar burguês: o piano. Servindo tanto ao acompanhamento de canções populares (ou o seu gênero mais deliberado, o Lied) quanto ao virtuosismo solístico, tanto à literatura idiomática quanto à redução de quartetos de corda e mesmo de sinfonias, o piano é o principal meio da difusão da música no século XIX. Entre 1800 e 1860, fundaram-se 600 fábricas de piano só na Alemanha. A produção alemã, que, entre 1850 e 1879, atingiu 600.000 instrumentos, explodiria nas décadas seguintes a três milhões, sendo a metade exportada.[14] É, como diria o nosso povo, piano pra caralho – ou, para os eruditos, pianíssimo. Mesmo compositores consagrados, como Schubert, não viram problema em compor peças fáceis a fim de atender uma demanda de pianistas amadores pouco hábeis.[15] De fato, o fenômeno do compositor produzindo deliberadamente para um mercado se detecta já mesmo em começos do século XVIII. Ao seu tempo, Telemann foi mais conhecido do que Bach, pois fundou uma editora para publicar as próprias partituras e também compôs peças acessíveis a diletantes.[16]
A massificação do consumo musical durante o século XIX foi tão significativa que mesmo instrumentos populares – portanto, desvalorizados pela burguesia – conheceram não só produção industrial, mas também especialização regional: a cidade italiana de Castelfidaro é, desde meados do século XIX, conhecida por seus aerofones de fole, a família da sanfona.[17] Ao contrário do que se poderia esperar, a invenção do fonógrafo em 1877 não produziu grandes rupturas nos padrões de consumo musical. Mesmo os meios sucessores de reprodução (gramofone, vitrola, eletrola) por deficiências ou limitações técnicas não lograrão deslocar a importância quer do concerto (ou, caso se queira, da perfórmance), quer da execução doméstica. Em plena década de 1950, uma tiragem de 180 discos na Inglaterra era reputada como boa – quem nos diz é ninguém menos que George Martin, o produtor musical dos Beatles. A duração do áudio limitava-se então a cinco minutos.[18] Só com a difusão do LP (long play) nessa década de 1950 é que a reprodução técnica enfim se aproximou do efeito acústico da execução ao vivo. A música perde enfim algo da sua aura.
[1] CIPOLLA, Carlo M. The Economic History of World Population. Londres: Penguin, 1970, 5ª ed., p. 51.
[2] BENJAMIN, Walter. Das Kunstwerk in Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit. Frankfurt: Surkhamp, 1968.
[3] GOMBRICH, E. H. The Story of Art. Londres: Phaidon, 2006, pp. 216-217.
[4] BURKHOLDER, J. Peter; GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V. A History of Western Music. Nova York: W. W. Norton, 2014, 9ª ed, pp. 321-322.
[5] ELIAS, Norbert. Mozart: zur Soziologie eines Genies. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, pp. 21-22.
[6] GATES-COON, Rebecca. The Landed Estates of the Esterházy Princes: Hungary during the Reforms of Maria Theresia and Joseph II. Baltimore: The John Hopkins University Press, 1994, pp. 19, 167-168, 173-174.
[7] VALENTIN, Erich. Handbuch der Musikinstrumentekunde, Regensburg: Gustav Bosse, 1986, pp. 81-91.
[8] HAUSER, Arnold. Sozialgeschichte der Kunst und Literatur. Munique: C. H. Beck, 1967, p. 595-599.
[9] HARNOCOURT, Nikolaus. Der musikalische Dialog: Gedanken zu Monteverdi, Bach und Mozart. Salzburg/Wien: Residenz Verlag, 1985, 2ª ed, p. 110.
[10] KIEFER, Bruno. Elementos da Linguagem Musical. Porto Alegre: Movimento, 1984, 4ªed, pp. 81-84.
[11] ATTALI, Jacques. Bruits: essai sur la économie politique de la musique. Paris: PUF, 1977, pp. 32-34.
[12] GROUT, Donald J. A History of Western Music. Nova York: W. W. Norton, 1964, p. 283.
[13] MICHELS, Ulrich (org.). DTV-Atlas Musik. Munique: DTV, 2001, p. 329, p. 277.
[14] LEHMANN, Christian. Der genetische Notenschlüssel: warum Musik zum Menschen gehört. Munique: Herbig, 2010, pp. 139-140.
[15] HENRIQUE, Luís L. Instrumentos Musicais. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2000, p. 219.
[16] BURKHOLDER, J. Peter; GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V., op. cit., pp. 435-438.
[17] VAIL, Mark. Vintage Synthesizers. São Francisco: GPI Books, 1993, p. 63.
[18] MARTIN, George; HORNSBY, Jeremy. All You Need Is Ears. Nova York: St. Martin’s Press, 1979, pp. 40, 50.
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