Cáries e Diabetes a Granel
- Álvaro Figueiró
- 18 de ago. de 2022
- 8 min de leitura
Atualizado: 27 de set. de 2023

Além de rinhas de galo transgênico, prostíbulos interditados pela Agência Internacional de Energia Atômica, cenas do crime fresquinhas, ferragens de acidentes automobilísticos e hospícios abandonados[1], eu gosto de freqüentar depósito de doce – também lembra minha infância. Ia direto aos atacadões de doce em Campo Grande e Madureira, porque meu pai tinha bar em Seropédica, o célebre Skylab (cujo letreiro em acrílico lilás e branco mentia-se como “sorveteria e lanchonete”). Eventualmente o zé-manguaça quer adoçar a boca, carros familiares sempre pifaram nos quebra-molas da antiga Rio–São Paulo e a multiplicação dos flíperes atraiu a clientela pré-etílica das escolas. Todo mês se tinha de renovar o estoque. Da minha perspectiva dum metro e quinze, o depósito de doce era um museu, só que, em vez de dinossauros e rochas, biplanos e teco-tecos, retratos e esculturas, colecionava balas, bombons, bananadas, bons-bocados, biscoitos. E hoje, grandão, freqüentar depósito de doce é bem mais divertido: primeiro, porque consigo alcançar todas as prateleiras, mesmo as mais altas; segundo, quase tão bacana, a mesada que o tio Cláudio Castro me dá banca a gulodice; terceiro, não corro o risco de ser agraciado com uma caixa de bombons da Neugebauer ou da Dizioli.
Pouco a pouco, o depósito de doce é extinto por esta vida moderna brasileira voando baixo no seu carro-de-boi tunado (a despeito dos quebra-molas). Ele ainda não atingiu aquela raridade que pede inventário do Iphan, como os letreiros acrílicos (p. ex., Leiteria Mineira) ou as tabuletas pretas cheias de furos para se espetar preços (o Skylab tinha) ou as caixas registradoras vermelhas (Skylab idem). Entretanto, como as casas de fogos, o depósito de doce vai se exilando nas longuras cariocas, onde tudo é mais romântico e ingênuo, inclusive o homicídio. Nas zonas centrais, preços locatícios mais altos resultam em lojas menores e na venda a varejo. A Casa do Biscoito soube nichar-se como varejista de doce, concorrendo, pelo bate-pronto e pela variedade, com grandes magazines generalistas como as Lojas Americanas: depois do almoço, costuma ser bem mais vapte-vupte parar numa Casa do Biscoito para comprar um barrão de chocolate do que encarar as filas filariósicas das Americanas. Corredores exíguos e os doces a pitadas, entretanto, não contribuem nada para a atmosfera de maravilhamento museal, de cornucópia glicoseira.
Em primeiro lugar, falta a ambiência contemplativa que inspiram as prateleiras metálicas, de arestas à faca Ginsu, para decepar os dedos da molecada afoita – e matar de tétano os que sobrevivam à hemorragia. Em segundo, os espaços mais generosos que permitam delimitar verdadeiras seções doceiras. No depósito, a concentração de guloseimas, mesmo encaixotadas, infunde aos corredores aromas de especiarias – como, aliás, em todo e qualquer estoque; as casas de fogos também têm seu aroma único de explosões sussurradas. O buquê é mais forte onde se apinham os chicletes, o limão sempre se sobressaindo, exceto nas imediações do Bubbaloo, que favorece a uva. Onde ficam os sacos de bala – não as cristalizadas, mas as macias –, a maçã-verde domina e o lojista estetizante saberá afastá-la das balas de banana, a única concorrente séria na supremacia aérea com o seu cheirinho enjoativo (vestígios de etileno?). Os químicos explicarão as razões da geopolítica aromática.
O molambo lexical para os odores explica as acrobacias de someliês e também a nossa incapacidade de recordar, em abstrato, cheiros. Mesmo o mais vívido e comum, um cheiro só é palpável, ou antes, narigável quando ardendo sob a nossa nareba. Talvez os depósitos antigos hospedassem peculiares fedores. Hoje o Brasil enfim fabrica chocolates populares decentes, proeza industrial num país que, há séculos, tem cacau, cana e vaca, mas ainda na década de 1990 a Neugebauer e a Dizioli, dois braços secretos da Associação Brasileira de Odontopediatria, continuavam distribuindo bolotas de flúor sob o codinome de bombons. O bombom do Fofão – bem me lembro – tinha gosto e textura de mofo caramelizado e – bem me lembro – era o que meu pai me deu quando pedi um Serenata de Amor® do seu ultracapitalista baleiro, antes caixa-forte. Quando passava por tais corredores da morte, era com medo que meus olhares provocassem algum gesto muquirana de liberalidade paterna: cérebro infantil controlado por lombrigas, uma caixa de bombom Neugebauer, cedo ou tarde, seria comida inteirinha por mais nós-cegos que ela desse da língua às tripas.[2] Eram das catacumbas e masmorras dos atacadões, não das magazines, que provinham aqueles satânicos ovos-de-páscoa compostos pela fusão de sabão de coco e margarina. Conta-se que, em Santíssimo, uma criança se recusou a abrir o ovo-de-páscoa hidrogenado escondendo-o sob a cama e, cinco semanas depois, eclodiu dele um dragão-de-comodo que engoliu toda a família. Quais odores mefíticos se concentravam naquele tábido corredor que Augusto dos Anjos adoraria assombrar? Felizmente isso a memória não recupera.
Há também o prazer da vista, não pelos atacadões em si. Geralmente são feios, de precária desarquitetura, muitos meros galpões, com geológica sujeira, sobretudo nos pisos, de bruta ardósia ou granitite, isto é, onde não estão quebrados mostrando o chão de cimento, isto é, quando não estão quebrados mostrando a rede de esgotos. A beleza está no doce como massa escultural. Até os potes da geléia bicolor – a xepa dos saquinhos de Cosme e Damião – declamam aí sua poesia, a luz fluorescente dando coruscações ao açúcar-cristal e penetrando nos prismas diáfanos citrino e púrpura. As torres de doces são tão mais bonitas quanto menos emperiquitada é a marca: são as firmas mequetrefes que enfiam suas paçoquinhas todas nuas, sem sequer um celofane, dentro do pote transparente, quando muito separando os andares por papel. A marca mais sofisticadinha, visando à venda miúda no varejo, embala cada paçoquinha hermeticamente, porque o povo não tolera mais a mão suja do vendeiro pegando um guardanapo, também sujo, para extrair o doce do pote. A embalagem individual do doce tornou-se toalete barroca, ademais, pelas exigências sanitárias, nutricionais, publicitárias e escambáulicas. O recente retorno à singeleza do Lollo, ao feitio da década de 1980, confirma a percepção de que a apresentação era antiestética, muito cheguei.[3] Infelizmente onde a embalagem unitária é notável, a beleza se perde, muitas vezes, na embalagem coletiva. As balas Moranguinho são uma maravilha do desaine, uma das mais belas embalagens entre qualquer produto, porém, dentro dum sacão que explora só parcialmente a transparência perdem um pouco da graça. Pior ainda fez a Bhering, não apenas comprometendo sua Toffee, outrora simples poá branco contra azul-marinho, mas também malocando os caramelos dentro dum pacote opaco. Seja como for, no pior dos casos, no atacadão sempre haverá a beleza pelo excesso, a perspectiva duma titânica caganeira. E, afinal, que são as Pirâmides senão um monte de pedra empilhada?
Falando em Pirâmide, o depósito de doces é também um sítio arqueológico da glicose. O acúmulo de certas guloseimas denuncia o paladar caçador-coletor das crianças. Esse animal que, em certos biomas, se deleita em chupar estilete de hibisco e mordiscar amêndoas-da-índia diretamente do asfalto não resiste às mais açucaradas porcarias, ao pior refugo industrial da diabetes. Que adulto encontra prazer em pirulito, jujuba, gelatina ou dropes? Dia desses até comprei um pirulito que se apresentava gurmê e, todo bonitão num hipnotismo de caramelo e açúcar, prometia abrir um portal sexual nas papilas gustativas. A única coisa que ele abriu foi um buraco no meu bolso. Por favor, mantenham a criançada na ignorância do licor de creme de menta Stock! Ou, pensando bem, apresentem a criançada ao licor de creme de menta Stock... Pirulito de gelatina de licor de creme de menta Stock!
O depósito de doce conserva modas e fases mais avançadas da história econômica brasileira. Certos doces, outrora abundantes em qualquer birosca, quase se limitaram aos atacadões: p. ex., Gamadinho, chupe-chupe, doce-de-abóbora cordiforme, maria-mole, peitinho-de-moça, pirulito à guisa de chupeta. Há pouco até encontrei um genérico do Pirocóptero.[4] Sucessos efêmeros como a Balinha do Coração, um Danoninho® sólido, frissom ferroviário ali por 2001, exceto pelo camelô bissexto, aguardam a vinda do nostálgico ao atacadão. As balas Soft, que, segundo a sabença dos nossos maiores, deveriam ter convertido recreios em Jonestowns®, ainda persistem nas prateleiras, com suas multicoloridas asfixiantes hemácias gigantes sonsamente à espreita dum movimento peristáltico errôneo. A fase terminal da ascensão e a queda da groselha se historia no depósito. Apesar de universalmente detestado, o refresco de groselha era ubíquo nas geladeiras suburbanas às portas do terceiro milênio. Para a groselha podemos usar a mesma caracterização que se faz em 2001: uma odisséia no espaço sobre o monolito: “its origin and purpose still a total mystery”. O consumo de groselha, baga que não medra no Brasil nem na Ibéria nem na África, sabe-se lá como se espalhou entre nós – ao menos entre os mais fuleiros de nós – e, duma hora prà outra, sumiu. Deve ter vindo nas patas dos pardais de Pereira Passos.[5] O xarope, porém, continua lá esquecido em estantes, a essa altura talvez já petrificado em rubi.
O depósito pode ser o último refúgio duma marca em extinção, o cemitério dos elefantes diabéticos, silos de alpiste para dodô chocólatra. Nesta semana mesma, noticiou-se que estão aos pandarecos as finanças da Pan, aquela dos sorridentes cigarrinhos de chocolate. Entretanto, há pouco, na minha última expedição a Campo Grande, nada indicava na Esquina do Doce que a Pan pudesse vir a deixar de cumprir seu pândego papel pedagógico. Certo, o cigarrinho foi disfarçado em Chocolápis, mas continua sendo exatamente o mesmo tubinho para os pimpolhos aprenderem a dar um pito enquanto brincam, nas madrugadas silenciosas, de ronda. O bombom de conhaque, que é de nocautear pé-de-cana profissa, escapou à censura e continua à venda inalterado, afinal o alcoolismo sempre morou mais próximo aos nossos corações do que o tabagismo. Algum chocoinvestigador mais perseverante, contudo, deverá desentocar outros produtos educativos da Pan na linha do Chocococa, Gonogeléia ou Pirussífilis.
Falei do desaparecimento da groselha, mas extinção nenhuma é solitária: seu fim coincidiu com o ocaso duas “iguarias” de supermercado, o marrom-glacê e aquele doce de mamão verde-pântano vendido em quentinha de alumínio. Isso dá o que pensar. O paladar do brasileiro se sostificou em felomenal risistro. As cáries pátrias provaram os chancliches do arrivismo e o doce evoluiu para o confeito. A vendinha do Juca tem sonhos de confeitaria vienense. Que é a geléia de damasco com queijo-bri senão um romeu-e-julieta[6] nariz-em-pé? É de se perguntar acaso o depósito de doce sobreviverá à monegasquização terceiro-mundista do Brasil, quando, para breve, todo e qualquer pé-rapado, se escapar aos tiroteiros na Via Amarela, poderá velejar no esgoto de Sepetiba durante os fins-de-semana. Logo a Casa do Biscoito se reformula em Butique de Confeitos ou The Candy Store. Depósito de doce é coisa de pobre.
Assinado: Catão
[1] Um exemplar nesse elenco é a mais pura verdade. Dica: envolve aves.
[2] A Neugebauer tinha duas coisas boas: o Stikadinho, de morango, um precursor pobreta do Sensação®, esse da Nestlé®, e o Bib’s, ambos, aliás, difíceis de se achar. Recentemente, como Passatempo®, decidi provar bombons avulsos da Neugebauer, o Amor Carioca, que pretendia emular o Serenata de Amor® ou o Sonho de Valsa®, e, para minha Surpresa®, era bom. A Dizioli safava-se com o Gamadinho. Durante minha infância, só prestavam as caixas de chocolates sortidas da Lacta®, Nestlé® e Garoto®, mas, dizem nossos maiores, que esta última firma também produzia caca confeitada poucos anos antes. Cacau, cana e vaca unidos pelo progresso industrial do Brasil!
[3] Outra embalagem impactante era a dos Chicletes Mini, uma sapeca caroça de garoto enquadrando um monte de chiclete no sorriso transparente. Isso você pode encontrar aí em qualquer saite saudosista, sempre desprovido do bom-senso da crítica historiográfica que só se encontra neste Lesma no Saleiro.
[4] Seu maior legado, para nós que somos homens maduros e bem-sucedidos, foi a expressão “fazer pirocóptero”, entretenimento que consiste em girar o pau mole feito hélice.
[5] Escrevendo em 1924, Ribeiro Couto atribuía a uma matrona o gosto pela groselha: “Relação das coisas que bebem: o chefe: vinho do Porto, duas doses; a esposa: licor de cacau, discretamente; as jovens cunhadas: chope, à moderna; a sogra: groselha, sem a palhinha; as crianças: querem tudo, porém são restritas à limonada.” COUTO, Ribeiro. A Cidade do Vício e da Graça. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998, 2ª ed, p. 51.
[6] Fazendo propaganda desinteressada – embora possa passar meu Pix –, a mineira Delícias Famoso encontrou uma bela solução industrial para o romeu-e-julieta: uma massa de queijo envolve cremosa goiabada.
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