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Metafísica do Futebol: categoria fraldinha

  • Foto do escritor: Álvaro Figueiró
    Álvaro Figueiró
  • 19 de nov. de 2022
  • 18 min de leitura

Atualizado: 21 de nov. de 2022


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§1. Introdulero. O único esporte global – além da briga de bar – é o futebol. Nada testemunha melhor a popularidade do futebol que suas goleadas na cancha do Século Americano. Por celulose, acetato e vinil, crescemos em casas na árvore de jardins suburbanos, estreamos nossas bronhas ou siriricas com beldades hollywoodianas, aprendemos inglês por letreiros, mascamos chiclete, bebemos refrigerante, hambúrguer foi alçado à alta gastronomia, conhecemos a fundo os rituais do Cosme e Damião roxo-laranja, organizamos nossas bibocas pela Harvard Business School – nenhum esporte americano típico, porém, nos interessa assim como o futebol não interessa aos americanos. Tirando um país ou outro, a engrenagem boba-alegre de autopromoção ianque, se sucedeu em vários esportes coletivos, não conseguiu impor ao mundo o gosto pelo beisebol ou pelo futebol-americano. Talvez o futebol tenha algo de simples como o sistema métrico.

A explicação mais corrente é essa mesma, a simplicidade. Um terreno que não derrube uma cabra-montês, dois chinelos, uma bola de meia, bola de jornal, bola de vôlei, até lata vale. Quantos jogadores? Entre dois e aproximadamente onze mil. Menino joga com menina, moço, marmanjo e matusalém. No futebol quase tudo é opcional: trave, travessão, rede, lateral, linhas de cal, goleiro, juiz, chuteira, caneleira, número igual de jogadores (o time que fica com o pereba-mor exige reforço). Qualquer superfície serve, de preferência as que riscam diamante, decepam cabeça de dedão e enchem a cueca de lama. Dimensões do campo oscilam entre palmos e alqueires mineiros. Formato é algo entre paralelogramo e trapézio. Sem gente prum time-contra, joga-se o golzinho, o cascudinho, o altinho, a rebatida, o três-toques. Até o gol é dispensável: no bobinho não tem gol. E ainda há os acessórios, digamos, o muro que faz tabelinha, o beque-plantado que é a jaqueira numa das zagas, aquele buraco no alambrado que conduz a bola para o meio da autoestrada, o meio-campo interditado pelas linhas com cerol, a errática dentão-de-leite que trouxeram porque a bola boa, aquela laranja fluorescente, “de couro” , a com o birro que não espirra a cada chute, está indisponível porque o Zezinho ficou de castigo.

Regra sempre tem algumas, mas conforme os casos, um common law botinudo. A Board dos meus pagos exigia que quem isolasse a bola no sítio da Tia Eni ou, pior, no valão tinha de ir buscá-la. Três gols, o goleiro voltava prà linha. Bola na mão não era mão, mas mão na bola era. Bola na mão era corpo, que não tem mão, sacou? A grande-área traçava-se no berro. A arbitragem contratava-se na hora – um sonho anarcoliberal. Pé-alto na cara cancelava-se pela recordação de que “futebol é esporte de contato”, forma oblíqua de chamar o garoto sangrando no chão de fresco. Pra chamá-lo diretamente de fresco, recordava-se que “futebol é esporte de homem”.

Quando a pelada virava torneio, tudo era gala – não só os jogadores fingiam que se uniformizavam (time com camisa ou com colete vérsus o sem), mas também se proibia a tabelinha com o muro. O muro magicamente se metamorfoseava em lateral. A simples figura dum peladeiro empunhando uma bola sobre a cabeça já emoldurava a partida como algo muito à vera. Na vida cotidiana, o lateral não existe. É verdade que o jogador não podia empunhar muito longe a bola porque cafungando no seu cangote estava ele, o muro, mas o gesto era de coisa séria, marcial. Até hoje respeito uma cobrança de lateral. Era nesses eventos solenes com cobrança de lateral que aparecia o juiz, invariavelmente o vizinho gordão professor de educação física. Mas o juiz varzeano dispõe de tão ínfimo respaldo jurisdicional que o público sequer se digna a xingá-lo – a função do juiz é marcar o tempo, não conseguir extrair som do apito, ter sua autoridade contestada dentro de campo e atrapalhar a atrapalhação dos jogadores. As faltas continuam a se marcar no berro. Os vencedores ganham uma daquelas horrendas medalhas, que todo mundo tem em casa, inscritas com “Honra ao Mérito”. Os perdedores também ganham. É por isso que todo mundo tem em casa as horrendas medalhas inscritas com “Honra ao Mérito”. Aliás, elas são convenientemente cunhadas numa cor tão vaga para poderem celebrar o ouro, a prata, o bronze, o latão, para não citar as ligas empregadas na indústria aeroespacial e os metais da série dos lantanídeos e actinídeos. É por isso, de novo, que todo mundo as tem em casa. Animal fantástico, nunca vi, era o bandeirinha, afinal só havia espaço para bandeirar em cima do muro. Esse era o mundo do futebol na Campo Grande da década de 1990, meninos, meninas e, claro, menines é a minha rola.

Dentre quaquilhões de jogos de bola, “jogar bola” significa “futebol”. Ainda assim, a popularidade não se explica de todo pelo futebolismo totalflex. O interesse poderia jazer apenas na prática. Eu adoro sinuca, mas jamais assistira a partidas dum Rui Chapéu ou dum Ronnie O’Sullivan. De fato, como um lulu-da-pomerânia e um dogue-dinamarquês, o futebol profissional e as peladas são a mesma coisa completamente diferente – no profissa, sempre tem juiz, bandeirinha e gandula. Tem até lateral. Geral gosta de brincar de futebol, de jogar futebol, de disputar futebol, de assistir futebol, de torcer por futebol. O futebol interessa como brincadeira, como jogo, como torneio, como espetáculo.

Todos os elementos do futebol estão em proporção perfeita para torná-lo o maior dos esportes, belo, excitante, inteligente, imprevisível e catártico. Nada é casual – da dimensão do gramado às chances de gol. A tal da simplicidade, na verdade, mascara alta complexidade compactada em dezessete regras, que podem ser transpostas das arenas aos rala-cocos. A Metafísica do Futebol: banco de reserva reduz o jogo a cinco fatores abstratos: a) a motricidade; b) a plasticidade; c) o andamento; d) a pontuação; e) a versatilidade.


§2. Motricidade. Motricidade soa arrevesado, mas o que quero enfatizar é a maneira principal de movimento corporal numa dada atividade. Quem souber palavra melhor, canta aí. Quase todos esportes coletivos se centram no controle duma bola, disco ou peteca – geometrias exigidas pelas propriedades cinéticas. Em tese, um esporte coletivo poderia ser disputado só pelo contato das mãos no corpo do adversário – seria a profissionalização dos piques ou da briga de bar –, mas um objeto foca a atenção dos jogadores, do árbitro e do público naquilo que está em jogo, naquilo que determina o sucesso na partida. Como regra, o objeto é operado pelas mãos, seja de forma imediata, seja de forma mediada por tacos e raquetes. Eis o pulo-do-gato futebolístico: o futebol é o único esporte que sistematicamente proíbe o emprego das mãos, escalando no seu lugar os pés.[1] O órgão mais hábil para o manejo de objetos é substituído pelo mais canhestro. Não à toa ninguém diz pedejo de objetos. Controlar um objeto com os pés é difícil pacas. Que dirá então controlá-lo com precisão e, ainda por cima, correndo e, agora com cobertura de chocolate, fugindo dos adversários? Perceba que, quando crianças começam a jogar futebol, a bola nunca permanece junto ao pé – ela é impelida léguas à frente e a criança cobre a distância para impeli-la de novo léguas à frente; ela não controla a bola, só dá bicudas. É habilidade que demora a ser desenvolvida e alguns (você p. ex.) nunca desenvolvem. Da complexa tarefa de controlar a bola, correr, equilibrar-se, fintar, coordenar passes e cruzamentos com o próprio time, receber a bola na grama e no ar, impedir as jogadas do time adversário, dessa motricidade única deriva-se toda a plasticidade do futebol.


§3. Plasticidade. Quando algum idiota tenta imitar Armando Nogueira e fala no futebol como balé, o idiota tem razão. Idiotas costumam ter razão. A dança é, sobretudo, o corpo marionete dos pés e das pernas.[2] Em certo sentido histórico, o declínio das danças coletivas no século XIX compensou-se – ao menos pros marmanjos – pelo rachão.

O futebol é intrinsecamente bonito (exceto com chuteiras coloridas). A própria noção de jogo feio envolve menos o tédio que o desengonço. Jogo feio é jogo bisonho, é aquele no qual nenhum dos times controla direito a bola: os chutes são capados; os lançamentos, isolados; os passes espirram; os jogadores escorregam; os times trombam; o goleiro franga; o atacante vai matar no peito e leva bolada na cara; o goleiro devolve a bola no atacante que chuta mal e um cachorro impede o gol. É o jogo que nega a motricidade.

A restrição ao uso das mãos cria a plasticidade quase acrobática de jogadas como o peixinho, o voleio, o meio-voleio, a bicicleta, o bate-pronto, as diversas cabeçadas. Algumas só existem no futebol e, ainda assim, as variantes dos outros esportes não são tão pitorescas. Tem coisa mais aristocrática que uma matada no peito bem feita, daquelas que a bola desce colada ao corpo? Não à toa se tornou idiomatismo falar que fulano matou uma bola no peito para quem chamou a si uma responsa e resolveu na moral. Os embates também criam maravilhas: como negar a beleza do boleiro franzino que, encurralado por dois, três zagueiros brucutus, consegue se safar arisco por entre eles? As interações plásticas são diversas: drible-da-vaca, drible-elástico, ovinho, chapeuzinho, corta-luz, toque-de-letra. Por incrível que seja, após século e meio, vira-e-mexe, forjam-se novas armas: a pedalada. Para puritanos, certos lances, de tão estetizantes – na história da arte são as “firulas” –, se rebaixariam a conduta antidesportiva. Antes que mera intenção de humilhar, as firulas podem ser truques legítimos: a lambreta permite escapulir da marcação cerrada junto a uma das linhas ou mesmo desarmar a marcação mais aberta pelo inesperado da jogada. Tá certo que estatisticamente 97% dos jogadores que fazem lambreta estão no espectro que vai do asno ao zé-arruela. Muita gente esquece, porém, que o marcador que está sendo feito de bobinho também pode contribuir com o espetáculo. Um desarme duro mas limpo, sobretudo contra o mascarado que murcha ao perder a bola, provoca a mesma satisfação da pancadaria justiceira com a qual Van Damme formou nosso caráter. Até as faltas no futebol são mais bonitas. Só um hipócrita, um pacifista ou o jogador que ficou perneta negará a satisfação estética que proporciona um encontrão de cabeça na boca do estômago, um carrinho New Holland na chuva ou uma tesoura, que é uma gracinha faça chuva, faça sol.

O futebol é democrático também porque franqueia o belo ao perna-de-pau. É a cagada-ensaiada. Molecote ainda, chapelei lindamente um sujeito bem mais velho (três anos) meio seboso, desses que fazem lambreta: parábola bíblica do Davi quatro-olhos rasando os cabelos louros de Sansãogoliaskurtcobain e, mor onda, eu de costas. Quando percebi que a bola, em vez de macia no peito-do-pé, viera explodir na canela para promover o chapeuzinho costal, entrevi minha glória e saí correndo para completar o lance. É um segredo que estou revelando aqui no Arquivo Confidencial, ô Faustão.

A plasticidade aplica-se à própria bola. Pela trajetória longa e pela grande dimensão relativa à trajetória, a bola transforma-se num protagonista, o coringa que ora ajuda o time A, ora o time B, ora decide brilhar por si. Não à toa as bolas têm personalidade e genealogia: a sedenta bola de couro marrom-mogno que lembrava mais um baú da vovó e vinha até com cadarço combinando com camisas, cabelos-pastinhas e bigode-lápis; a Telstar, introduzida em 1970 e que com seus pentágonos alvinegros se tornou o arquétipo de bola de futebol; a Jabulani, de 2010, que era uma dentão-de-leite superfaturada por uma Fifa cada vez mais corrupta.

Poucos esportes conseguem dramatizar a bola ao manter um equilíbrio entre dimensões do projétil e da cancha por um lado e, por outro, variações de velocidade e trajetória. No golfe, as trajetórias são várias, mas a bola é pequena demais para a maioria delas; no tênis, a bola é rápida demais para as trajetórias sempre curtas, porque a quadra é miúda; no boliche e, sobretudo, na sinuca, esses fatores estão mais proporcionados, porém sem a complexidade futebolística. A gorduchinha faz curva, pega efeito, cai de folha-seca, corre rasteira, rola devegarinhozinho, quica, voa, pinga, explode no travessão, é interpretada – só não viola, nem mesmo a mais bandida, as leis da física como quis Galvão Bueno quando narrou que a bola escorregou na grama e pegou impulso. A bola move-se do totozinho até a patada atômica. O caso-limite é a pancada de Nelinho em 1978. A velocidade de lesma manca do totozinho é garantida pelo gramado (a bola não precisa permanecer no ar afinal); a velocidade de dobro da luz da patada atômica é garantida pela perna, mais musculosa que o braço – um chute é mais potente que um arremesso (os jogos com raquete e taco procuram intensificar o arremesso).

O vôlei conta com algumas jogadas plásticas e há algum tempo autorizou defesas com os pés – na prática, quase nunca empregadas. O basquete, às vezes, apresenta dribles maneiros, passes ligeiros, tabelinhas inteligentes e a enterrada apela pela agressividade. Ainda assim, o repertório é muito mais restrito, inclusivo no que tange à plasticidade da concentração e dispersão dos jogadores como grupo. Esse último ponto tem a ver com o andamento.


§4. Andamento. A maior parte dos esportes, coletivos ou individuais, são isócronos – a velocidade do jogo nunca discrepa muito de certo valor. Onde a bola não pode ser retida (tênis, vôlei), é a própria velocidade da bola que determina o andamento do jogo, ora mais rápido, ora mais lento segundo as variações de trajetória e força, que, já falei (§3), são restritas. Mesmo no basquete, onde a bola pode ser retida sob condições, a variação nos andamentos é ligeira – ademais, o próprio espaço exíguo da quadra em relação à quantidade de jogadores determina um andamento típico. No automobilismo e no atletismo fundista há variações mais vincadas conforme a posição na pista ou o momento na corrida, mas, justo por isso, elas são previsíveis.

Outra vez, o futebol é bastante peculiar. O jogo pode oscilar do ponto-morto – a catimba de bola tocada para trás com ou sem vaia – até uma correria de 100 metros rasos. Uma bobeada no lento avanço do time A sobre a retranca de B pode desencadear contra-ataque veloz: subitamente vemos o jogo embolado numa intermediária abrir-se no outro lado do campo em estepes de ataque húnico. A própria dimensão máxima do campo – entre 90 e 120 metros – permite que o movimento se dê por explosão ao longo de toda a cancha. Muito menos que isso se perderia o efeito do jogador voando pelo o gramado (o gol de Maradona contra a Inglaterra em 1986, o com o pé); muito mais que isso, o jogador se esfalfaria e a corrida degeneraria em marcha. Como a densidade jogadorográfica no futebol é baixa, são múltiplas as configurações de como os boleiros se dispõem em campo ao contrário, p. ex., duma quadra de handebol ou mesmo futsal. E, por sua vez, são múltiplos os vetores para essas configurações conforme os lances e a estratégia. No futebol, há acelerandos em movimento contrário, ritardandos na defesa recomposta, adágios pela lateral, prestíssimos na codeta, fermatas nas bolas altas. Uma das razões da existência do impedimento – a Board campo-grandense só emitia branda censura moral contra o banheirista – é justamente evitar que a partida degenere em golfe, chutão pra lá, chutão pra cá: o andamento do jogo seguiria então a batuta do maestro Galileu Gallilei.

Os americanos acham o futebol parado. O deles é que seria movimentado. O futebol-americano é o caso extremo do pontilhismo desportivo: movimento intenso logo interrompido pela inação. É uma forma de tortura sádica vendida como prazer tal qual a massagem tântrica. Na verdade, quando o andamento acelera no futebol-americano (a iminência do touchdown) e no bêisebol (o home run), o jogo entra na raia de atletismo, pois até o itinerário já está definido estritamente neste ou faticamente naquele. Só há três andamentos, com durações previsíveis: andamento médio de curta duração, pausa de longa duração e andamento veloz de curta duração.

No futebol, apesar das interrupções, o jogo é, antes de tudo, contínuo – contínuo mas nunca isócrono. As próprias interrupções assumem graus variados de dramaticidade – geralmente nula na cobrança de lateral (exceto nos torneios campo-grandenses), tensa na falta junto à grande-área, crítica no pênalti e mexicana no intervalo para o segundo tempo da prorrogação. E tem mais: os andamentos variam historicamente. Quem viu repeteco da Copa de 1970, percebeu que os jogadores corriam menos e a marcação era menos cerrada. Veio a Laranja Mecânica de 1974 e acelerou fundo. Não se pense, porém, num diorama darwinista: na década de 1930, o jogo disputava-se com um frenesi digno de pelada.


§5. Pontuação. Só e tão-só no futebol, a partida calha de terminar sem pontos. O célebre 0 a 0 não espanta ninguém, às vezes frusta, às vezes é o placar dum jogão. Os americanos chocam-se com isso, que seria a prova-real da chatice do esporte: para eles, qualquer escore que não termine acima de 840,5 a 700⅓ irrita. Pelo contrário, todos os outros esportes, pela abundância, tornam o tento irrelevante. Quem perdeu um ponto no vôlei, não perdeu lhufas – a depender, nem mesmo o sete. Quem perde um eice, talvez tenha perdido uma bela jogada, mas não uma crise ou uma apoteose. O gol é orgásmico; a cesta é balançada no mictório. O gol é tão raro que a mera ameaça produz excitação; uma seqüência de enterradas gera curiosidade.

Três fatores explicam a raridade do gol: a motricidade dos jogadores de linha, a dimensão do campo e a dimensão da meta em relação à motricidade do goleiro.

Ao contrário do basquetebol onde o domínio da bola é quase absoluto ou do vôlei onde ele é efetivamente absoluto, a todo momento o futebolista se vê ameaçado pelo desarme. Mesmo a bola travada sob a chuteira ou entrepernas está vulnerável a um totozinho certeiro. Mas perder a bola não é falha grave como nalguns esportes, onde fica pressuposto que o time adversário vai marcar ponto, porque a dimensão do campo de futebol e as formações táticas geralmente impedem os contra-ataques fulminantes (esse é um dos raros pontos em que o futebol-mundo e o futebol-americano se assemelham). Boa parte do jogo consiste nisto: assegurar o controle da bola de forma ofensiva. Se der, o gol é conseqüência e olhe lá. Fosse o campo menor, como no futsal, os placares seriam muito mais generosos, pois o perde-e-ganha da bola seria menos browniano e mais direcional.

Daqui a pouco tou apelando para meus vastos conhecimentos negativos de termodinâmica e teoria da informação.

Falando nisso...

Peraí.

Me deixa aumentar o rádio aqui.

(Em voz de marcapasso AM): Chokito se enrolou no passe, bobeou, ataca a bola Jiraya, o ninja de Boca do Mato. Jiraya vem voando mais rápido que uma estrelinha, driblou o beque Janjão Perna-de-três, a torcida vibra no Estádio Pipoqueiro Anisvaldson Goiabeira com o escrete rubro-bege, invicto a duas partidas, o meia se emocionou demais, tropeçou e caiu, fez o rolamento e já tá de pé, assim é o ninja Jiraya, Jiraya passa a bola pro Gibruei na lateral esquerda, Guibruei avança em diagonal, Guibruei, Guibruei, Guibruei! Tá na grande-área, tá na cara do gol, preparou, apontou.

Não vai ser gol, não, porque, após ler Metafísica do Futebol: série Γ, o goleiro que estava tentando se lembrar acaso o ápeiron foi proposto por Anaximandro ou Anaxágoras (é um goleiro com vezo filosófico como deve ser todo bom goleiro), percebeu de rabo-de-olho que a bola vinha quente e, no reflexo, espalmou-a pra córner.

Em princípio, o goleiro poderia ser proibido de futucar a bola – taí o Higuita para testemunhar como agarrar no escorpiãozinho. Contudo a restrição tornaria o gol rotineiro. Conversamente se poderia diminuir a meta, isto é, a área ocupada pelas traves e travessões, mas a plasticidade do goleiro, a mais morcegante figura em campo, ficaria anulada na hora da defesa como acontece no hóquei. O uso das mãos pelo goleiro permite, então, que se reduza bastante a chance de gol – é controle pedal, o antinatural, contra controle manual, o natural – e que se amplie a meta a ponto de valorizar muito a episódica plasticidade do goleiro. De fato, as dimensões da meta (7,32 metros de largura por 2,44 altura) são perfeitamente abarcáveis por um goleiro alerta no meio do gol, às vezes inclusive pelo que pensa no ápeiron. A única exceção é o ângulo. O gol no ângulo aflorando a ponta da luva é a quintessência do golaço, pois implica em acertar justamente o exíguo calcanhar-de-aquiles do goleiro.

As relações de tamanho da meta, da bola e do goleiro são uma das coisas mais fantásticas do futebol! São proporções dignas da filosofia dum Anaximandro ou Anaxágoras. As traves são grossas em relação ao diâmetro da bola, ampliando o drama do gol que não se marcou por um triz (críquete, sinuca e golfe operam com lógicas similares nesse ponto). O chorinho e o rebote, o saque raspando a linha de fundo, o pino balançando à joão-bobo têm lá sua graça, mas não se equiparam a um petardo na trave. O gol é raro, mas ele é rico. E, como a meta é grande, o gol acontece em vários quadrantes de várias formas: rasteirinho no canto, rebatendo no travessão, no centro da meta, de pênalti, olímpico, driblando o goleiro, por cobertura. Onde é possível marcar interceptando a bola com a barriga? Onde o jogador tenta cortar o passe e marca contra? Onde o anticlímax de se perder um gol-feito? Não há muitas variantes pruma cesta.

Por usar as mãos, o goleiro compensa a estática em surtos plásticos. Seja fazendo ponte, espalmando, encaixando, defendendo de mão-trocada, saindo do gol, socando a bola, tirando a bola com o bico do pé para corrigir um erro, quase tudo no goleiro é acrobático. Em matéria de presepada, o goleiro costuma ser o único que rivaliza com o mascarado do time – a diferença é que se fizer caca, é gol na certa. Enquanto o jogador da linha muitas vezes depende do vacilo do marcador para seus lances plásticos, o goleiro, depende do craque. O atacante pode dar um drible-na-vaca num pato; o goleiro só fará uma bela defesa se o ataque já vier bonito. Todo mundo lembra da defesa de Banks na Copa de 1970 por causa da cabeçada de Pelé. A mais bela defesa aborta sempre um gol-de-placa. Pro goleiro, contudo, o reverso da medalha “Honra ao Mérito” é mais horrendo ainda do que a face: não há em campo espetáculo mais circense que um frango e mais constrangedor que um golpe-de-vista zoado. Assistir a golpe-de-vista zoado é que nem adulto assistir a E.T. – dá vontade de chorar.

(Eu tou falando tanto do goleiro, porque eu era goleiro – goleiro é a posição mais melancólica pela solidão. Acho que o primeiro sintoma do meu liberalismo baixo-astral foi eu querer ir pro gol. O goleiro é posição existencialista, porque é a mais falível e também a mais heróica, portanto a mais humana, não que isso seja bom, muito pelo contrário. Não à toa é o único que se veste diferente embora nem todos escolham modelitos à Jorge Campos para marcar sua individualidade. Nabokov, que como eu foi goleiro e grande escritor, disse que na Rússia e na América Latina o arqueiro era querido pela torcida, sobretudo pela molecada. Prova de que o Brasil não é América Latina e, felizmente, tampouco é Rússia.[3])

Porque o gol é difícil, as comemorações são extásicas, os juízes autorizam mesmo as delongas (exceto pelo Balotelli que dizia não comemorar gol porque o carteiro não comemora quando entrega carta). Há muito tempo, nego gosta de sentar o sarrafo no Pelé – até onde sei, ele só deve ser visto, para falar como o Chaves do Oito, como futebolista. Nesse limite, sua genialidade é inegável. Pelé chegou a agarrar pênalti. E sua comemoração de gol, o pulo com soco no ar, é duma simplicidade bauhausiana – é o equivalente dinâmico do gesto do Bellini erguendo a Jules Rimet.

Não, gol não é orgásmico; o orgasmo é que é gol – principalmente pro nosso escrete que tem andado aí no zero-a-zero nesta temporada.


§6. Versatilidade. Os esportes coletivos são por si sós mais interessantes que os individuais pela interação mais intensa e complexa entre os concorrentes. Uma corrida avalia apenas quem desembesta mais rápido e só uma questão prática torna a disputa simultânea – e isso em etapas. Nos esportes coletivos, o jogador mais rápido pode ser superado pelo adversário com mais força, o mais teimoso pode desarmar o mais habilidoso, a retranca pode anular o artilheiro. No entanto, em quase todos os esportes coletivos, senão todos, existe um fator determinante para o sucesso da equipe. Como diriam os economistas com a sua péssima pronúncia latina, coeteribus paribus, no basquete e no vôlei vence sempre o time mais alto. Aliás, coeteribus paribus, os altos vencem em tudo – boxe, tênis, eleição presidencial americana, pegação na naite, prendas sorteadas de avanço, briga de bar. Embora o goleiro seja a posição mais dependente dum atributo físico preciso – olha só, a altura! –, a estatura mediana já basta para a defesa. O galalau sem reflexos, sem saber se posicionar serve menos que o tampinha safo. Fuço no Goolag que a estatura média dos principais goleiros da atualidade se orça por 1,89 metros, dimensão que ainda causa sentimentos de superioridade num píncher.

Então no futebol o que determina, afinal, a vitória em última instância?

– As forças produtivas – responde Marx.

– A dominação carismático-burocrática – responde Weber.

– Deus – responde o Atleta de Cristo.

– O gol – responde Guilherme de Occam.

– É uma questão que precisa ser rediscutida – responde a melhor aluna da classe.

– A treinabilidade – responde Tite.

– A exterminação física do adversário – responde Júnior Baiano.

Respondo eu que sou o dono-da-bola aqui.

A verdade é que...

...

é que...

....

...

Porra, tou rindo aqui...

Muito...

A verdade

... é que...



Um, dois, três, quatro...

Lá vou eu!

A verdade

... é que...

...

A verdade é que ...

futebol é uma caixinha de surpresas!


Tal porrilhão de fatores interfere decisivamente numa partida que nenhum deles, aprióri, prepondera por si. O time invicto a trinta rodadas pipoca na finalíssima diante dum adversário catimbento. A explosão vence o jogo bonito. A seleção escandinava que joga só no chuveirinho perde levando gol de cabeça dum Romário. A teimosia triunfa sobre tudo e todos – prova-o a Itália tetracampeã. Vencempataperde a raça, a tática, o entrosamento, o craque, a torcida, a substituição, a retranca, o contra-ataque, o preparo físico, o psicológico, a porrada, a jinga, a malandragem, o toque de bola (♫nossa maior tradição♪), o montinho-artilheiro, o erro de arbitragem, o cachorro que invadiu o campo.

O imponderável é escalado pro rala-coco e pras arenas. O futebol não é um balé qualquer. É um balé coreografado num tabuleiro de xadrez por um baralho de tarô – com risco de cachorro invasor. O gesto inaugural da partida é o cara-ou-coroa.


UM LANCE DE BOLA BOLA JAMAIS ABOLIRÁ O ACASO

NO FUTEBOL


§7. Cacacluindo. Seria possível burilar outros aspectos – p. ex., as regras de arbitragem – que explicam o sucesso e a beleza do futebol, mas paremos por aqui pois este texto já superou em muito a tua cota decenal de leitura contínua. Só me permita brevemente nos próximos seis capítulos observar que a perfeição formal do futebol não é um acaso histórico, mas antes o fruto de longo refinamento de diversos entretenimentos que, no Ocidente, desda Idade Média empregavam o pé, ora mais, ora menos, para controlar ou impelir uma bola. A maioria desses jogos e brincadeiras desapareceram. Outros evoluíram e formalizaram-se em experiências sacais (rúgbi), tão sacais quanto esta Metafísica do Futebol: terceira divisão.

Garçom, a conta e, pra fechar, uma frase de efeito!


“As pessoas querem que o Brasil vença e ganhe.”

Dunga.


Eu disconcordo: perder e ser derrotado de 6 a 1 já tá de bom tamanho...


§8. Questionário


Em Metafísica do Futebol: repescagem, qual é a frase de efeito que fecha o texto?


[1] Exceto por aquele jogo de bola mesoamericano disputado com cotovelos ou com os quadris. Mas o selecionado de Cortés chegou melando a partida.

[2] Exceto essas danças aí pelas quais a galera mexe o popozão, virilhas, quadris, que a meu ver caracteriza, antes que a supersexualização, um estado de broxidão generalizado. Para se excitar, têm de carcar o ar.

[3] A explicação que eu daria é que os russos se identificam com as personalidades torturadas e os latino-americanos, com a derrota. Já o brasileiro se identifica com o fominha e não dá para ser fominha no gol.

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