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A Milícia Agradece

  • Foto do escritor: Álvaro Figueiró
    Álvaro Figueiró
  • 13 de abr. de 2021
  • 5 min de leitura

Atualizado: 25 de mar. de 2024


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Os paralelismos medievais nunca costumaram primar pelo rigor – mais metáforas poéticas do que modelos científicos, mesmo quando na mão de acadêmicos, o que, proclamo e advirto, felizmente não sou. Contudo é muito difícil driblar as imagens de senhorio, privatização judicial e fragmentação do poder público quando se depara com o cotidiano botinudo de tantas zonas do Grande Rio e, cada vez mais, doutras cidades brasileiras. De reles quintandeiro de beques com garrucha tetânica, o narcotráfico evoluiu para artilharia antiaérea, monopólios, justiçamentos. E de reles escracho de punguista e tutor de cachaceiro, a polícia marombou-se em Comando Delta da Cosa Nostra. No medievo, as escaramuças entre a bandidagem senhorial promoveram a mesma intensificação da violência, espiral armamentista, encastelamento e opressão do zé-povinho. É o botijão banal, é o gatonete banal, é o cigarro banal, é a taxa de proteção. Tem até a poesia cortesã nos proibidões. E presumo que haja hoje códigos de honra cavalheiresca e de fidelidade feudovassálica – com as mesmas crocodilagens de sempre, começando, à Lancelote, por se traçar a dama fremosa do chefe do bonde-mesnada.

Retroagimos a esse fosso por várias razões: moralismo hipócrita, ineficiência burocrática, estupidez, desorientação do Estado sobre o seu papel, processo descivilizador nos controles das pulsões agressivas, desejo do telejornal como o último filme de super-herói.

Em meio a cramunhagem toda quem mete medo mesmo é a milícia. Quando o próprio aparato de segurança estatal reduz a concorrência em violência e em extorsão a negócio fundo-de-quintal, só há duas saídas: torcer por invasão estrangeira ou esperar pelo longo ciclo de colapso e recomposição da sociedade. O Brasil é inútil demais na geopolítica para sequer estimular uma quinta-coluna. Resta mesmo tudo apodrecer na anarquia para adubar algum futuro menos daninho.

Derrotismo apocalíptico? Apenas silogismo de longo prazo. As premissas estão por toda a parte – por exemplo, na primeira página do Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro.

Recentemente passou batido aos argos bem-pensantes hiperconectados uma lei estadual macabra – o Diário Oficial não é popular na lacrosfera. A Lei Nº 9.227 de 25 de março é poção digna das bruxas de Macbeth com raspas de falsa caridade, pós de regularização fundiária e extrato de polícia, tudo cozido no caldeirão pelo sol do meio-dia. O Executivo foi autorizado a alienar imóveis dominiais – isto é, do patrimônio estadual – em favor de servidores da segurança pública: “policiais civis, policiais militares, bombeiros militar [sic], inspetores penitenciários e os agentes socioeducativos” e mesmo seus parentes (“famílias com servidores vitimados que vieram a óbito”). É texto eloquente malgrado salamaleques e restrições (“ter renda mensal bruta de até sete salários-mínimos, considerada renda familiar per capita”).

Nem quem se criou à base de papinha de arco-íris e filé de fada consegue ser tão bobo a ponto de tresler o propósito da lei: transferir com verniz, ou melhor, óleo-de-peroba legal o patrimônio imobiliário público para a milícia. Os salamaleques são apelos à caridade na falta da única política eficaz para as drogas, que é a liberação – a hipocrisia impede dizer que policial que, durante anos, usa fuzil pra combater narcotraficante com fuzil tem mesmo grande chance de “vir a óbito”, isso, claro, sem contar as crianças que, pelo caminho, em vez de ir à escola “vão a óbito”, então dê uma casinha pro parente de quem matou e morreu pra resolver um falso problema. As restrições são outras demãos de óleo-de-peroba: é consabido que os órgãos estaduais não têm controle nenhum sobre o destino dos seus títulos fundiários de concessão de uso (isto é, aqueles nos quais a propriedade permanece com o Estado, permitindo-se o usufruto do imóvel mediante cláusulas que, engabelam-se alguns, seriam de natureza social). Se nas favelas e nos bairros populares, os imóveis em concessão de uso são vendidos, trocados, rifados, escambados, tacados de avanço, alugados, remembrados, desmembrados, invadidos, ampliados, acumulados quase sempre à revelia dos cartórios e do próprio Estado, por que agora a fiscalização vai ficar atenta e meter bronca na casa e, talvez, na rua e mesmo no bairro onde moram os servidores da segurança pública? Que essas concessões se vão fazer em bloco se depreende do próprio artigo 3º da retrossusossupradita lei que autoriza convênios com “cooperativas, associações e entidades sem fins lucrativos, com o objetivo de viabilizar a alienação de bens imóveis”. Repito para os desatentos: “cooperativas, associações e entidades sem fins lucrativos” dos servidores da segurança pública... Mesmo supondo essas cooperativas acima de qualquer suspeita, mesmo supondo que nenhum dos servidores mantenha vínculos ilícitos, mesmo supondo não se cometer nenhum vício de origem nessas concessões, em suma um baita supositório para buracos-negros socráticos, é impossível não imaginar que, cedo ou tarde, os beneficiados serão pressionados pela milícia, quer para pagamento de taxas, quer por despejos arbitrários – o que ela já faz a rodo em conjuntos residenciais populares.

Desda década de 1980, o controle territorial mais estrito, faz parte da tática do narcotráfico. Para a milicia, esse controle converteu-se em estratégia. No Rio, a milícia já manda sobre 57% da cidade, sobretudo na Zona Oeste, a fronteira imobiliária.[1] A relação parasitária com o Estado confere-lhe influência tal que nem os mais ambiciosos e cabeçudos narcotraficantes poderiam almejar. Não espanta que até mesmo alguns bairros formais, de classe média, já sofram os achaques milicianos – uma quebra nos consagrados padrões de extorsão, ainda mais quando dirigidos contra a moradia (o comércio sempre foi outra história). A Lei Nº 9.227 é, portanto, só uma mãozinha em coroar a milícia como a rainha de bateria no setor imobiliário. Carvalho Hosken e Júlio Bogoricin que se cuidem.

E órgãos de regularização não vão espernear? Claro que não, pois tem patotinha há trinta anos ajudando indiscriminadamente a quem está no poder, reduzindo engenheiros a escrivãos, advogados a ófice-bóis, anulando qualquer reflexão em prol duma política pública consistente, tudo para manter o carguinho. A política de regularização fundiária fluminense é uma piada, engraçada para só para os sobrerridentes. Seus alicerces intelectuais são a demagogia e o sentimentalismo. Isso nos melhores casos. Nos piores, é compra de voto com dinheirinho-mabel – com metade dos domicílios irregulares, o registro imobiliário no Brasil é uma firula, útil apenas para a sempre insegura classe média. E agora vai servir como chancela para a milícia. Compra de votos até soa digno.

O lado oportunista, eleitoreiro, da regularização fundiária cola porque faz cosquinha num dos pontos mais sensíveis na ideologia do pé-de-barro, do pé-rapado e do pé-meiado brasileiro: o sonho da casa própria. Curiosamente muita gente que se pensa sofisticadinha compra e vende essa léria, que, no fundo, apazigua e camufla a incapacidade de o Estado e, quiçá, de o capitalismo prover habitação popular, seja lá em qual modalidade: entre nós se teima na opção mais cara, conservadora e ineficiente – a casa própria autoconstruída. Quem aqui vos fala é um ranheta, nenhum revolucionário. Quando digo que no Brasil a burrice impressiona como uma força da natureza, isso aí sirva de exemplo.

Talvez a Lei Nº 9.227 tenha seu lado poliana. Acelerará o processo de domínio miliciano que decerto já é inexorável. Um dia o castelo cai. Revolução feudal, crise baixo-medieval, segunda servidão, iluminismo, revoluções burguesas... Sucesso a ti, carioca das barricadas de 2848!


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